Emergência climática e paralisia coletiva
A
humanidade continua a caminhar a passos largos em direção contrária ao que
seria o desejável
Carlos Bocuhy/Le Monde Diplomatique
O atual estado de arte do planeta
demonstra que a humanidade se livrou da barbárie das guerras mundiais,
voltando-se a conflitos mais isolados. De outro lado, criou o Antropoceno (nova
época geológica da Terra, caracterizada pelos intensos impactos humanos), que
em seu apogeu climático está declarando guerra à humanidade. A ciência
reconhece, como causa do Antropoceno, o crescimento exponencial das ações
humanas desde a revolução industrial, especialmente depois da segunda metade do
século XX.
Estamos diante de um futuro
extremamente inseguro. É preciso refletir sobre as ferramentas necessárias para
superação dos desafios conjunturais do Antropoceno. É preciso ampliar a
capacidade humana de intervir de forma proativa na realidade, prevenindo e
protegendo a humanidade desse estágio histórico de emergência climática.
Romper a tendência inercial de um
modelo insustentável não é simples. Será preciso promover um salto
civilizatório, superar o modelo de economia predatória que, além de socialmente
injusto, promove impactos que vão além da capacidade de suporte do planeta.
As consequências mais duras ficam
com os mais vulneráveis, já que as catástrofes ditas naturais que, embora
aparentemente atinjam a todos, certamente incidem mais direta e intensamente
sobre aqueles mais frágeis na organização social e sem r ecursos para minorar
os efeitos da natureza.
Já tivemos 27 cúpulas globais para
tratar do tema (COPs) sob os auspícios da ONU, que continuam a patinar no
multilateralismo pouco colaborativo. A questão que se coloca é: por que é tão
difícil para a civilização humana avançar proativamente em direção à
sustentabilidade, que é, em última instância, a dimensão real de sua própria
sobrevivência?
As raízes do problema são
profundas. Freud debruçou-se detidamente sobre a horda primeva, os primórdios
da humanidade. Desnudou o cenário posterior, ainda distante da consciência
social tal como a concebemos, onde se retratava a aspiraç&atil de;o “onde
há id que haja ego”. Em outras palavras, onde há guerra que haja
multilateralismo, ainda que pouco colaborativo, conforme se apresenta hoje a
realidade geopolítica global.
A crise civilizatória atual abre
portas para novas áreas do conhecimento. Nos primórdios de uma psicologia
climática, especialistas se dedicam a estudar e compreender os processos
sociais e mentais decorrentes da percepção do caos que vem sendo an unciado, de
forma científica, em prognósticos do Painel Intergovernamental das Mudanças
Climáticas (IPCC).
A psicologia climática analisa
percepção, temores e, sobretudo, abre um vasto campo para estudar a arte
interior e comportamental da resiliência humana. Segundo Nadine Andrews e Paul
Hogget (p.157), vivemos as
“interações entre o pessoal e o político, o psicológico e o social” e a
natureza de nossa “paralisia coletiva”.
Chama a atenção, diante da
evidente emergência climática, o termo “paralisia coletiva”. A inação aqui é
apenas figura de retórica, pois a humanidade continua a caminhar a passos
largos em direção contrá ;ria ao que seria o desejável.
Nossa coexistência com o risco
global inclui potenciais eventos dramáticos e irreversíveis, como a savanização
da Amazônia, o gatilho letal da liberação de metano do permafrost no
Ártico e o derretimento do Ártico com decorrente falência das correntes
marinhas da Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico. Aumento rápido
do nível do mar, invernos mais extremos na Europa Ocidental e a
desestabilização de sistemas como a Antártida e a Floresta Amazônica são
esperados, conforme afirma pesquisa publicada na revista Nature Climate
Change, de agosto de 2021.
Nessa realidade emergencial de
contornos apocalípticos, a paralisia social não seria apenas por causa da falta
de ferramentas, de políticas públicas transnacionais para combater emissões de
Gases Efeito Estufa (GEE). Possui ramificações mui to objetivas, retratadas nas
distorções sistêmicas do modus vivendi civilizatório,
imbricada nas motivações, raízes e evolução predatória da revolução industrial,
que segue na dicotomia suicida retratada no mito de Midas, onde o rei, cercado
por riquezas que produz com seu toque, fulmina a própria prole e se vê ameaçado
por inanição.
Otimistas podem dizer que há uma
reação em curso, com o que parcialmente concordo. Porém, ao examinar a
realidade notamos que essa reação não é suficiente para garantir que a
humanidade poderá defender-se da crise climá tica. Megasoluções apontadas pela
geoengenharia, visando à retirada de carbono da atmosfera em grande escala, têm
sido descartadas em função de efeitos colaterais.
A humanidade será capaz de conter
o ímpeto causado por movimentos adversos à vida, impactos decorrentes do
intenso uso de combustíveis fósseis e a desregrada transformação da natureza
em commodities? Conseguirá reconsiderar que a lógica dos
petrodólares representa a devastação dos meios de sobrevivência das espécies
vivas e da civilização?
Não existe, de fato, “paralisia
coletiva”. Diante das mudanças climáticas continua a ocorrer uma corrente
fortíssima de ações humanas que denotam perda de rumo na busca insustentável de
mero crescimento – e não de d esenvolvimento.
A tendência inercial existente nas
forças econômicas transnacionais tem sido motivo do exasperar das
bem-intencionadas lideranças da ONU, inconformadas com os sucessivos fracassos
das negociações climáticas. Em 2023 poderá ser pior, co m o risco de ampliação
dos conflitos de interesse. A COP28, que ocorrerá em Dubai, nos Emirados
Árabes, dará sequência à COP27 realizada em 2022 no Egito. Os dois países
contam com governos totalitários, com insuficiente visão sobre direitos humanos
– e notadamente ligados aos cartéis de petróleo.
A fábula da raposa no galinheiro
ilustra bem a possibilidade de interferências nocivas e de desregulamentação
induzida: “Os riscos e as fraudes imensas apareceram com a proteção da
desregulação, pois o afrouxamento global das re strições cria rapidamente
incentivos e oportunidades inéditas abrindo a via à ganância. Esta é mais uma
consequência que uma causa” (La Grande Fraude: crime, subprimes et crise
financière, 2011, Odile Jacob, p.197/8).
É preciso ter cautela com as
soluções econômicas ao gosto do toque de Midas. Compensações para adquirir
direitos visando continuar a poluir são elementos da não política climática.
Uma mera ilusão colocada como so lução, que apenas atende novas perspectivas de
mercado. Enquanto o universo econômico global continuar a possibilitar créditos
de carbono a valores baixos, só atenderá ao acomodamento de pressões,
desestimulando corretas mudanças no comportamento empresarial-poluidor.
A compra de créditos de carbono a
baixo custo sinaliza a inação lucrativa, que permite a continuidade do status
quo. Conselheiros científicos d a Casa Real Britânica já afirmaram
publicamente que o baixo valor da tonelada de carbono no mercado internacional
não será resposta eficiente para o problema climático.
A psicologia do clima deveria dar
transparência aos mecanismos de defesa do estabilishment. Em tempos
de emergência climática, compensaçõe s ilusórias são elemento perigoso, pois
promovem falsa segurança, provocam a paralisia da sociedade humana, que perde a
preciosa oportunidade de tomar medidas efetivas em direção “a nossa conexão e
interdependência com as forças vitais, os objetos animados, as criaturas com
quem compartilhamos habitats”. (Hollway,
Hoggett, Robertson & Weintrobe,
2022, p.19-20)
Nosso futuro depende de
proatividade renovadora, da coragem para encarar o suportar-pensar sobre as
consequências do inaceitável cenário que se avizinha. A velha maquinaria
política do toma-lá-dá-cá não pode encontrar espaço ne sse momento decisório.
Os inúmeros alertas e desastres climáticos que ocorrem de norte a sul não
possibilitam negar a emergência climática – nem fugir às responsabilidades
inerentes ao planejamento e à gestão.
Os mandatos políticos preocupados
apenas com objetivos personalistas, de poder de curto prazo, que se alinham ao
mercado repetidor das velhas fórmulas do business as usu al, não
poderão mais permanecer em sua zona de conforto enquanto populações inteiras
estão sendo fustigadas por efeitos climáticos adversos.
No horizonte surge a emergência da
mudança profunda. As relações intergeracionais não podem mais continuar a serem
sacrificadas no altar da cegueira de Midas. A psicologia do clima nos
impulsiona a refletir, agir, romper a paralisia e encarar a magnitude do
problema. Essa adaptação deverá ser estrutural. É preciso criar e utilizar
ferramentas adequadas para mitigação e adaptação, encarando de frente o desafio
em sua magnitude ameaçadora à vida e à sobrevivência das espécies.
No poço sem fundo da geopolítica
primitiva as nações gastam mais de US$ 3 trilhões anuais em aparatos militares,
enquanto a sociedade humana necessita menos do que 10% desse valor para as
adaptações necessárias. Os interesses menores que provocam a inação coletiva se
reduzem àquilo que representam: a continuidade da barbárie, armada pela
tecnologia.
Há quase um século, em resposta à
Albert Einstein, que lhe perguntava sobre a solução para o fim das guerras,
Sigmund Freud respondeu: “Uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o
crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.
Nunca foi tão necessário um salto
civilizatório que possa nos libertar definitivamente da barbárie.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto
Brasileiro de Proteção Am biental
Às vezes o que reluz é ouro https://bit.ly/3Ye45TD
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