Crime e castigo para além do drama de Dostoievsky
Enio Lins
Manchete postada pela Revista Fórum, no dia 6, soluça: “O caso Sílvio Almeida e nossa tragédia”, avaliando: “Neste momento, duas pessoas negras (...) estão envolvidas num caso como esse, o resultado sempre é de derrota para quem se dedica à defesa dos direitos das mulheres, dos direitos humanos. Os únicos vencedores são os racistas, fascistas, neonazistas”. Sim, a direita vai deitar e rolar – como qualquer adversário faz quando o outro lado comete qualquer deslise, independente da gravidade. No entanto, isso não pode ser entendido como “vitória da direita, do patriarcado, de racistas, fascistas, neonazistas” e carpido como “nossa tragédia!!”. Seria trágico se não fosse enfrentado. Mas a denúncia está sendo exemplar e firmemente encaminhada, sem paternalismos, pela instância de poder a qual o notável i ntelectual era vinculado, exonerado do cargo por este motivo.
MITOS DA ESQUERDA
Velho ensinamento, jamais entendido pelas mais variadas militâncias, é que combatentes das causas mais avançadas não estão imunes a erros, equívocos e crimes. Refletindo o mito cristão da santidade humana, a esquerda tende a considerar suas lideranças como figuras sacrossantas. Essas pessoas “perfeitas” não teriam defeitos. Tratar-se-ia de uma “beatitude revolucionária” sem tons de cinza, no velho desenho maniqueísta: ou é-se totalmente bom, do bem, ou totalmente mau, do mal. Esse desvio de compreensão foi ampliado com o avanço das crenças identitárias, onde raça, gênero, orientação sexual passam a ser o eixo ideológico e principais qualificadores dos posicionamentos. Sílvio Almeida foi do preto ao branco num átimo, pulou do absolutamente positivo para o absolutamente negativo – por conta dos pr&oa cute;prios erros, sim. Mas seu erro – pelo denunciado até agora – é pessoal e não coletivo, e precisa ser tratado como tal, sem resvalar para as causas por ele defendidas.
MITOS DA DIREITA
Neste cenário, em que parte da esquerda se sente ferida, não se pode seguir o exemplo da direita, cujos ídolos têm – desde sempre – carta branca para o cometimento de quaisquer falcatruas, crimes, e até posicionamentos antagônicos com as próprias causas defendidas. O Nazismo, por exemplo, em seu machismo exacerbado a ponto de despachar gays para os campos de concentração, teve entre seus líderes mais proeminentes homossexuais assumidos como Ernst Röhm. No Brasil atual, o mito-mor da direita se diz patriota e bate continência para a bandeira dos Estados Unidos; tem 101 imóveis inexplicavelmente registrados em nome de sua família, mas é considerado sinônimo de honestidade... Para a direita não existe problema ético nem denúncia comprovada que não possa ser resolvida com dois vocábulos e uma exclamação: “É men tira!” ou “Fake News!”. Esse cinismo profundo, em nenhuma hipótese, pode ser copiado pelo largo espectro ideológico democrático, que vai do centro à extrema-esquerda (mas também não é o caso de reviver os Gulag).
ERROU, TEM DE PAGAR
Sílvio Almeida, um dos mais importantes intelectuais contemporâneos brasileiros, ativista combativo, referência internacional da luta contra a discriminação racial, está pagando alto. Sua reputação rachou de banda a banda pelos critérios que ele mesmo professa. E, ao contrário de criminosos contumazes que alcançam “a redenção” ao colocarem um exemplar da Bíblia debaixo do braço (prática recorrente à direita), na margem canhota não existe misericórdia para um delito desta ordem – jamais será perdoado, e somente ele próprio poderá reescrever sua biografia. Difícil, mas possível.
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