PARA DESCOLONIZAR AS
LETRAS NA AMÉRICA LATINA
Professor
e pesquisador reflete sobre contribuições de autores afrodescendentes na
América Latina
Rogério Mendes/Continente
Ao longo dos últimos cinco séculos, os
valores preconizados pela modernidade alimentaram a consciência e atuação
centralizada do eu. Na segunda
metade do século XX, a Crítica Pós-Colonial e os Estudos Culturais sugeriram a
relevância da inclusão do outro em seus
projetos críticos e criativos. Nos dias atuais, nota-se cada vez mais
importante considerar articulações críticas que protagonizem a responsabilidade
da atuação centrada no nós. No entanto,
para isso, é preciso perceber com atenção os que não foram ouvidos e ouvi-los;
entender suas formas de pensar e admiti-las não apenas como consulta, mas,
sobretudo, elucidação e tornar possível o que aqui se compreende “pedagogia da
escuta”.
Pensemos sobre como somos
educados a partir das Letras e Humanidades. Contextualizemos a América Latina e
consideremos a afrodescendência, plataforma relevante no processo de formação
das sociedades e literaturas latino-americanas. É estranho admitir uma
sensibilidade crítica ou historiografia da literatura latino-americana que
ausenta ou minimiza as contribuições éticas e estéticas dos africanos e
afrodescendentes. Como se elas não existissem ou tivessem pouca relevância. Não
reconhecer a importância dessas contribuições significa não (re)conhecer da
maneira devida legados que tornaram possíveis a história cultural, social e
diversa latino-americana e torna possível uma educação responsável e
comprometida.
O destaque ao diverso na
articulação de projetos críticos e criativos que buscaram validar uma intelligentsia que
respaldou o que poderia ser compreendido como um “humanismo latino-americano”
ainda é, talvez, um dos esforços mais significativos para a consolidação de um
pensamento crítico em sintonia com valores históricos e culturais da América
Latina. Pois, seria contraditório afirmar um humanismo latino-americano
desprovido das suas várias humanidades.
Isso significa, portanto,
que as referencialidades dos valores dos povos originários e afrodescendentes
estejam visíveis e reconhecidas em suas linguagens como representação. Um senso
crítico eurocentrado em seus valores e difusões, ao longo da história,
predominantemente na América Latina agravou racismos e polarizações entre os
mundos ocidentais e não ocidentais. Fomos, somos, também por isso, educados a
partir de pautas, traumas e matrizes das humanidades distantes de nossas
realidades.
Os traumas civilizacionais
experienciados ao longo da História são importantes porque podem converter-se
em marcos teóricos relevantes, contribuindo para o amadurecimento de indivíduos
e sociedades. Da mesma forma que reconstruir as humanidades após as grandes
guerras e holocausto foi importante para a Europa no século XX, pensar o trauma
da colonização para a América Latina ao longo de cinco, seis séculos seria
igualmente importante. Quem, se não os latino-americanos, poderia fazê-lo? Por
que não reconhecer os prismas das complexidades latino-americanas como
prioridade e destacar os originários e afrodescendentes já que estiveram
ausentes do mosaico multiconstitutivo das humanidades latino-americanas?
Elaborar sensibilidades críticas,
epistemologias, visibilizá-las e integrá-las como patrimônio intelectual
indelével e representativo é importante para fundamentar autonomias de
pensamento comprometidas com sua própria História entre insuficiências e
potencialidades. É desconfortável observar as atenções majoritárias no
reconhecimento de bases comprometidas com as insuficiências e potencialidades
de outras Histórias como referencial educativo e modelar. Nesse sentido estamos
bem avançados, apesar do pouco prestígio e reconhecimento.
Intelectuais e
pesquisadores afro-latino-americanos, especialmente do Brasil, têm ganhado
destaque e relevância na criação de conceitos que ajudam a entender a complexa
relação entre a cultura letrada e afrodescendência ao longo da História. Vale
aqui destacar o trabalho de alguns pensadores: Filosofia da ancestralidade,
de Eduardo Oliveira; Pedagogia da encruzilhada,
de Luiz Rufino; Inscritura, de
Amarino Queiroz; Literatura de terreiro,
de Henrique Freitas; Afrorrealismo, de
Quince Duncan (Costa Rica) e Malungage/maroonage,
de Jerome Branche, apenas para citar alguns.
Há, na literatura
afro-latino-americana, escritores que se ocupam tão somente do comprometimento
estético e alinham a representação de suas éticas ao que se define tão somente
ao estético. Porém, há demandas de escritas que priorizem e alinhem-se,
prioritariamente, a vínculos éticos, ancestrais, e descolem-se da estabilidade
das relações catalográficas e enciclopédicas dos manuais críticos e
historiográficos e aproximam-se do que se compreende como cultura popular.
Nessas escritas
encontram-se linguagem e narrativas outras necessárias à compreensão das
cosmogonias e cosmovisões africanas e seus legados, muitas vezes despercebidos
nas representações literárias que se articulam como fundamento crítico de si
mesmas e dos fatores políticos e culturais que as exclui. Por que não ouvir os
afrodescendentes em seus interesses e lugares de expressão sem que haja
predisposições e livres interpretações a priori? Por que
não estudar suas cosmogonias e cosmovisões e admiti-las como são?
***
Não é surpreendente
perceber que, entre um número considerável de indícios que explicam a
dificuldade de (re)conhecimento das contribuições culturais originárias e
afrodescendentes como linguagem e relevância, a escrita assume destaque e
elucidação. Explica-se: a escrita teve papel decisivo no processo de formação
das sociedades latino-americanas, ao mediar as relações metropolitanas com os
espaços coloniais. A ocupação dos espaços coloniais pelos ordenamentos
militares, religiosos e burocráticos viabilizou-se pela escrita como poder. Do
ponto de vista histórico, a escrita vincula-se à ideia de autoridade e exclusão
sobre os que não acessam seus códigos. Assim, culturas e etnias outras,
originárias e afrodescendência, foram hierarquizadas e subalternizadas e até os
dias de hoje continuam marginalizadas pela cultura letrada.
Eis a instauração da
lógica da modernidade na América Latina: a escrita, signo de leis, dogmas e
domínio ocidental sobre os não ocidentais. Dos equívocos das arbitrariedades
presentes nas textualidades e ações dos navegadores, conquistadores e
evangelizadores na América Latina às diretrizes legalistas dos burocratas
colonizadores, que
estruturaram o que o crítico literário uruguaio Angel Rama chamou de “A cidade
letrada” (RAMA, 2015, p. 37), a escrita fixou éticas e estéticas outras,
usurpando o que antes se reconhecia autônomo e genuíno em Abya
Yala, que, após os registros das cartas de Américo Vespúcio,
passou a ser reconhecida como América.
O que fazer com os valores
e patrimônios que sustentam culturas milenares que não se manifestam apenas
pelas letras e são marginalizadas por aqueles que manejam tão somente a
escrita?
A permanência e evolução
de um sistema de códigos em territórios periféricos, letramentos ocidentais nas
colônias latino-americanas, favoreceu a criação e manutenção de referências que
se tornaram motivos educacionais em linguagens que até os dias de hoje
atualizam-se e mantêm-se como marcos civilizatórios referenciais que
desconsideraram a autonomia de culturas particulares, a exemplo dos
afrodescendentes, em razão do projeto político universalista alheio à
importância das alteridades no processo de formação das sociedades. Na prática,
tratou-se de um modus operandi que
estabeleceu bases do que a historiadora e crítica literária mexicana Jean
Franco (2009, p. 7) chamou de “colonização do imaginário”.
É importante ressaltar
que, antes do contexto colonial das Américas e África, havia a cultura das
oralidades, originárias e africanas, que se articulavam a partir de outras éticas
e valores; mobilizavam outros afetos e relações e vivenciavam pedagogias
fundamentadas em outras cosmogonias e cosmovisões. As imagens, imaginações e
imaginários que configuravam sentidos e existência nesse contexto eram
possíveis sem o manejo da escrita. O conhecimento ancestral de Abya
Yala e Afrika não era
cartesiano, logocêntrico ou articulador de pretensões políticas universalistas.
Por que depois tiveram que passar a sê-lo? O processo de homogeneização
cultural no mundo, fundamento ou estratégia de expansão política da
modernidade, prejudicou o desenvolvimento, a liberdade e soberania de culturas
que hoje reivindicam direitos de existir e isonomia.
Não foi possível as
culturas originárias, e as africanas/afrodescendentes, contarem suas versões
dessa história porque o acesso a ela requeria o conhecimento douto em idiomas
outros e domínio de escritas. Por essa razão, ao longo do tempo colonial, a
escrita relacionou-se ao triunfo da política sobre a diferença. Agora, faz-se
importante observar o que pensa a diferença sobre a política que a afasta do
mundo o que se consideram as “outras pessoas”. Isso significa considerar a
participação ativa de um número cada vez mais crescente de intelligentsia de
vozes críticas cada vez diversa, periférica e preta.
***
Antes da chegada dos
colonizadores ibéricos em Abya Yala, hoje
conhecida como América Latina, já existiam centros de educação superior, como é
o caso do Calmecac Asteca que, posteriormente, teve seu modelo dedicado à
cultura originária suprimido pelos modelos educacionais de centros de estudos
superiores ocidentais durante o período de colonização.
A primeira universidade a
ser implantada na América Latina, a Universidade de Santo Domingo, data do ano
de 1538, século XVI, em Santo Domingo, na República Dominicana. Depois
seguiram, em 1551, a hoje conhecida Universidade Nacional Mayor de San Marcos,
em Lima, Peru; a Real y Pontificia Universidad de México, hoje Unam, na Cidade
do México, México. No Brasil, curiosamente, o primeiro centro de ensino
superior a ser declarado universidade foi a Universidade de Manaus, em 1909.
Em quase cinco séculos, o
projeto das agências de conhecimentos superiores passou por quatro fases: a
universidade colonial, a republicana do século XIX, a do século XX e a do
projeto neoliberal para o século XXI. Note-se que em todas as fases os projetos
trabalharam para a manutenção do modus operandi e vivendi da
elite criolla –
geração de estrangeiros colonizadores e assentados na América Latina – e
exclusão dos nativos originários e escravizados no processo de formação das
sociedades latino-americanas. Naturalmente, essa estrutura traz desdobramentos
para o desenvolvimento humano da diversidade latino-americana.
Em tempos recentes, os
povos originários e afrodescendentes, a partir de políticas públicas e outras
oportunidades solidárias de inclusão, aprenderam o domínio do idioma
colonizador e adentraram à Cidade Letrada.
Passaram a ocupar e conduzir espaços acadêmicos e, consequentemente, políticos,
formativos, editoriais, virtuais e afetivos, além de formalizarem versões
adversas sobre a história oficial do país que não havia sido contada. Se,
durante séculos, não foi possível ouvir e reconhecer a pertinência das vozes
originárias e afrodescendentes pela cidade letrada, nos tempos atuais, a
situação é diferente. É possível não apenas ouvir e reconhecer a pertinência
das vozes em destaque, mas dar a elas protagonismos. É preciso dar ao mundo a
justa história das várias inteligências em suas várias histórias e
perspectivas.
Não reconhecer patrimônios
culturais diversos, como o da afrodescendência, contribuiu, através dos
planejamentos e políticas educacionais, para a permanência, disseminação e
continuidade de heranças e lógicas culturais que privilegiam hierarquizações
culturais e manutenção de privilégios de posições sociais sustentadas pela
prevalência de razões e valores históricos arbitrariamente impetrados.
Observa-se, contudo, ímpetos e esforços para a inclusão e valorização das
cosmogonias africanas, afrodescendentes e originárias na galeria de saberes
institucionalizados. Há, na cultura afro-latino-americana, escritores que se
ocupam tão somente do estético e alinham a representação de suas éticas ao que
se define como estético. Porém, há escritas que priorizam vínculos éticos,
ancestrais, descolando-se da estabilidade das relações catalográficas e
enciclopédicas dos manuais críticos e historiográficos elitizados, ao mesmo
tempo apresentando-se próximas do que se compreende como cultura popular. A
aproximação da cultura letrada, acadêmica, com a cultura popular e periferias
pode ser um movimento de grande importância de compreensão de quem somos,
podemos e fazemos.
No entanto, a cultura
popular ainda permanece distante dos interesses elitizados do campo das Letras.
Uma lástima, porque nela encontram-se narrativas necessárias à compreensão das
cosmogonias e cosmovisões africanas e seus legados como filosofia e linguagem.
Resposta ao que não alcançam os manuais de historiografia e crítica literária
vigentes. Ao invés de instituir, previamente, os critérios de reconhecimento de
legitimidades culturais e literárias, seria valioso pensar o que se pode
considerar uma “pedagogia da escuta”. Por que não ouvir os afrodescendentes em
seus lugares de expressão? Por que não estudar suas cosmogonias e cosmovisões
segundo eles mesmos? Por que não ouvir os pretos e pretas sobre como operam
suas narrativas? Admitir outras formas de linguagem e pensamento no intuito
elucidar estéticas ainda não compreendidas poderia ser um caminho responsável
para as humanidades latino-americanas e afrodescendentes.
ROGERIO MENDES, professor responsável pelas disciplinas de Literatura e Culturas
Hispânicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/FELCS) e líder
do grupo de pesquisas Outras Literaturas Hispânicas” (UFRN/FELCS/CNPq) @outras_literaturas_hispanicas.
Impossível
explicar a vida num verso curto https://bit.ly/3Ye45TD
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