14 março 2025

Poder das big techs

Tecnodemocracia: como podemos (e devemos) enfrentar o Tecnofeudalismo
As big techs são os feudos, os empresários que investem nessas tecnologias para desenvolver empreendimentos, seus vassalos, enquanto os usuários dessas plataformas, ocupam o nível mais baixo: servos
Armando Januário dos Santos/Le Monde Diplomatique 

Quando você trabalha vendendo cachorro-quente em um carrinho, aquele outro mais próximo representa uma competição. Usando todas as estratégias possíveis, inclusive promoções, vocês vão se enfrentar com um único objetivo: lucrar mais. Entretanto, quando você é proprietário dos carrinhos de cachorro-quente do bairro e aluga todos eles para outras pessoas, a renda passa a ser o seu objetivo. Com ela, você fará a aquisição de novos carrinhos de cachorro-quente, alugando-os para trabalhadores de outros bairros, da cidade e até mesmo do estado. Com isso, poderá se tornar um dos maiores nomes do Brasil no setor, atuando em vários estados e criando um aplicativo, a fim de estender a locação para outros países. Nesse ínterim, você enriquece com a renda dos pagamentos efetuados pelos locatários. Caso contrário, você pode tomar de volta os carrinhos, e eles sairão da base de dados do seu aplicativo, sendo rapidamente substituídos por outros locatários. Se enfrentarem problemas de saúde e não puderem trabalhar, serão assistidos, caso haja algum acordo contratual prevendo auxílio-doença. Caso isso não esteja incluído no contrato, eles serão automaticamente substituídos por novos trabalhadores.

Há algum tempo, vivíamos a situação inicial: comprar e vender eram os meios pelos quais o capitalismo estabelecia o seu domínio, fomentando a livre iniciativa burguesa e legitimando a exploração da força de trabalho do proletariado. Marx e Engels retratam a dinâmica dessas relações, de modo emblemático, em O Manifesto Comunista.

A estrutura capitalista instrumentalizou sucessivas crises para seguir em metamorfose, mantendo sua hegemonia global. Empresários ostentavam com orgulho quantos empregos geravam, e os trabalhadores seguiam lutando por salários mais dignos, melhores condições de vida e melhores condições de atuação profissional. Em determinados momentos históricos, o capitalismo parecia invencível. Prosseguiu, mesmo com o crash de 1929, a Segunda Guerra Mundial e a Primeira Guerra Fria, que o colocaram à prova. Desde o mercantilismo, passando pelo capitalismo industrial, até chegar ao capitalismo de Estado, o modo de produção capitalista demonstrou uma hegemonia sem precedentes.

A partir da Grande Crise Financeira de 2008, essa realidade conheceu uma mutação. Desde então, as relações financeiras estão situadas no segundo momento da ilustração do locador de carrinhos de cachorro-quente. A renda passou a prevalecer sobre o lucro, haja vista seus detentores locarem seus bens para outras pessoas, que caso queiram ganhar dinheiro, são obrigadas a investir. Essa relação se afasta dos imperativos capitalistas, seguindo a norma feudal: o senhor arrenda as suas propriedades, garantindo exponencial rentabilidade, fornecida pelos investimentos dos vassalos e pelo trabalho dos servos.

Em 2006, o Google assimilou o YouTube, por 1,65 bilhão de dólares, já o Facebook, em 2012, absorveu o Instagram, por 1 bilhão, comprando o WhatsApp, dois anos depois, por 22 bilhões. Nessa dinâmica, as big techs são os feudos, os empresários que investem nessas tecnologias para desenvolver empreendimentos, seus vassalos, enquanto os usuários dessas plataformas, ocupam o nível mais baixo: servos. Esses últimos, mesmo quando deixam de utilizar, seguem servindo aos conglomerados, que se alimentam dos seus dados para fabricar desejos e virar as costas às reais necessidades: saúde, qualidade de vida e ecotecnologias. Na prática, as big techs, com seus algoritmos, vem sistematicamente provocando mutações no comportamento humano. A partir da seleção por algoritmos, elas impõem novos padrões de conduta, deixando os servos digitais cada vez mais dependentes do seu uso. Sua renda aumenta ao cobrar acesso a ambientes virtuais: Privacy, OnlyFans e bets são exemplos da instrumentalização do vício em pornografia e apostas esportivas. A nomofobia, medo de ficar sem celular, apavora bilhões, levando pessoas a enfrentar dificuldades em se relacionar e desenvolver tarefas simples no trabalho e na escola. Como consequência, quanto mais as atividades humanas forem mediadas por plataformas, maiores vão ser os impactos na saúde mental. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil lidera o ranking mundial de transtornos de ansiedade e ocupa o primeiro lugar em depressão na América Latina.

Se em 2008, as big techs demonstraram eficiência ante uma crise mundial, entre 2020 e 2023, na pandemia da Covid-19, elas conheceram rápida ascensão. De compras a relacionamentos, o uso de celulares aumentou: conforme a empresa Rocket Lab, o Brasil se tornou o quarto país do mundo em 2022, ao baixar cerca de 10 bilhões de apps. Contudo, para além de selecionar aquilo que assistimos, os algoritmos vão mais longe, manipulando populações inteiras a eleger candidatos que já foram escolhidos pelos senhores tecnofeudais. Em 2018, as eleições presidenciais no Brasil foram influenciadas pelo uso das plataformas digitais, para disparos em massa de informações falsas, ajudando a eleger um chefe de Estado fascista. Nos Estados Unidos, as eleições do ano passado demonstraram o poder de Elon Musk, dono do X (antigo Twitter). Em um vídeo que viralizou, ele discursa em pé no Salão Oval, ante o presidente Donald Trump, sentado. A imagem é emblemática em representar o quanto chefes de Estado estão sob o controle de magnatas das mídias digitais. Isso se torna ainda mais real quando o filho de Musk, de quatro anos, diz para Trump: “você não é o presidente. Você devia calar a boca”.

O êxito da extrema direita se deve a colonização psíquica impulsionada pelos algoritmos. As big techs são lideradas por mentes antidemocráticas, que espalham deliberadamente as irrealidades mais absurdas e distorcem a liberdade de expressão para vencer eleições, instaurar governos tecnofascistas e perseguir minorias sociais. Utilizando a violência tecnológica para concretizar os seus obscuros sonhos e acirrar as iniquidades, as distopias digitais avançam, inflando o ódio contra a ciência, o pensamento não-complexo e o prazer sádico em violar todos os direitos fundamentais. O próprio pai de Musk afirmou que Obama é homossexual, pois Michele Obama seria uma mulher trans. A partir disso, milhões reproduzem – e acreditam – nessa mentira.

Conhecer esse ordenamento perverso da economia, política e cultura deve servir de ponto de reviravolta para a democracia. Fazer frente a esse sistema capaz de escravizar o próprio capitalismo é possível, contudo, será necessário revolucionar os sistemas democráticos. O Brasil parece indicar como fazer isso. Ainda no mês passado, assistimos à deputada Erika Hilton esclarecer informações sobre o PIX, ao liderar um vitorioso contra-ataque digital, gerando milhões de engajamentos. Ela utilizou recursos idênticos ao deputado que, dias antes, havia fomentado pânico na população. Essa experiência mostra como no curto prazo, a democracia, mesmo ameaçada, pode reagir, com os algoritmos servindo para gerar engajamento exatamente contra quem fomenta mentiras.

Ante o espectro tecnofascista, regular as plataformas digitais assegura a difusão de informações verdadeiras aos usuários. Se repercutir mentiras leva ao pânico generalizado, disparar verdades em massa colabora para a segurança em um mundo ainda traumatizado com a experiência da pandemia do coronavírus. Com a regulamentação dos meios digitais, as pessoas tendem a se sentir confortáveis para expressar suas ideias com responsabilidade, sem riscos de ataques pessoais à sua honra. Em paralelo, isso filtra a hegemonia das corporações responsáveis pelo tráfego de dados na internet. Por sua vez, fiscalizar o tratamento dos dados pessoais dos usuários resultará em diminuir a manipulação do pensamento, tornando o ambiente virtual um espaço de compartilhamento de soluções para os desafios globais.

Temos, portanto, a Tecnodemocracia, um sistema onde as informações são mediadas com o objetivo de estimular e fortalecer o pensamento crítico para combater as iniquidades provocadas pelo Tecnofeudalismo.

Armando Januário dos Santos é psicólogo (CRP-03/20912), Mestre em Psicologia e Pós-Graduado em Gênero e Sexualidade. Instagram: @januario.psicologo | WhatsApp: (71) 98108-4943.

Leia: Substituição das profissões mais qualificadas e criativas por "inteligência artificial" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/ia-trabalho-humano.html

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