O homem morre antes das baleias
Cícero Belmar
Talvez você não seja fã de Roberto Carlos. Ainda assim, é impossível ouvir As Baleias sem se emocionar. A canção é de 1981 e foi feita em protesto à caça do animal marinho. O cantor se dirige aos baleeiros, dizendo não entender como eles podem vê-las agonizando, depois de atingi-las com um arpão, e não sentir remorso: “Não é possível que você suporte a barra”.
A matança de baleias ocorria com frequência em fins dos anos 1970 e início dos 1980, sobretudo no continente asiático. “Não é possível que no fundo do seu peito o seu coração não tenha lágrimas guardadas”. Por causa do tamanho das baleias, a pesca era cruel. Continua sendo.
As baleias gritam no mar como pessoas que morrem sem ter a quem pedir socorro. A música expressa essa revolta. A caça vinha reduzindo a quantidade de baleias nos oceanos e o motivo da caça era infame: comer a iguaria. Quem vendia, empapava os bolsos de sangue e quem pedia carne de baleia, em restaurantes, arrotava arrogância e boçalidade.
“Seus netos vão te perguntar em poucos anos pelas baleias que cruzavam oceanos, que eles viram em velhos livros ou nos filmes dos arquivos”. Hoje, a música não me sai da cabeça. Chegou ao meu WhatsApp um texto que eu preferiria fosse fakenews. É uma denúncia, com um manifesto para sensibilizar a opinião pública.
Dá conta de que a distante, gélida, triste, porém bela Islândia, um país do Norte da Europa, concedeu ao milionário Kristján Loftsson licença para assassinar 128 baleias vulneráveis. Fala-se tanto em país rico, de gente fina e educada, que a gente até pensa que no paraíso só existam santos.
Santas são as baleias: elas se comunicam por música. Li, certa vez, que cientistas descobriram que as gigantes marinhas têm um órgão vocal, que lhes permite cantar debaixo d’água. Para nós, humanos, são cantos assustadores, pois lembram o rugido das feras. Mas, não deixam de ser cantos. Assustador mesmo é o espírito daqueles que matam baleias.
O texto do manifesto, que me enviaram, diz que as baleias podem levar até duas horas para morrer, depois de serem atingidas por um arpão. São duas horas de dor lancinante e muito sangramento. Há estudos que dizem que o sofrimento é tão grande quanto o tamanho delas. Quem vende ou come carne de baleia, alimenta-se dessa dor. São pessoas que não têm mais restrições morais.
Não é a primeira vez que a Islândia, com suas paisagens exuberantes, é cenário dessa selvageria. Eu lembro de já ter lido, tempos atrás, notícias dando conta de que o país, ao lado do Japão e da Noruega, são os que mais praticam essa caça que envergonha a humanidade. Nós, que somos informados, somos apenas testemunhas passivas desse exemplo de desumanização.
Num exercício mental e utópico, imagino a cena de um caçador que acabou de matar uma baleia. Ele ficaria contemplando o cadáver, que boia nas águas vermelhas e digamos que ainda lhe reste uma faísca de humanidade. Na minha imaginação, o homem se coloca na pele do animal, que horas antes cantava submerso no oceano. Sente-se um merda, pois descobre que a maldade fundamental do seu coração é um pântano.
Que bobagem, essa cena é impossível. Isso nunca ocorrerá. Na verdade, ele está satisfeito, a baleia morta é o seu troféu. O homem não consegue mais ter consciência da própria perversidade e jamais se sentirá na pele do animal morto: caçador de baleia é uma espécie de zumbi.
[Ilustração: André Masson]
*Jornalista, escritor; membro da Academia Pernambucana de Letras
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