11 março 2023

Doença da exaustão no trabalho

Como a síndrome de bournout se espalha no Brasil

País já o segundo mais afetado pela doença do trabalho, depois do Japão
Camille Lchotti/revista Paiuí

 

Numa noite de novembro de 2018, a operadora de call center Catiane Zimmermann teve certeza de que iria morrer. Quando o expediente já estava perto do fim, ela atendeu a uma reclamação que, nas suas palavras, era um “grande pepino”. Seguindo o protocolo, ela pediu o número do CPF e o nome completo do cliente. Ele se recusou a fornecer as informações e começou a hostilizá-la no telefone, debochando de seu emprego e chamando-a de “burra”. A certa altura, o homem disse que estava transmitindo a ligação por uma live no Facebook. Zimmermann começou a suar frio, sentiu dores no peito e dificuldade de respirar. Ela não sabia, mas estava começando a ter uma crise de pânico. Desorientada, pediu ajuda à sua supervisora, que a ignorou e mandou que continuasse trabalhando. Zimmermann piorou. Suas mãos começaram a tremer, o coração disparou e ela não aguentou mais a sensação de que morreria em segundos: encerrou a ligação abruptamente, desligou o computador, bateu o ponto e saiu o mais rápido que pôde.

“Se eu continuasse ali, ia ficar louca”, diz ela. Zimmermann refugiou-se em outro andar da empresa que, àquela hora, já estava vazio. Sentou-se num canto escuro de uma sala e tentou controlar a respiração. Quando uma colega lhe avisou pelo celular que a supervisora havia se ausentado por alguns momentos, Zimmermann aproveitou para voltar à sua estação de trabalho, pegar a bolsa e ir embora. Depois de chegar em casa, em Campo Bom, a 60km de Porto Alegre, passou horas sem conseguir dormir, ouvindo o eco de “uma barulhada na cabeça” e ruminando o que havia acontecido. Uma ligação como aquela, embora grosseira e agressiva, não era uma exceção. Mas ela nunca havia perdido o prumo daquela forma. Forçada pela necessidade de ter um salário, Zimmermann voltou ao trabalho no dia seguinte. Foi recebida como se nada tivesse acontecido.

Como os demais colegas, Zimmermann tinha uma rotina estressante. Trabalhava sob uma fiscalização implacável. Os chefes monitoravam até o número de vezes que cada funcionário ia ao banheiro – quem excedia as três pausas regulares, perdia pontos na avaliação de desempenho. Zimmermann ganhava pouco mais de um salário mínimo, trabalhava de segunda a sábado e ainda fazia horas extras constantemente, por exigência dos supervisores. (A jornada regular em call centers, de seis horas diárias, é reduzida por lei porque o trabalho é reconhecidamente desgastante.)

A precariedade do ambiente no call center chegou a tal ponto que o Ministério Público do Trabalho precisou intervir na empresa, a Toquefale (atual SX Negócios), braço de telemarketing da Getnet, companhia de pagamentos eletrônicos que surgiu como startup em Campo Bom e acabou vendida para o Grupo Santander. Investigada pelo Ministério Público, a Toquefale concordou em aliviar um pouco as condições de trabalho e assinou um documento em que se comprometia a deixar de contabilizar as idas ao banheiro e os intervalos para alimentação e descanso na hora de avaliar o desempenho.

O cérebro de Zimmermann ficou quatro anos cozinhando em fogo baixo até entrar em ebulição naquela noite de novembro de 2018. Ela foi contratada pela Toquefale em 2014. No início, atendia apenas casos relacionados a ativação de cartões e esclarecimento de dúvidas, mas logo passou a acumular outras funções. No segundo semestre de 2018, começaram os sinais de exaustão. Primeiro, insônia. Depois, bebida alcoólica à noite para dormir. Então, vieram as crises de choro. Por fim, os picos de ansiedade ao chegar ao trabalho. “Assim que eu ligava o computador, sentia um aperto no peito e o rosto arder”, relata ela.

Em agosto de 2019, nove meses depois da noite em que pensou que ia morrer, Zimmermann continuava sofrendo com o trabalho, mas decidiu finalmente procurar uma psicóloga. Já na primeira consulta, ouviu a explicação para o seu martírio: estava com síndrome de burnout. A causa de todo aquele sofrimento no trabalho era o próprio trabalho. Foi a primeira vez que Zimmermann recebeu um diagnóstico de natureza psicológica. Encaminhada a um psiquiatra, começou a tomar um antidepressivo para ansiedade e outro para a insônia – e levava um ansiolítico na bolsa para usar em caso de emergência. “Às vezes eu tomava um comprimido na pausa e voltava. Eu não queria mais estar ali, mas tinha que ir, né? No final, eu só conseguia atender se estivesse medicada”, diz.

Três meses depois, em novembro de 2019, de posse do diagnóstico de burnout, Zimmermann tentou obter uma licença no INSS. Na perícia médica, conseguiu o auxílio-doença por quinze dias, em razão de não ter condições de trabalhar, mas o perito não entendeu que ela sofria de burnout ou qualquer doença relacionada ao seu emprego. Quando voltou ao batente, ainda sem sinais de melhora, a médica da Toquefale lhe deu mais quinze dias de descanso e prometeu mudá-la de setor quando retomasse o trabalho. A promessa não foi cumprida. Um mês depois, no dia 2 de janeiro de 2020, Zimmermann, então com 39 anos idade, foi demitida sob a justificativa de que a empresa estava se renovando e seu perfil já não combinava com os novos rumos da firma.

Naquele mesmo ano, a Toquefale recebeu o selo Great Place to Work, concedido por um instituto de consultoria aos “melhores lugares para se trabalhar”.

No início de 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma nova versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), a bíblia das patologias, síndromes, lesões e causas de mortes. A publicação é usada pelos médicos para orientar os diagnósticos e, de forma geral, facilitar o acompanhamento de estatísticas de saúde no mundo. Na classificação anterior, de 1992, o burnout (traduzido oficialmente como “esgotamento”) ficava sob o guarda-chuva dos “problemas relacionados com a dificuldade de gestão da vida”, e era definido genericamente como “estado de exaustão vital”.

Como se tornou cada vez mais comum e relevante, a síndrome de burn­out entrou na pauta da 72ª assembleia da OMS, em maio de 2019, em Genebra, na Suíça. Ao final do encontro, que reuniu representantes de dezenas de países, a síndrome ganhou uma definição mais precisa: é “resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso”. Deixou de ser uma dificuldade “na vida” para ser uma dificuldade “no trabalho”. Antes dessa definição atualizada, o médico usava o antigo código de 1992 e devia deixar explícito que o esgotamento estava relacionado ao trabalho. Agora, com o código atualizado, a relação com o trabalho já está embutida no diagnóstico.

A nova definição da OMS incorpora duas questões relevantes. Primeiro, reforça que se trata de um estresse crônico, o que é diferente de um dia difícil no trabalho. Segundo, relaciona o burnout ao trabalho, e não a qualquer outro contexto. Mesmo assim, a popularização do burn­out, associada às exigências intermináveis da vida contemporânea, gerou uma banalização. Fala-se de “burnout parental”, “burnout conjugal”, “burnout pandêmico”. A saturação cultural do termo chegou a tal ponto que um blog norte-­americano, dirigindo-se aos fiéis que buscam adotar um comportamento cristão exemplar, lançou a pergunta: “Você corre o risco de ter burnout cristão?”

Ao delimitar que o burnout é um fenômeno exclusivamente ocupacional, a OMS trouxe uma inovação. Em geral, os pesquisadores da área preferem não discutir causas e origens de certas síndromes e doenças psicológicas. No caso do burnout, à diferença da depressão, a causa e a origem são inequívocas. O psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da instituição, elogia a decisão da OMS. “Criar nomes para novos transtornos é a regra na produção de diagnósticos, mas cravar que a etiologia é ocupacional é uma revolução”, diz.

Para o psicanalista, depois do advento dos antidepressivos e da medicalização da psiquiatria, evaporou-se a relação direta entre sintomas e forma de vida. “É como olhar para a depressão, por exemplo, e achar que se trata só de um déficit de certa substância no cérebro, como se não tivesse a ver com a vida que você leva.” A síndrome de burnout, na sua avaliação, é, antes de tudo, um sinal de que há algo errado na organização do trabalho. E se o trabalho é a causa de sintomas específicos, então é preciso mudá-lo. “Pensar no burnout dessa forma traz um problema sobre o qual devemos agir imediatamente. Como é possível uma jornada de trabalho de dezesseis horas num escritório de advocacia? Como é possível trabalhar com microgestão, com controle permanente? As pessoas vão aceitando porque isso começa a fazer parte da cultura do trabalho e ninguém denuncia com receio de não conseguir outro emprego.”

Como o trabalho desajustado é a causa do burnout, que pode dar origem a uma série de doenças psicológicas, existe uma figura a ser responsabilizada no fim das contas. Se foi a empresa quem adoeceu o empregado, então o culpado tem nome e CNPJ. “Você diz exatamente quem vai ter que pagar essa conta”, afirma Dunker. “Todo mundo está com medo de que essa discussão se transforme numa onda de processos judiciais. E é para ter medo mesmo porque ela virá.”

termo burn out surgiu como uma gíria no final da década de 1960, quando o movimento de contracultura chegou ao auge, e pretendia passar a ideia de alguém que consome a si mesmo em chamas de dentro para fora. O termo era usado para se referir coloquialmente aos efeitos devastadores do vício em drogas que deixavam os usuários “em estado de depressão, apatia ou agitação”. Era basicamente assim que o psicólogo Herbert Freudenberger vinha se sentindo na década de 1970, em Nova York. Ele trabalhava de 10 a 12 horas por dia em seu consultório e, depois desse expediente, ainda ficava até a meia-noite ajudando como voluntário numa free clinic, como são chamadas as unidades de saúde que atendem à população vulnerável nos Estados Unidos.

Observador afiado, Freudenberger identificou certos padrões de comportamento que via em si mesmo e no restante da equipe. Em 1973, publicou um artigo sobre o funcionamento da free clinic em que fazia voluntariado e descreveu suas observações. Para sintetizar em uma única palavra o conjunto de sinais físicos e comportamentais que ele e seus colegas sentiam, tomou emprestado o termo burn out. Usou-o como sinônimo de “esgotamento mental”. Entre os sintomas, identificou sensação de exaustão, fadiga, queda de imunidade, dores de cabeça, problemas gastrointestinais, insônia, falta de ar, descontrole emocional e frustração.

Freudenberger também percebeu uma notável mudança de personalidade. As pessoas com burnout, escreveu ele, tornavam-se raivosas, teimosas, inflexíveis. Irritavam-se facilmente e agiam co­mo se estivessem deprimidas.

Em seu artigo, escrito em tom autobiográfico, o psicólogo foi pioneiro em associar esses sintomas às demandas do mundo do trabalho. “A maior parte do que você faz lá [na free clinic] é fora do horário normal de trabalho […] Você começa um segundo trabalho quando a maioria das pessoas está voltando para casa […] E se dedica muito ao trabalho. Você exige isso de si mesmo, a equipe exige isso de você e a população atendida exige isso de você”, escreveu ele, mostrando o caminho para chegar ao burnout. “Como geralmente acontece, mais demandas são cobradas de cada vez menos pessoas. Aos poucos, cria-se a sensação, na equipe e em você mesmo, de que todos precisam de você. Você sente um comprometimento absoluto. Até que finalmente percebe, como eu percebi, que está em estado de exaustão.”

A exaustão a que Freudenberger se refere, conceito-chave do burnout, é ao mesmo tempo mental e emocional – mas não é física. “É o tipo de exaustão que não te deixa dormir”, definiu ele. Apesar de inicialmente usar sua experiência pessoal para descrever a síndrome, em 1980 o psicólogo já estava convencido de que o burnout não era um fenômeno restrito à free clinic. Tratava-se de uma crise maior, que, segundo ele, se espalhava rapidamente no plano coletivo e individual nos Estados Unidos.

Mais ou menos na mesma época, em 1976, a também psicóloga norte-­americana Christina Maslach, hoje professora emérita da Universidade da Califórnia em Berkeley, publicou um artigo na revista Human Relations para divulgar os resultados de uma pesquisa com assistentes sociais, trabalhadores do setor de serviços e da área da saúde. Maslach penou para encontrar uma publicação que concordasse em divulgar o artigo. Ela conta que várias revistas acadêmicas rejeitaram o texto de imediato, sob a alegação depreciativa de que se tratava de “psicologia pop”.

Na pesquisa, Maslach relatou ter encontrado os mesmos problemas que Freudenberger descrevera antes. A psicóloga resumiu o burnout como uma resposta ao estresse crônico no ambiente de trabalho. Essa resposta envolve três dimensões, as mesmas três que a OMS aprovou na assembleia de 2022: exaustão emocional, perda de sentido do trabalho e falta de realização pessoal no emprego. Em pesquisas posteriores, Maslach observou a ocorrência do fenômeno em uma variedade de profissões.

A síndrome de burnout pode acontecer com trabalhadores de qualquer ramo, mas atinge mais as mulheres. Uma pesquisa com 5 mil mulheres em dez países, publicada no ano passado, mostrou que 53% delas disseram que seus níveis de estresse estavam maiores do que no ano anterior e quase a metade classificou sua saúde mental como “ruim” ou “muito ruim”. Além do desajuste na cultura do trabalho, elas ainda acumulam os afazeres domésticos e, não raro, são totalmente responsáveis pela criação dos filhos. Uma carga tripla de trabalho.

Um exemplo categórico dessa dinâmica é a ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, que surpreendeu o mundo ao renunciar ao cargo em janeiro passado por causa da síndrome de burnout. Na coletiva em que, bastante emocionada, anunciou sua decisão, Ardern disse que não “tinha mais combustível” para enfrentar a carga exigida. Ficou cinco anos e meio no cargo e fez um trabalho estupendo durante a pandemia. Em entrevista à revista Forbes, explicou que sua renúncia decorria da dificuldade de equilibrar “expectativa e culpa” – sentimentos que permeiam a vida das mulheres, quase sempre em busca de fazer mais e mais em todos os múltiplos aspectos da vida.

Além de ser mais acentuada em mulheres, a síndrome de burnout tende a ter maior incidência entre pessoas que realizam trabalhos “mentais”. Segundo o médico do trabalho João Silvestre Silva-Junior, professor da USP e pesquisador do tema, a “probabilidade de encontrar casos de estresse mental no setor comercial de uma fábrica, por exemplo, é maior que no setor operacional, onde você encontra mais casos de estresse físico”.

O excesso de horas trabalhadas é uma das explicações óbvias para o esgotamento, mas está longe de ser a única. Cobrança excessiva de superiores imediatos, pressão para cumprimento de prazos e metas, acúmulo de tarefas, falta de reconhecimento e valorização profissional, injustiças no ambiente de trabalho, assédio moral e sexual, críticas não construtivas, perda de sentido da atividade, priorização do trabalho em relação à vida pessoal – tudo isso leva ao embotamento característico do burnout. Nos últimos anos, a hiperconectividade passou a figurar na lista, especialmente no período da pandemia, quando a adoção do home office abriu as portas para a troca de e-mails e mensagens corporativas fora do horário de trabalho.

O burnout não é propriamente uma doença, mas uma síndrome: um conjunto difuso de sintomas emocionais, psíquicos e comportamentais. Maslach ensina que seria um erro patologizar as pessoas que se mostram incapazes de lidar com exigências excessivas de trabalho – como se fosse possível “consertá-las” – em vez de discutir tais cobranças desmedidas. Em seu pioneiro artigo sobre a síndrome, Maslach constatou que as causas do fenômeno “estão enraizadas não nas características permanentes das pessoas, mas em fatores sociais e situacionais específicos, que podem ser modificados”. O esgotamento mental que Maslach viu avançar pelos Estados Unidos não era, portanto, um problema dos indivíduos. Era essencialmente uma questão das relações de trabalho. E os sintomas eram simplesmente uma resposta humana a condições de trabalho estafantes.

Ncall center da Toquefale, o trabalho de Catiane Zimmermann era um convite para a síndrome de burnout. Ela conta que os supervisores passavam pelos corredores entre as baias dos funcionários, segurando cadernos para registrar o desempenho de cada um, questionando quando alguém deixava de seguir o roteiro de atendimento e pedindo rapidez. “Eles faziam isso gritando. Gritavam o tempo todo para que você oferecesse produtos, e que diminuísse a fila de atendimentos”, diz. Segundo ela, era comum atender vários clientes pelo chat da empresa e por ligação de voz simultaneamente. “É como se você tivesse quatro pessoas com demandas diferentes na sua frente, falando ao mesmo tempo. Você tem que responder a todas, lembrar qual é o problema de cada uma e não perder nenhum atendimento.”

O clima de tensão era constante e a otimização do tempo era lei. De todo o mobiliário espalhado pela sala, o que mais incomodava Zimmermann eram os monitores de vídeo que mostravam os números de atendimento de cada setor em tempo real, assim como a fila de clientes à espera. “A tela do monitor mostra seu trabalho acumulando eternamente e as ligações não param de entrar. Assim que você termina uma, começa outra. E as pessoas já entram xingando. No meio disso tudo, ainda tem a gritaria no fundo”, conta Zimmermann.

Com os avanços tecnológicos, tornaram-se mais minuciosas as formas de medir o desempenho dos funcionários. A duração das chamadas atendidas era cronometrada e resultava num índice chamado de TMA, sigla de “tempo médio de atendimento”. Quanto menor o TMA, melhor o desempenho do funcionário. Em março de 2016, um supervisor mandou à equipe de Zimmermann um e-mail, ao qual a piauí teve acesso. Dizia o seguinte: “Não se apavorem quando chegarmos para ver o que estão atendendo por causa do TMA, isto vai ser cada vez mais comum.” Meses depois, ele enviou uma tabela com os indicadores de todos os empregados da equipe de Zimmermann. Junto, mandou uma mensagem avisando que aquela era a equipe que mais havia “queimado pausas” em toda a empresa – e que era preciso rever o quadro. Em seguida, a ameaça: “Se não batermos as metas, não tem PPR [Programa de Participação nos Resultados] para ninguém.”

A chefia usava dois sistemas para monitorar o cumprimento da escala de horários: o CUIC (abreviação em inglês de Centro de Inteligência Unificada da Cisco, empresa de tecnologia que fornece equipamentos para interligar redes de computadores) e o WFO (sigla em inglês para “otimização da força de trabalho”). Em uma barra horizontal, o WFO mostra os intervalos em que deveriam ser feitas as três pausas que os empregados tinham direito. Se interrompiam o atendimento fora do horário previsto na escala estavam “queimando pausas” – e eram cobrados por isso. Se desligavam o telefone no meio da conversa, estavam “derrubando ligações”.

Em 2 de abril de 2015, uma supervisora alertou por e-mail: “Tenho acesso ao WFO e ao CUIC, dois sistemas onde consigo visualizar TUDO que vocês fazem”. A supervisora detalhou que sabia quando os funcionários usavam a “pausa banheiro”, quando derrubavam ligações ou queimavam pausas. “Vocês DEVEM SEGUIR esta escala e fazer as pausas nos horários informados”, continuou ela. Os atendentes do turno de Zimmermann tinham direito a três pausas para descanso e lanche – duas de dez minutos cada, e uma de vinte minutos. Isso não incluía especificamente pausas para ir ao banheiro. “Já aconteceu muito comigo de colocar no sistema que eu ia fazer uma ‘pausa banheiro’ e ser cobrada do porquê eu fui tanto ao banheiro”, diz ela. Em outro e-mail, de 25 de fevereiro de 2015, uma supervisora cobrava Zimmermann por exceder a pausa de vinte minutos para o lanche.  Usou 27 minutos e 1 segundo. “Aguardo tua justificativa porque queimou a pausa do lanche”, disse a supervisora. No mês seguinte, a mesma supervisora fez outra advertência à equipe: “Preciso que vocês cumpram os horários, 10 minutos é 10 minutos, não é 10 minutos e 20 segundos, [ou] 11 minutos.”

Zimmermann não foi a única vítima do call center. Ela conta que um colega teve um acidente vascular cerebral, atribuí­do ao estresse do trabalho. Outra tentou o suicídio. Uma terceira foi protagonista de uma cena dramática no trabalho. “Ela foi para o banheiro e tentou cortar os pulsos com as unhas postiças”, diz Zimmermann. A piauí teve acesso a mensagens de WhatsApp antigas, trocadas entre colegas de trabalho. Em uma delas, uma funcionária comenta que estava “grogue” e não conseguia se concentrar. Em seguida, disse que acordava “toda arranhada” e que seu cabelo estava começando a cair.

Os dados oficiais do INSS mostram que o número de afastamentos do trabalho por “esgotamento” no Brasil passou de 65 em 2015 para 524 em 2020, o recorde da série histórica. Em 2021, quando a pandemia de Covid recrudesceu, os afastamentos caíram para 327. Mas em 2022 – ano em que os servidores do INSS ficaram dois meses em greve –, os números voltaram a subir e ficaram em 424. Até a primeira semana de fevereiro deste ano, foram 51 casos. Se o ritmo se mantiver, 2023 pode trazer um novo recorde.

A dimensão real da síndrome no Brasil, no entanto, é desconhecida e existem indicadores de que seja muitíssimo mais grave do que sugerem os dados do INSS. Uma pesquisa, realizada pela empresa Gattaz Health & Results e divulgada em outubro passado, informa que 18% dos profissionais brasileiros são acometidos pela síndrome. Mas em 2019, outra pesquisa da Associação Internacional de Gerenciamento de Estresse (Isma-BR) estimou que 32% da população economicamente ativa no país sofria de sintomas de burnout. Por esses números, o Brasil é o segundo país com mais casos, só atrás do Japão, onde a questão é particularmente sensível. (O karoshi – vocábulo japonês que significa “morte por excesso de trabalho” – é uma chaga nacional que começou a chamar atenção ainda na década de 1980, durante o boom econômico do Japão. O Conselho Nacional de Defesa para Vítimas de Karoshi recebe até trezentas ligações telefônicas por ano.)

“O Brasil não faz estudos populacionais oficiais de saúde do trabalhador e as próprias empresas não querem fazer esse tipo de avaliação para não trazer à tona esse assunto”, afirma João Silvestre Silva-­Junior que, além de professor da USP, atua como perito médico do INSS. “O número de afastados pelo INSS é só a ponta do iceberg”, diz ele. Além da carência de números, há outros obstáculos. Ao pesquisar os dados do INSS entre 2017 e 2019, Silva-Junior constatou que em 73% das licenças por “esgotamento” os peritos não reconheceram que o problema decorria das condições de trabalho. (Quando isso acontece, o trabalhador perde alguns direitos – entre eles, o depósito do FGTS durante o afastamento e a estabilidade no emprego por um ano.) E mesmo quando os peritos reconheceram o esgotamento como acidente de trabalho, em 43% dos casos não houve a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), o documento que formaliza a ocorrência de acidentes e doenças ocupacionais. A omissão beneficia os empregadores. “Se a mesma empresa tem muitos casos registrados de doença relacionada ao trabalho, ela tem que pagar mais impostos, como uma espécie de compensação aos cofres públicos, e também pode ser notificada pelo Ministério Público do Trabalho”, diz ele.

Por lei, a CAT deveria ser emitida pela empresa em todos os casos de adoecimento relacionados ao contexto ocupacional, mesmo que o trabalhador não seja afastado. Essa base de dados orienta ações de vigilância em saúde. Segundo Silva-Junior, muitos sindicatos ou centros de referência em saúde do trabalhador do sus se organizam para emitir a CAT por conta própria, cobrindo a omissão das empresas. “Se não houver o registro da CAT, o Ministério do Trabalho, o Ministério da Saúde e os sindicatos não conseguem fiscalizar. Se eles não sabem onde estão os casos, eles não podem intervir”, diz. Em nota, o Ministério do Trabalho e Previdência disse à piauí que “quando a empresa não emite a CAT, o perito médico tem autonomia para determinar se o afastamento se deu por um acidente de trabalho”.

Por tudo isso, os especialistas estimam que, abaixo da linha d’água, há um mar de gente esgotada que ainda não percebeu o problema ou não teve o diagnóstico correto. Os profissionais – nos consultórios, nos postos de saúde, nas perícias do INSS – ainda não estão bem treinados para identificar o burnout como uma questão ocupacional. “Você não pode dar um diagnóstico de burnout para uma pessoa que está sofrendo por outros motivos da vida pessoal”, afirma a psiquiatra Maria Francisca Mauro. Em seu consultório, numa área rica do Rio de Janeiro, pipocam executivos de alto escalão pedindo laudos de burnout. “Não tem um exame de sangue, uma tomografia, um raio x que vai dar esse resultado para nós. É um diagnóstico exclusivamente clínico, por isso é preciso ter muito cuidado.”

Há casos, porém, em que as evidências saltam aos olhos. Em 2019, o desenvolvedor de software Arthur Andrade, hoje com 29 anos, sentou diante de sua psicóloga e, pela primeira vez, fez um desabafo contando o que vivia no trabalho – excesso de horas trabalhadas, múltiplas funções, salário arrochado, humilhações públicas, boicote escancarado do chefe –, mas achava que eram dificuldades comuns em qualquer ocupação e tudo o que precisava fazer era engolir o choro e seguir em frente. A psicóloga imediatamente lhe deu um laudo de afastamento do trabalho por quinze dias e, na escala de 0 a 10 de nível de burnout que criara em suas pesquisas, classificou Andrade como nível 9, sendo que 10 significa letargia completa, bem próximo de um estado semivegetativo.

Andrade trabalhava numa empresa em Belo Horizonte – cujo nome ele pede para não ser mencionado “para não ter problemas”. Entrou como estagiário ganhando 1,4 mil reais e, sete anos depois, ganhava 2,2 mil. Ao longo do tempo, passou a acordar chorando todos os dias, deixou de praticar esportes e jogar com os amigos, e começou a ficar “distante”. Teve gastrite nervosa, transtornos alimentares, desregulação intestinal, ansiedade, crises de pânico. “O burnout é muito traiçoeiro porque você não percebe quando ele está começando. Quando vê, já está no limite”, diz ele.

Com ajuda da noiva e de sua família, Andrade conseguiu pedir demissão. “Meus médicos disseram que eu não tinha condições de ficar ali, tinha que sair imediatamente. Se eu ficasse lá por mais alguns meses, iria morrer”, diz. Fez tratamento psicológico, afastou-se de todos os gatilhos que davam origem ao seu sofrimento, dedicou-se a fazer coisas que antes lhe davam prazer e, depois de um ano, os sintomas mais agudos estavam superados. Hoje, Andrade trabalha remotamente como engenheiro de software sênior numa empresa de mídia norte-americana onde diz ter encontrado um ambiente de trabalho mais agradável. Ele ainda tem sequelas, mas venceu o burnout graças à ajuda psicológica, à rede de apoio consolidada e ao novo trabalho saudável – um combo inacessível para muitos.

A intervenção médica e o afastamento do trabalho são fundamentais, mas isso não coloca fim à máquina de adoecimento, explica o pesquisador João Silva-Junior, que propõe uma abordagem epidemiológica para enfrentar o burnout. “É preciso garantir que as pessoas possam permanecer em seus postos de forma segura e saudável, qualificando equipes de segurança do trabalho dentro das empresas”, diz ele. “Se não vira um círculo vicioso: uma pessoa adoce e se afasta do trabalho, daí você a substitui por outra e essa adoece também, e assim sucessivamente. Aonde vamos chegar com isso?”

Em 1869, o neurologista George Miller Beard descreveu um fenômeno emergente à época: a neurastenia, causada pelo ritmo de vida acelerado do seu tempo. As transformações no estilo de vida das grandes metrópoles decorrentes de inovações tecnológicas demandavam muito do cérebro das pessoas – e, concluiu Beard, as deixavam exaustas, reativas, hipersensíveis e irritadas. “A sociedade estava num estado de nervosismo constante naquela época”, diz o psicanalista Christian Dunker, da USP. “Não era uma explicação patológica, a neurastenia estava fora das doenças mentais. Era uma resposta normal às condições estressantes de vida. Ler essa descrição te faz pensar: ‘Caramba, estamos em 1860!’”, brinca ele.

No livro The Burnout Society, traduzido em português como Sociedade do Cansaço, o filósofo sul-coreano Byung-­Chul Han diz que cada época tem suas enfermidades fundamentais. Na sociedade pós-moderna, os indivíduos exploraram a si mesmos até se consumirem por completo, graças à busca incessante por um alto desempenho – medido, registrado e absorvido pela cultura do trabalho. Por isso, a síndrome de burnout – que Han chama de “colapso psíquico” – é central na paisagem patológica do século XXI. “O excesso de elevação do desempenho leva a um infarto da alma”, escreveu ele. O burnout é a nova neurastenia.

Para Dunker, não é coincidência que a síndrome tenha despontado na aurora neoliberal, entre os anos 1970 e 1980. “Houve um declínio da preocupação com o bem-estar do trabalhador. Essa ideia foi substituída por uma administração do sofrimento para aumentar a produtividade”, avalia ele, que organizou em 2021 o livro Neoliberalismo Como Gestão do Sofrimento Psíquico. A General Electric, um conglomerado empresarial gigante, é um caso exemplar. No passado, chegou a ser conhecida como “Generosa Electric”, porque valorizava o bem-estar dos funcionários. Em 1980, porém, tornou-se o oposto, quando Jack Welch (1935-2020) assumiu o comando da companhia e adotou uma política brutal de aumento da produtividade. Todos os anos, demitia os 10% menos competitivos e regalava com ações e bônus os 20% mais produtivos. Em duas décadas, a GE multiplicou seu valor de mercado à custa de um tratamento implacável de seus funcionários – e decaiu nas décadas seguintes. “Jack Welch acrescentou o medo na equação”, diz Dunker. “A gente se acostumou tanto a achar que o sofrimento é legal que até os lemas de produtividade mais recentes trazem isso. Por exemplo, ‘trabalhe enquanto eles dormem’, ‘saia da zona de conforto’. Qual o sentido de sair do conforto?”

Nas últimas décadas, a voracidade pelo desempenho se incorporou à cultura do mundo da produção – trabalhar muito, trabalhar até altas horas, não demonstrar qualquer sinal de vulnerabilidade. O quadro se agravou a tal ponto que algumas grandes empresas passaram a adotar medidas cosméticas para humanizar o ambiente de trabalho – com área de descanso, horários flexíveis e, em alguns casos, dão preferência por executivos que criam tempo em sua agenda para ir à academia ou jogar uma partida de squash. Na sede da Amazon, nos Estados Unidos, adotou-se uma ZenBooth (Cabine Zen), um pequeno estande onde o funcionário sobrecarregado pode refugiar-se do trabalho por uns momentos. No fundo, é um cenário distópico onde o trabalhador, feito um robô, recarrega sua bateria. No Brasil, já há empresas com cabines semelhantes, programas personalizados de meditação e mindfulness. São paliativos corporativos, que não fazem mal, mas deixam intocada a estrutura de trabalho que mói os trabalhadores.

O que prevalece, ainda, é um ritmo de trabalho que se assemelha à abordagem de uma startup, que demanda considerável autossacrifício por um curto período de tempo. No longo prazo, porém, isso é insustentável. No LinkedIn – a sucessolândia das redes sociais –, os usuários exercitam o marketing pessoal como se fossem marcas. No mundo real, para sobreviver num ambiente ferozmente competitivo, eles cultivam certo distanciamento emocional, como os “faria limers” robotizados. Esse jogo, no entanto, tem um alto custo emocional. “Você vai se desafetando e em pouco tempo já não sente satisfação ou prazer – até que todas as suas faculdades mentais estejam corroídas”, diz Dunker. “O burnout me parece ser o tipo de transtorno que introduziu para muita gente uma espécie de consciência sobre como funciona esse sistema.”

A publicitária Caroline Miltersteiner, de 34 anos, é a personificação dessa cultura. Em 2014, leu pela primeira vez sobre burnout numa reportagem que mostrava doze sintomas da síndrome. Ela tinha todos. Seu colega de trabalho, também. “Rimos e brindamos com energético”, lembra ela. “Eu realmente achava que era um mérito. Afinal, eu estava dando sangue, suor e lágrimas pela empresa. Esse era nosso lema.” Miltersteiner dava tudo de si no trabalho porque deveria provar que merecia o posto. “Eu tinha que fazer mais que todos os outros porque era mulher, jovem e não era bem-nascida.”

Depois de três anos sem férias, doze horas de trabalho por dia, incontáveis horas extras sem remuneração, tomando uísque à noite para dormir, convivendo com colegas com princípio de infarto antes dos 40 anos, tomando remédio para depressão e ansiedade, tratando-se de uma compulsão alimentar – enfim, Caroline Miltersteiner teve uma ideação suicida quando pensou em furar o sinal de vermelho numa rua de Porto Alegre. Pediu demissão em plena Black Fri­day de 2015 e, no ano seguinte, mudou-se para a Holanda, onde, pela primeira vez, recebeu o diagnóstico de burnout. Hoje é influenciadora sobre o assunto. “Eu comecei a escrever porque precisava colocar para fora”, diz ela. Miltersteiner, que pediu à piauí para não revelar o nome da empresa para a qual trabalhou por razões jurídicas, tem um blog, onde posta conteúdo sobre burnout, e já escreveu um livro sobre sua experiência.

Em 2020, ainda na Holanda, ela fundou o grupo Burnoutados Anônimos. Eles se encontram virtualmente uma vez por mês para compartilhar experiências, aflições, frustrações e dicas para seguir em frente. Essa dinâmica não substitui o tratamento com profissionais. Segundo Miltersteiner, é uma forma de mostrar para os “burnoutados” que eles não estão sozinhos. Nas conversas surgem desabafos sobre os mais variados temas: os problemas com o INSS, o medo da perícia médica, as dificuldades para encontrar o tratamento correto, falta de apoio da família. Nas reuniões, que são abertas, aparecem pessoas de todos os lugares do Brasil, de jovens de 18 anos a adultos com mais de 50. São jornalistas, médicos, enfermeiros, professores, gerentes, atendentes que, na tela do computador, formam um mosaico eloquente da falência das relações trabalhistas.

Os especialistas dizem que assegurar direitos trabalhistas básicos ajudaria a prevenir o burnout, na maioria dos casos. A agenda 2030 de metas da ONU tem um item específico sobre precarização e trabalho saudável. “Mas o que a gente vê, na prática, são cenários de regressão”, avalia o médico do trabalho Silva-Junior. “Quando você fala de teletrabalho, as pessoas não têm mais oito horas de jornada. Isso é precarizar. Quando você oferece uma vaga terceirizada sem acesso a direitos trabalhistas, isso é precarizar.” E estão incluídos nessa conta os trabalhadores de aplicativo, eufemisticamente chamados de “empreendedores de si mesmos”.

No Brasil, a reforma trabalhista de 2017 manteve a jornada de 44 horas semanais, mas permitiu o expediente de 12 horas diárias (antes o máximo era de 8 horas). Alguns estudiosos do assunto defendem que a mudança não foi tão grande. Outros argumentam que a medida deixou de considerar os demais aspectos da vida do trabalhador brasileiro, como o tempo gasto em deslocamento, que, somado às 12 horas diárias, pode resultar em até 16 horas diárias gastas em função do trabalho.

A reforma também permitiu a terceirização para qualquer atividade e o chamado trabalho intermitente, em que a prestação de serviços não é contínua. Ou seja, o trabalhador é contratado por dias ou por horas, pelos quais terá direito a benefícios trabalhistas, mas, fora desse período, não receberá remuneração, nem benefícios. Além disso, o Brasil ainda não está na lista dos países que já incorporaram as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, entre outros aspectos, protegem o direito de sindicalização, estabelecem horas de trabalho em setores específicos e preconizam igualdade de tratamento entre homens e mulheres.

Como o INSS não reconheceu que seu problema era uma doença do trabalho, Catiane Zimmermann, a atendente de telemarketing em Porto Alegre, processou o instituto. As partes fizeram um acordo. “Eu só fiz o acordo porque senão eu ficaria sem dinheiro, mas no processo contra a empresa eu não aceitei acordo”, diz. Com apoio do sindicato, ela processou três empresas: a Toquefale, a Getnet, que contratava os serviços de telemarketing, e o Grupo Santander, que detém as ações da Getnet. Entre multas, ressarcimento por horas extras não pagas, danos morais e honorários advocatícios, ela pediu 140 mil reais, divididos em dois processos.

A Getnet entrou com uma solicitação para ser retirada da reclamatória trabalhista, alegando que não tinha responsabilidade jurídica sobre o caso. Ainda assim, seus advogados fizeram questão de dizer que Zimmermann resistia às orientações que recebia no trabalho, era “muito negativa”, tinha liberdade para ir ao banheiro quando quisesse e não sofria da síndrome de burnout. “[Ela] encontra-se em psicoterapia […] para tratamento de ansiedade […], que não é um sintoma de quem é acometido pela síndrome de burnot [sic].” O pedido de exclusão do processo foi negado. A defesa do Grupo Santander disse que não poderia responder à ação porque não era empregador. A Justiça também rejeitou o argumento.

Um perito médico foi convocado pela Justiça para avaliar o quadro de Zimmermann e confirmou o diagnóstico de burnout. No laudo anexado ao processo, ao qual a piauí teve acesso, o psiquiatra classificou os sentimentos de Zimmermann como “tristes” e “ansiosos” e reconheceu, nos 45 minutos de avaliação, sinais de apatia, avolia – falta de vontade de iniciar qualquer atividade – e choro fácil. Também identificou episódios depressivos, desencadeados pelo trabalho, que a incapacitam de voltar a trabalhar.

Apesar de já estar há mais de dois anos afastada, Zimmermann não se recuperou por inteiro. “Eu era uma pessoa extrovertida, gostava de ouvir música, ia a todos os eventos da família. Eu gostava de ir ao Centro, andar pelas lojinhas. Tinha uma vida. Hoje já não gosto mais de ouvir música, qualquer barulho me incomoda e nem consigo ficar muito tempo no computador ou atender telefone”, relata. “Queria voltar a ser a pessoa que eu era. Olhar para fora e sentir que existe vida.”

Atualmente, ela toma um antidepressivo e um estabilizador de humor pelas manhãs. À tarde, toma outro estabilizador de humor. Para dormir, outro antidepressivo. Além disso, sempre carrega uma caixa de ansiolítico para emergências, caso sinta alguma angústia ou “coisa ruim”. Zimmermann gostaria de voltar para a faculdade de direito, mas não tem certeza se conseguirá retomar os estudos. Depois do burnout, a sensação de incapacidade passou a assombrá-la.

Na Justiça, a audiência sobre seu caso foi adiada duas vezes. A demora levou Zimmermann a crises de ansiedade severas, a ponto de se automutilar. “Só de pensar que eu poderia ver a minha antiga supervisora ou as pessoas do trabalho na audiência, mesmo online, eu já ficava em pânico e começava a chorar”, diz. Em outubro do ano passado, finalmente a audiência aconteceu. Zimmermann levou três testemunhas, incluindo a presidente do sindicato dos trabalhadores em telemarketing do Rio Grande do Sul, que acompanhou todo o seu caso. (Antes do burnout, ela não gostava do sindicato e se irritava diante da ideia de se filiar a uma organização coletiva. Depois que adoeceu, mudou de opinião.)

As três empresas foram condenadas a pagar 45 mil reais, somando os dois processos. O juiz também determinou que a SX Negócios, sucessora da Toquefale, emitisse a CAT com a descrição da doença ocupacional de Zimmermann, reconhecendo oficialmente que ela teve burnout, e assumindo formalmente a culpa pelo adoecimento. Na sentença, prolatada em janeiro de 2023, o juiz reconheceu que a atendente tinha que cumprir metas “inalcançáveis” e que “não há qualquer dúvida” quanto ao nexo causal entre a atividade de Zimmermann e seus sintomas, que compõem “uma das formas mais severas de doença ocupacional de natureza psíquica”. As empresas ainda podem recorrer da sentença.

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_198 com o título “A nova neurastenia”.

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