Geografia da Insanidade na Metrópole
É necessário estimular o debate sobre possibilidades e alternativas que viabilizem uma cidade mais justa para todas as pessoas. Devemos reconhecer que a precarização do trabalho é acompanhada pela precarização de outras esferas. No fim das contas, o que temos é a precarização da vida
Giam C. C. Miceli/Le Monde Diplomatique
Antes de qualquer coisa, é fundamental dizer o que chamo de Geografia da Insanidade. A Geografia, antes de disciplina escolar, deve ser reconhecida como ciência e, também, como forma de observação. É através dessa ciência e dessa observação que teorias vão sendo criadas com o objetivo maior de oferecer ferramentas para análises espaciais diversas.
Diante da necessidade de definir um recorte para que seja possível compreender quais aspectos abordo, já que é impossível tratar a metrópole em sua totalidade, faço a opção política de considerar a tríade segregação-deslocamento-precarização. Não há como pensar a metrópole enquanto o espaço insano sem levar em conta que se trata de um ambiente profundamente marcado pela desigualdade. Há o espaço onde os ricos querem morar e o espaço onde os pobres podem morar. A classe média vai se encaixando em algumas fábricas de ilusões (sempre com piscina) ou em bairros que, com o tempo, foram se desvalorizando. Não seria exagero afirmar que muitas metrópoles capitalistas são colchas de retalhos mal feitos e disformes.
Considerando toda a fragmentação que perpassa os espaços metropolitanos e todo o processo de produção de segregação – como escolha ou imposição -, não há como dissociar o espaço da metrópole com os deslocamentos diários casa-trabalho-casa. Afinal, esse é um elemento importante ao se falar sobre uma possível Geografia da Insanidade. É válido lembrar que a oferta de transportes produz um impacto considerável no custo de vida. Quem pode pagar, que pague. Quem não pode, vai sendo empurrado para áreas periféricas, onde a oferta vai escasseando gradativamente.
A precarização, por sua vez, entra como consequência e condição de permanência e realização de todo um processo de produção e reprodução de desigualdades no espaço da metrópole. A metrópole precisa de processos de precarização. Neste ensaio, a ênfase está nos mecanismos de produção e reprodução do trabalho precário via aplicativos. Todavia, devemos reconhecer que a precarização do trabalho é acompanhada pela precarização de outras esferas. No fim das contas, o que temos é a precarização da vida.
A cidade do Rio de Janeiro que, talvez por cinismo, recebeu a alcunha de “cidade maravilhosa”, é um exemplo de como a tríade segregação-deslocamento-precarização se manifesta da forma atroz há muito. A título de exemplo, ofereço, aqui, um trecho de uma publicação do jornal A Noite, do dia 04 de abril de 1938, edição de número 9.391: “A novidade é a criação de ‘Brasiluz’, a mesma fábrica que criou os candelabros ornamentais da Praça Paris, bem como aqueles que resplendem ao derredor de nossos mais importantes monumentos. A remodelação em estudos, na Avenida Atlântica, suprimindo os atuais combustores de três focos, antiquados, deselegantes e obsoletos para a cidade moderníssima em que vivemos (…)”. Quem vivemos? A cidade moderníssima é para quem? A análise do mesmo jornal no mesmo período mostra que essa manufatura de insanidade apresentava problemas como a falta do básico, o aumento da pobreza, o deslizamento de terras, o desabamento de casas, além de relatos estarrecedores sobre a gripe espanhola que assolou a moderníssima cidade maravilhosa na transição para a década de 1920.
Portanto, a segregação – a concentração dos ricos nas áreas a eles destinadas e a dispersão dos pobres por uma área imensamente maior e não tão moderna assim – consagra a desigualdade enquanto política pública. A desigualdade faz parte do plano. Obviamente, isso altera as ofertas no espaço urbano. Saúde, segurança, educação e transporte, tudo isso acaba sofrendo o impacto da localização.
Não há como falar em segregação sem lembrar do deslocamento da classe trabalhadora e dos impactos que isso provoca em uma cidade marcada por um sistema de transporte público dominado pelo setor privado, o que implica, invariavelmente, em oferecer o mínimo para lucrar o máximo. Isso vale para funcionários e funcionárias da empresa, bem como para as pessoas que precisam do serviço. O par segregação-deslocamento é fundamental para que seja possível compreender a metrópole enquanto espaço insano. É um misto de ganância e desleixo de alguns poucos gerando o adoecimento e prejuízo de muitos.
O próprio processo de metropolização, considerando apenas o aspecto físico, topológico, já implica em aumento das distâncias. O grande problema é que a alternativa para lidar com o aumento das distâncias se deu em função de interesses do setor privado. Não é novidade que as empresas de transportes são detentoras de um enorme poder político. O que chamamos de transporte público é uma grande ilusão. O que temos é transporte privado, caro e ruim.
Fechando a tríade com o elemento mais importante, eis a precarização como um resultado geral das condições de trabalho e de sobrevivência da classe trabalhadora na metrópole capitalista brasileira. Na verdade, a precarização é tão velha quanto a história do capitalismo. Não existe capitalismo que não precarize vidas. O processo de acumulação resulta da exploração do trabalho alheio. Tudo parte desse ponto.
Também é importante lembrar que vivemos em uma ex-colônia. O colonialismo enquanto conjunto de práticas institucionalizadas sai de cena sendo substituído pela colonialidade, que é o conjunto dos resquícios dessas antigas práticas. Como exemplos, temos o racismo propriamente dito, a superexploração de trabalhadores e trabalhadoras, trabalhadores vistos como pedaços de carne que poderiam e deveriam custar menos do que custam, o desrespeito pela legislação trabalhista, o desprezo pelo trabalho braçal/manual, a autossegregação com ares supostamente aristocráticos, a segregação imposta aos pobres, a naturalização da violência – enquanto escrevo este texto, um jardineiro foi morto em uma operação policial no Complexo do Alemã ;o — a punição exemplar como elemento ainda presente, um ordenamento jurídico-político em defesa da propriedade privada e de seus detentores, dentre tantos outros.
Todos esses elementos marcaram o Brasil por muito tempo, marcam até hoje. O ponto é que as relações capitalistas de produção conseguem mecanismos de adaptação e de precarização que vão se capilarizando. Como se o cenário já não fosse suficientemente sádico, surge uma avalanche de trabalhos precários por aplicativos. Pessoas expelidas de um mercado de trabalho mal remunerado, superexplorado, mas que ainda garantia alguns poucos direitos que foram reabsorvidas por um mercado de trabalho com remuneração incerta, igualmente superexplorado e sem nenhuma, nenhuma forma de garantia. Para piorar, os custos para se trabalhar são, também, empurrados para trabalhadores e trabalhadoras. Tudo isso com o irônico tempero do discurso do empreendedorismo.
O discurso do empreendedorismo tem a função de deslocar sentidos. Ele coloca o trabalhador precarizado no topo, fazendo com que este trabalhador acredite que ele é dono do próprio trabalho e que o trabalho não é para sobreviver, mas sim para enriquecer. Tudo isso é mentira, mas o tom de verdade acaba prevalecendo. Há empreendedores, mas sabemos bem que ser um empreendedor de fato não é nada barato. Não é para qualquer pessoa.
Talvez seja um pouco utópico conceber uma cidade para o bem de todos e de todas, uma cidade que não defina seus usos e ofertas a partir de critério de renda, uma cidade em que a dignidade seja um direito, e não um produto destinado às pessoas que possam pagar; uma cidade que não seja rasgada por jovens sem perspectivas e com muitas incertezas em “suas” bicicletas trabalhando para sei-lá-quem; uma cidade com muitas praças verdes e nenhuma praça de concreto; uma cidade que leve os movimentos sociais a sério; enfim, uma cidade que permita o encontro a partir de critérios básicos de igualdade.
Giam C. C. Miceli é professor da Geografia da Educação Básica
[Foto: Desigualdade social em Ipatinga, Minas Gerais, Brasil: A favela Vila da Paz com prédios de boa qualidade ao fundo nos bairros Iguaçu e Cidade Nobre. Crédito: Alta tensão]
Leia também sobre a crise nas metrópoles https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/george-camara-opina.html
Um comentário:
Essa matemática é muito simples! Vá ao portal da transparência e vejamos a receita gasta em eventos e oque foi gasto em planejamento habitacional
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