28 março 2023

Clima: para onde vamos?

Emergência climática e paralisia coletiva

A humanidade continua a caminhar a passos largos em direção contrária ao que seria o desejável
Carlos Bocuhy/Le Monde Diplomatique



O atual estado de arte do planeta demonstra que a humanidade se livrou da barbárie das guerras mundiais, voltando-se a conflitos mais isolados. De outro lado, criou o Antropoceno (nova época geológica da Terra, caracterizada pelos intensos impactos humanos), que em seu apogeu climático está declarando guerra à humanidade. A ciência reconhece, como causa do Antropoceno, o crescimento exponencial das ações humanas desde a revolução industrial, especialmente depois da segunda metade do século XX.
Estamos diante de um futuro extremamente inseguro. É preciso refletir sobre as ferramentas necessárias para superação dos desafios conjunturais do Antropoceno. É preciso ampliar a capacidade humana de intervir de forma proativa na realidade, prevenindo e protegendo a humanidade desse estágio histórico de emergência climática.   
Romper a tendência inercial de um modelo insustentável não é simples. Será preciso promover um salto civilizatório, superar o modelo de economia predatória que, além de socialmente injusto, promove impactos que vão além da capacidade de suporte do planeta.
As consequências mais duras ficam com os mais vulneráveis, já que as catástrofes ditas naturais que, embora aparentemente atinjam a todos, certamente incidem mais direta e intensamente sobre aqueles mais frágeis na organização social e sem r ecursos para minorar os efeitos da natureza.
Já tivemos 27 cúpulas globais para tratar do tema (COPs) sob os auspícios da ONU, que continuam a patinar no multilateralismo pouco colaborativo. A questão que se coloca é: por que é tão difícil para a civilização humana avançar proativamente em direção à sustentabilidade, que é, em última instância, a dimensão real de sua própria sobrevivência?
As raízes do problema são profundas. Freud debruçou-se detidamente sobre a horda primeva, os primórdios da humanidade. Desnudou o cenário posterior, ainda distante da consciência social tal como a concebemos, onde se retratava a aspiraç&atil de;o “onde há id que haja ego”. Em outras palavras, onde há guerra que haja multilateralismo, ainda que pouco colaborativo, conforme se apresenta hoje a realidade geopolítica global.
A crise civilizatória atual abre portas para novas áreas do conhecimento. Nos primórdios de uma psicologia climática, especialistas se dedicam a estudar e compreender os processos sociais e mentais decorrentes da percepção do caos que vem sendo an unciado, de forma científica, em prognósticos do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).
A psicologia climática analisa percepção, temores e, sobretudo, abre um vasto campo para estudar a arte interior e comportamental da resiliência humana. Segundo Nadine Andrews e Paul Hogget (p.157), vivemos as “interações entre o pessoal e o político, o psicológico e o social” e a natureza de nossa “paralisia coletiva”.
Chama a atenção, diante da evidente emergência climática, o termo “paralisia coletiva”. A inação aqui é apenas figura de retórica, pois a humanidade continua a caminhar a passos largos em direção contrá ;ria ao que seria o desejável.
Nossa coexistência com o risco global inclui potenciais eventos dramáticos e irreversíveis, como a savanização da Amazônia, o gatilho letal da liberação de metano do permafrost no Ártico e o derretimento do Ártico com decorrente falência das correntes marinhas da Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico. Aumento rápido do nível do mar, invernos mais extremos na Europa Ocidental e a desestabilização de sistemas como a Antártida e a Floresta Amazônica são esperados, conforme afirma pesquisa publicada na revista Nature Climate Change, de agosto de 2021.
Nessa realidade emergencial de contornos apocalípticos, a paralisia social não seria apenas por causa da falta de ferramentas, de políticas públicas transnacionais para combater emissões de Gases Efeito Estufa (GEE). Possui ramificações mui to objetivas, retratadas nas distorções sistêmicas do modus vivendi civilizatório, imbricada nas motivações, raízes e evolução predatória da revolução industrial, que segue na dicotomia suicida retratada no mito de Midas, onde o rei, cercado por riquezas que produz com seu toque, fulmina a própria prole e se vê ameaçado por inanição.
Otimistas podem dizer que há uma reação em curso, com o que parcialmente concordo. Porém, ao examinar a realidade notamos que essa reação não é suficiente para garantir que a humanidade poderá defender-se da crise climá tica. Megasoluções apontadas pela geoengenharia, visando à retirada de carbono da atmosfera em grande escala, têm sido descartadas em função de efeitos colaterais.
A humanidade será capaz de conter o ímpeto causado por movimentos adversos à vida, impactos decorrentes do intenso uso de combustíveis fósseis e a desregrada transformação da natureza em commodities? Conseguirá reconsiderar que a lógica dos petrodólares representa a devastação dos meios de sobrevivência das espécies vivas e da civilização?
Não existe, de fato, “paralisia coletiva”. Diante das mudanças climáticas continua a ocorrer uma corrente fortíssima de ações humanas que denotam perda de rumo na busca insustentável de mero crescimento – e não de d esenvolvimento.
A tendência inercial existente nas forças econômicas transnacionais tem sido motivo do exasperar das bem-intencionadas lideranças da ONU, inconformadas com os sucessivos fracassos das negociações climáticas. Em 2023 poderá ser pior, co m o risco de ampliação dos conflitos de interesse. A COP28, que ocorrerá em Dubai, nos Emirados Árabes, dará sequência à COP27 realizada em 2022 no Egito. Os dois países contam com governos totalitários, com insuficiente visão sobre direitos humanos – e notadamente ligados aos cartéis de petróleo.
A fábula da raposa no galinheiro ilustra bem a possibilidade de interferências nocivas e de desregulamentação induzida: “Os riscos e as fraudes imensas apareceram com a proteção da desregulação, pois o afrouxamento global das re strições cria rapidamente incentivos e oportunidades inéditas abrindo a via à ganância. Esta é mais uma consequência que uma causa” (La Grande Fraude: crime, subprimes et crise financière, 2011, Odile Jacob, p.197/8).
É preciso ter cautela com as soluções econômicas ao gosto do toque de Midas. Compensações para adquirir direitos visando continuar a poluir são elementos da não política climática. Uma mera ilusão colocada como so lução, que apenas atende novas perspectivas de mercado. Enquanto o universo econômico global continuar a possibilitar créditos de carbono a valores baixos, só atenderá ao acomodamento de pressões, desestimulando corretas mudanças no comportamento empresarial-poluidor.
A compra de créditos de carbono a baixo custo sinaliza a inação lucrativa, que permite a continuidade do status quo. Conselheiros científicos d a Casa Real Britânica já afirmaram publicamente que o baixo valor da tonelada de carbono no mercado internacional não será resposta eficiente para o problema climático.
A psicologia do clima deveria dar transparência aos mecanismos de defesa do estabilishment. Em tempos de emergência climática, compensaçõe s ilusórias são elemento perigoso, pois promovem falsa segurança, provocam a paralisia da sociedade humana, que perde a preciosa oportunidade de tomar medidas efetivas em direção “a nossa conexão e interdependência com as forças vitais, os objetos animados, as criaturas com quem compartilhamos habitats”. (Hollway, Hoggett, Robertson & Weintrobe, 2022, p.19-20)
Nosso futuro depende de proatividade renovadora, da coragem para encarar o suportar-pensar sobre as consequências do inaceitável cenário que se avizinha. A velha maquinaria política do toma-lá-dá-cá não pode encontrar espaço ne sse momento decisório. Os inúmeros alertas e desastres climáticos que ocorrem de norte a sul não possibilitam negar a emergência climática – nem fugir às responsabilidades inerentes ao planejamento e à gestão.
Os mandatos políticos preocupados apenas com objetivos personalistas, de poder de curto prazo, que se alinham ao mercado repetidor das velhas fórmulas do business as usu al, não poderão mais permanecer em sua zona de conforto enquanto populações inteiras estão sendo fustigadas por efeitos climáticos adversos.
No horizonte surge a emergência da mudança profunda. As relações intergeracionais não podem mais continuar a serem sacrificadas no altar da cegueira de Midas. A psicologia do clima nos impulsiona a refletir, agir, romper a paralisia e encarar a magnitude do problema. Essa adaptação deverá ser estrutural. É preciso criar e utilizar ferramentas adequadas para mitigação e adaptação, encarando de frente o desafio em sua magnitude ameaçadora à vida e à sobrevivência das espécies.
No poço sem fundo da geopolítica primitiva as nações gastam mais de US$ 3 trilhões anuais em aparatos militares, enquanto a sociedade humana necessita menos do que 10% desse valor para as adaptações necessárias. Os interesses menores que provocam a inação coletiva se reduzem àquilo que representam: a continuidade da barbárie, armada pela tecnologia.
Há quase um século, em resposta à Albert Einstein, que lhe perguntava sobre a solução para o fim das guerras, Sigmund Freud respondeu: “Uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.
Nunca foi tão necessário um salto civilizatório que possa nos libertar definitivamente da barbárie.
 
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Am biental
Às vezes o que reluz é ouro https://bit.ly/3Ye45TD

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