18 junho 2025

16º Congresso do PCdoB

Precisamos lutar pelo protagonismo da esquerda e mobilizar o povo, diz Luciana Santos
Para presidenta do PCdoB, bandeiras são centrais para que o Brasil derrote a extrema direita e avance para um novo projeto de desenvolvimento com soberania e justiça social
Priscila Lobregatte/Vermelho
 

O PCdoB lançou oficialmente nesta terça-feira (17), em live com mais de mil de militantes, o processo de mobilização para seu 16º Congresso, cuja plenária nacional acontece de 16 a 19 de outubro, em Brasília. Até lá, uma série de atividades discutirá, desde a base até o Comitê Central, os rumos e as lutas centrais do partido nos próximos quatro anos.

Com um formato leve e descontraído, a live de lançamento contou com a presença de dirigentes nacionais — entre eles, a presidenta do partido e ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos —, além da participação militante na sala virtual. O evento também foi transmitido pelo canal oficial do partido no YouTube.

Durante a live, foi anunciado que pela primeira vez, o próximo Comitê Central, a ser eleito durante o processo congressual, terá paridade de gênero, com metade de mulheres e metade de homens.

Também foi ressaltada a importância de as instâncias partidárias, em todo o Brasil, aproveitarem os debates congressuais para estimular a votação do Plebiscito Popular, iniciativa voltada à mobilização pela redução da jornada de trabalho sem redução salarial e fim da escala 6×1 e pela taxação dos ricos para isentar do Imposto de Renda de quem ganha até R$ 5 mil.

Por uma nova vitória da nação 

Ao falar sobre o contexto nacional, a presidenta do PCdoB, Luciana Santos, salientou: “Os desafios políticos no Brasil são imensos porque embora a gente tenha ganhado as eleições de 2022, continuamos com o país polarizado, a institucionalidade fragilizada e, portanto, com muitos obstáculos a serem superados para que a gente possa consolidar a democracia e a soberania nacional”.

Por isso, acrescentou, “penso que a principal síntese do nosso Projeto de Resolução, no plano da política, é conquistar uma nova vitória da nação e da classe trabalhadora em 2026 e realizar mudanças estruturais para impulsionar o desenvolvimento soberano”.

Ela ressaltou que a vitória no ano que vem só será possível “com uma unidade ampla, liderada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que é essencial para derrotar a extrema direita no Brasil” e defendeu “a necessidade de o país avançar na construção de um projeto nacional e no isolamento da extrema direita. “Precisamos lutar pelo protagonismo da esquerda, impulsionar a unidade e a mobilização do nosso povo”, enfatizou.

Luciana argumentou, ainda, que a frente ampla conquistada em 2022 “teve caráter democrático, de retomada das políticas públicas, mas não era uma frente ampla do ponto de vista da agenda econômica — e temos de superar isso. Precisamos ter mais forças políticas que enfrentem a centralidade do que é necessário hoje para retomar o crescimento, que é lutar contra a política de juros praticada pelo Banco Central e contra aspectos da política macroeconômica que hoje são impeditivos do crescimento nacional”. 

A dirigente enfatizou que “esse é o nosso papel de vanguarda: apontar o que precisa ser superado para podermos garantir mais bem-estar social para o povo”.

A comunista destacou, ainda, que o Brasil de Lula teve conquistas incontestes que precisam ser ressaltadas, entre as quais estão o crescimento econômico maior do que o mercado financeiro anunciava; geração de emprego; aumento da renda; lei do salário igual entre homens e mulheres; programas sociais como o Desenrola e o Pé-de-Meia; a retomada de outros como o Minha Casa, Minha Vida e do Bolsa Família sobre novas bases e o processo de reindustrialização.

Na avaliação de Luciana, a Nova Indústria Brasil (NIB), o PAC e a sinergia com os chineses “são as três grandes ações estruturantes que vão ao encontro de um novo projeto nacional de desenvolvimento”. Neste sentido, destacou o papel do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. “É claro que esse desenvolvimento só terá consistência se ele se der sobre novas bases tecnológicas e esse é o conceito que move a agenda da reindustrialização. Estamos investindo seis vezes mais em CT&I em dois anos e meio do que nos dois governos anteriores”.

Crise do capitalismo

Davidson Magalhães, dirigente do PCdoB da Bahia, fez um apanhado geral do projeto de resolução que pauta os debates do Congresso, focando, essencialmente, o cenário internacional.

“O 16º Congresso do PCdoB acontece num cenário marcado por uma grave crise do capitalismo, especialmente pela perda de dinamismo das economias dos EUA, Japão e União Europeia. Esta crise tem como principais consequências as baixas taxas de crescimento econômico, a ampliação da desigualdade de renda com alto grau de pobreza e miséria e, ao mesmo tempo, o surgimento de trilionários”, afirmou. 

Do ponto de vista do trabalho, acrescentou, “temos o aumento do desemprego e da precarização, de um lado, e a ampliação da riqueza financeira e do rentismo do outro. A esse quadro, soma-se o agravamento da crise ambiental”.

Em contraste com esse cenário de crise e decadência do capitalismo, pontuou, “vemos o dinamismo da economia asiática, notadamente a China, Vietnã e Índia. Portanto, vivemos o fim de uma ordem global em que os EUA passam por um período de declínio da sua hegemonia e transitamos para uma nova ordem com novos centros de poder, especialmente China e Rússia”.

Além dessas mudanças geopolíticas, Magalhães salientou que o capitalismo passa por mudanças estruturais significativas. “Os avanços da quarta revolução industrial, a inteligência artificial, a robótica, a internet das coisas, entre outros aspectos, criaram uma era digital, com processos disruptivos que impulsionaram a reorganização da produção e a circulação das mercadorias e das relações de trabalho em torno da economia de dados”. 

Ele pontuou que todos esses avanços tecnológicos, sob o controle do capital monopolista, ampliam a exploração e precarizam a vida do trabalhador. Ao mesmo tempo, as chamadas big techs “concentram grande poder econômico e capacidade de manipulação ideológica, através do controle dos algoritmos, proliferando conteúdos misóginos e racistas e fomentando a fragmentação e os valores da extrema direita”.

A live teve ainda a participação da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e contou com os comentários dos secretários de Organização, Nádia Campeão, e Sindical, Nivaldo Santana, além de Pedro Campos e Renata Rosa, dirigentes do PCdoB de São Paulo, como apresentadores.

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Por que só vencer eleições não basta para mudar o Brasil https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/walter-sorrentino-opina_17.html 

17 junho 2025

Palavra de poeta

TREM DE FERRO
Manuel Bandeira 

Café com pão
Café com pão
Café com pão
 
Virge Maria que foi isso maquinista?
 
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
 
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
 
Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
 
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
 
[Ilustração: Rachel Baran]
 
Leia uma crônica de Luis Fernando Verissimo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/uma-cronica-de-luis-fernando-verissimo.html  

História viva

Os intelectuais e a ditadura no Brasil
Como o regime se relacionava com a intelectualidade – e a utilizava no governo? De que forma aconteceu a “limpeza ideológica” nas universidades? De tecnocráticos anticomunistas aos que sonhavam ser a nova elite do Brasil, como agiam as duas principais alas alinhadas aos militares?
Michel Goulart da Silva/Outras Palavras  

Em texto publicado na década de 1970, discutindo a questão dos intelectuais na ditadura, Florestan Fernandes procurava chamar a atenção para a situação concreta em que esses setores viviam naquele contexto. O sociólogo via uma postura equivocada por parte da maioria desses setores. Para Florestan Fernandes, “o intelectual, ainda que universitário e profissional liberal, não surge como uma variante do homem comum. É sua réplica, frequentemente piorada, porque se representa como parte e imune à contaminação do atraso geral”.1

Durante a ditadura iniciada com o golpe de 1964, como em outros momentos da história do Brasil, é possível perceber a atividade de intelectuais que não apenas defendem regimes repressivos ou ataques a liberdades democráticas, como utilizam suas pesquisas e produções teóricas para construir justificativas às ações desses regimes. São exemplos disso intelectuais que colaboram com órgãos como ESG ou que assumiram cargos como interventores em universidades ou mesmo aqueles que ocuparam funções em governos da ditadura, como Flávio Suplicy de Lacerda, Raymundo Moniz de Aragão, Mário Henrique Simonsen, entre outros. Na UFSC, esse debate foi recentemente reacendido por conta da proposta de mudança de nome do campus, que homenageia David José Ferreira, reitor que n&a tilde;o apenas apoiou a ditadura como auxiliou o regime na perseguição contra colegas de universidade. Florestan Fernandes afirmava que a ditadura encontrou “um apoio cada vez mais amplo, ao invés de oposição, por parte dos intelectuais”.2

Os golpistas de 1964 encontraram uma estrutura técnica consolidada por governos anteriores, ampliando as funções estatais de organização e controle social, na qual os intelectuais poderiam explorar uma esfera administrativa baseada na ideia de eficiência técnica. Esses segmentos enfatizavam o gerenciamento científico, a administração pública normativa e a formalização e rotinização de tarefas. O processo de desenvolvimento dessa burocracia se consolidou no governo de Juscelino Kubitschek. Nesse período,

“[…] a rede tecno-burocrática de influência dentro do aparelho estatal era formada pelas camadas mais altas da administração pública e pelos técnicos pertencentes a agências e empresas estatais, os quais tinham ligações operacionais e interesses dentro do bloco de poder multinacional e associado. Esses executivos estatais asseguravam os canais de formulação de diretrizes políticas e de tomadas de decisão necessários aos interesses multinacionais e associados, organizando a opinião pública. Eles aplicaram a racionalidade capitalista da empresa privada às soluções dos problemas socioeconômicos nacionais, proporcionando a contrapartida pública do macro-marketing empresarial sob a forma de um planejamento limitado e recomendações técnicas”.3

Observa-se nesse processo a integração de uma parcela de intelectuais ao Estado, sob a retórica de que sua atuação se daria a partir do conhecimento científico, de forma neutra e com vistas a uma melhoria das condições da sociedade. Essa estrutura foi fundamental para a ditadura, na medida em que imbricava o desenvolvimento econômico, a estruturação da gestão estatal e a formulação ideológica. Segundo Octávio Ianni,

“[…] economistas, administradores, engenheiros, estatísticos, educadores, sociólogos, jornalistas e outros, muitos foram os especialistas civis e militares convocados para operar e ‘modernizar’ a organização e o funcionamento do aparelho estatal. Tratava-se de substituir o ‘político’ pelo ‘técnico’, a ‘demagogia’ pela ‘ciência’, o ‘carisma’ pela “eficácia”. Ao mesmo tempo que constituía o seu intelectual orgânico, ela [a ditadura] desenvolvia também as bases da ideologia desse intelectual”.4

O desenvolvimento dessa ideologia estava marcado pelo conservadorismo e pelo anticomunismo. O anticomunismo, que impregnou setores da sociedade durante a ditadura, se baseava na mistura de símbolos religiosos que se remetiam a demônios e pecados com uma retórica nacionalista e de defesa da propriedade. O conservadorismo difundido pelos ditadores pretendia transformar o Brasil em uma “potência média” integrada ao bloco econômico e político liderado pelos Estados Unidos, desenvolvendo o capitalismo de forma integrada ao imperialismo e, ao mesmo tempo, defendendo a “moral” e os “bons costumes” cristãos. Sabe-se que

“[…] o propósito modernizador se concentrava na perspectiva econômica e administrativa, com vistas ao crescimento, à aceleração da industrialização e à melhoria da máquina estatal. Já o projeto autoritário-conservador se pautava em manter os segmentos subalternos excluídos, especialmente como atores políticos, bem como em combater as ideias e os agentes da esquerda – por vezes, qualquer tipo de vanguarda – nos campos da política e da cultura, defendendo valores tradicionais como pátria, família e religião, incluindo a moral cristã”.5

Essa faceta de modernização econômica não parecia se mostrar contraditória com as ideias desenvolvidas por setores que defendiam os valores “tradicionais”. Observa-se que

“[…] esses setores, geralmente representados por religiosos, intelectuais conservadores e militares, não se contentavam tão somente com o expurgo da esquerda revolucionária e da corrupção. Eles desejavam aproveitar o momento para impor uma agenda conservadora mais ampla, que contemplasse a luta contra comportamentos morais desviantes, a imposição de censura e a adoção de medidas para fortalecer os valores caros à tradição, sobretudo pátria e religião”.6 

Essa complexa articulação de ideias exigiu da intelectualidade que apoiava o regime a tentativa de construção de justificativas e explicações. Diante do golpe e da ameaça ditatorial, esses intelectuais se mostravam identificados com o pânico e o medo propagado pelos setores que realizaram ou apoiaram a ação dos militares em 1964. O sociólogo aponta para “conexões estruturais e dinâmicas existentes”, as quais mostram que

“[…] as posições e papéis intelectuais acham-se ramificadas através do status privilegiados das classes alta e média. Em consequência, os intelectuais ficam permanentemente expostos a interesses, a ideologias e a valores que, por sua própria natureza, são intrinsecamente conservadores, no sentido de que fazem parte do horizonte cultural conservantista dos setores dominantes das classes alta e média”.7

Essa convergência entre intelectuais e ideias conservadoras não se manifestou apenas em espaços dos próprios militares, como a Escola Superior de Guerra (ESG), mas também nas universidades, onde, além da perseguição a uma parcela de intelectuais, muitos de seus trabalhadores auxiliaram na manutenção da ditadura, seja por meio do silêncio, seja pela colaboração direta com o regime. Nessa relação dos intelectuais com a ditadura percebe-se uma conivência moldada por diferentes fatores. Os intelectuais “careciam de meios de absorção de suas frustrações”, sendo “sobrecarregados com expectativas de controle e de ação conflitantes, impostas pela ditadura militar ou pelos grupos radicais e por si próprios”.8 Para os intelectuais, essa situação criava “uma tempestade de fricções, desilusões e desorientação moral”.9

Um dos acontecimentos mais destacados da ditadura em relação aos intelectuais passa por uma lista de demissões decretadas pelo governo ditatorial, por força do AI-5, em abril de 1969. Essa lista incluía intelectuais como Bolivar Lamonier, Caio Prado, Emília Viotti, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Jean Claude Bernadet, Maria Yedda Linhares, Octávio Ianni e dezenas de outros nomes, associados a posições políticas e ideológicas variadas, entre liberais, comunistas e socialistas. Essa “limpeza ideológica” realizada pela ditadura “levou ao bloqueio da livre circulação de ideias e de textos, e à instalação de mecanismos para vigiar a comunidade universitária”.10

Muitos dos intelectuais perseguidos pelo regime se exilaram, encontrando novas colocações profissionais em importantes universidades em outros países, e, em muitos casos, se engajando em lutas organizadas em âmbito internacional contra a ditadura no Brasil. Contudo, outra parcela da intelectualidade optou ou pelo silêncio ou pela colaboração com o regime repressivo, sendo possível apontar que, “dentro dos muros universitários, alguns docentes conservadores apoiaram a pauta repressiva na íntegra a fim de se livrar de adversários e concorrentes internos”.11 O governo ditatorial

“[…] lançou mão de estratégias de cooptação, e vários agentes demonstraram flexibilidade em relação a normas e valores dominantes, com tendência a tangenciar os preceitos legais e confiar mais na autoridade pessoal, nos laços sociais e em arranjos informais. Essas práticas permitiram ao Estado contar com o talento de profissionais provenientes de campo ideológico adversário, mas também propiciaram o amortecimento da repressão, com base na mobilização de fidelidades pessoais e compromissos informais”.12

Essa situação política impactou no trabalho realizado pelos intelectuais, na medida em que instituições onde atuavam “foram usadas em proveito dos interesses escusos predominantes, para apoiar tanto os golpes de Estado militares, quanto a militarização do poder político”.13 Para muitos intelectuais, a produção acadêmica foi “considerada como um meio honorífico de se obter bons salários e prestígio, em contraposição à pesquisa empenhada no avanço do conhecimento original”.14 Esses intelectuais que mantiveram espaç ;os institucionais aprofundaram sua atuação como técnicos de Estado. Com isso,

“[…] o fluxo da cooperação intelectual, leal e entusiasta ou fria e calculada, ultrapassou todas as expectativas (e mesmo as probabilidades existentes de absorção útil). Alguns atritos surgiram, destruindo a ilusão de que a restauração da ordem envolveria rápido restabelecimento do controle civil do poder político, e provocando o retraimento dos intelectuais que fizeram o papel de inocentes úteis ou de aliados perigosos. Mas, a massa dos intelectuais conservadores (liberais e neutros) mostrou uma grande tolerância, proclamando sua fé na ordem revolucionária”.15 

Os eventuais atritos entre essa intelectualidade e a ditadura podem ter relação, entre outros fatores, com a postura dos militares de atuarem, eles próprios, como intelectuais, por meio da atuação junto a suas próprias escolas de formação. Civis fizeram parte dessa rede de formação, por meio, entre outras formas, da Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), mostrando uma postura de aproximação de gestores públicos e intelectuais com os militares.

Embora houvesse esses atritos, na ditadura se abria oportunidades para os intelectuais ditos de “mentalidade aberta” e “tolerantes”.16 Embora perdessem “o sentido de dignidade, inerente à posição do intelectual na sociedade”, ganhavam “poder vivo”, enquanto “lacaios do poder político-militar institucionalizado”.17

Entre esses intelectuais é possível identificar dois setores, um dos quais eram os que se diziam “revolucionários”, ou seja, aqueles “identificados com os golpes de Estado e com a militarização do poder político”.18 O outro grupo eram os técnicos e cientistas “envolvidos na tecnocratização do poder político-militar”, que se viam como uma “elite cultural” que estaria “emergindo com e através do regime autoritário militar”.19 Este segundo grupo procurava construir “mais do que as estruturas políticas da ditadura militar”, mas sim “o tipo de economia, de sociedade e de Estado” dentro dos quais pudessem se constituir, “sob o capitalismo industrial dependente, uma poderosa elite cultural”.20

A relação com o regime ditatorial por parte desses dois grupos de intelectuais aponta para a postura de “adesão” e de “acomodação”. Esses termos mostram um quadro em que “muitos agentes não resistiram nem aderiram, mas buscaram formas de acomodação e convivência com o sistema autoritário”.21 Esses intelectuais estavam permanentemente expostos a interesses, a ideologias e a valores que, por sua própria natureza, eram intrinsecamente conservadores, compartilhando do horizonte cultural das classes dominantes. Naquele contexto,

“[…] o desejo modernizador implicava desenvolvimento econômico e tecnológico, além de expansão industrial e mecanização agrícola, o que levava ao crescimento da urbanização e do operariado fabril, gerando potenciais tensões e instabilidade nas relações sociais e de trabalho. Já o impulso conservador estava ligado à vontade de preservar a ordem social e os valores tradicionais, e por isso combater as utopias revolucionárias e todas as formas de subversão e “desvio”, incluindo questionamentos à moral e aos comportamentos convencionais”.22

O engajamento desses intelectuais tinha como limites a preservação do status quo, com vistas à manutenção da estabilidade política e social. O processo de integração dessa intelectualidade se explica, por um lado, pelas condições materiais, na medida em que se observa a integração de quadros técnicos à burocracia estatal, e, por outro, por fatores políticos e ideológicos. Esses elementos fizeram com que uma parcela da intelectualidade constituísse afinidades com o regime ditatorial.

Essa intelectualidade cumpriu papel central na sustentação política e ideológica do regime e na defesa dos interesses econômicos defendidos pelos ditadores. No presente, como parte dos embates pela memória e pela história, o legado deixado por esses intelectuais conservadores é utilizado para justificar tanto a modernização baseada no aprofundamento da exploração dos trabalhadores como as ações políticas e econômicas que levaram à opressão e a à perseguição dos trabalhadores no período.


Notas:

1 FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2020, p. 51.

2 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 172.

3 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do estado. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 73.

4 IANNI, Octávio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019, p. 63.

5 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 15.

6 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 16.

7 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 174.

8 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 189.

9 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 189.

10 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 8.

11 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 394.

12 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 17.

13 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 177.

14 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 177.

15 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 179.

16 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

17 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

18 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

19 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

20 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 181.

21 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 301.

22 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 289.

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Veja: Estratégias e narrativas de comunicação na luta de ideias https://www.youtube.com/watch?v=-D1bQLShVk0 

Arte é vida

 

Vincent Van Gogh

Postei nas redes

Essa campanha antecipada por um hipotético idulto a Bolsonaro é, ao mesmo tempo, confissão de culpa e convicção de que a condenação é inevitável. 

Beco sem saída? https://bit.ly/3Ye45TD 

Walter Sorrentino opina

Por que só vencer eleições não basta para mudar o Brasil
Mesmo após vitórias eleitorais, a esquerda não conseguiu romper os bloqueios estruturais do país. É hora de disputar reformas profundas e mobilizar a sociedade. 
Walter Sorrentino/Portal Grabois 

Reformas Estruturais para um Projeto Nacional: o Desafio Estratégico – O PCdoB acaba de lançar os documentos preparatórios para seu 16º Congresso, que ocorrerá em outubro. As teses apresentadas vão além da conjuntura imediata e representam uma contribuição relevante ao debate estratégico das forças progressistas e de esquerda no Brasil. Também o PT, o PSB, o PSOL e outras organizações se debruçam sobre o desafio de formulações à altura dos desafios presentes. 

A Fundação Maurício Grabois se soma a esse esforço, impulsionando a reflexão sobre os rumos do país, seus vetores estruturantes e os bloqueios históricos a superar.

Um ponto central das teses é a compreensão de que os desafios brasileiros exigem abrir novo ciclo de desenvolvimento no país e não se resolvem apenas com vitórias eleitorais, mas com reformas estruturantes no ordenamento do Estado Nacional. Desde 2002, vencemos cinco das seis eleições presidenciais, mas não fomos capazes de remover os entraves estruturais, como mostra, aliás, o cerco institucional e político ao atual governo Lula.

Não é a primeira vez que o PCdoB traz essa preocupação. Já no 13º Congresso, em 2013, o partido apontava as reformas estruturais como eixo estratégico para inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento. Reconhecia-se, então, que o país havia atingido um novo patamar, com desafios inéditos que exigiam romper com as raízes da desigualdade e transformar a correlação de forças na sociedade.

Retrocesso político e a crise do ciclo progressista

A reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, foi rapidamente seguida por um cenário adverso: os impactos da crise internacional de 2008 chegaram com força ao Brasil, encerrou-se a janela do boom das commodities, e a extrema-direita começou a ganhar base social. A recessão de 2015, o impeachment da presidenta Dilma e o ciclo posterior de retrocessos aprofundaram a condição periférica e dependente do país, com fortes ataques à democracia e aos direitos sociais.

Nenhum dos governos progressistas desde 2002 contou com maioria parlamentar. Hoje, além disso, as forças progressistas tampouco detêm maioria social consolidada. Por isso, ao retomar o debate sobre reformas estruturais, é essencial refletir: o que mudou e por que agora seria diferente?

Uma lição central é que a ausência das reformas — e mesmo da disposição de travar essa disputa na sociedade — bloqueou o avanço do projeto progressista. A estratégia híbrida, especialmente no campo macroeconômico, impôs um teto às transformações, com limites que ainda hoje condicionam o governo Lula.

Paralelamente, a ordem neoliberal se cristalizou como política de Estado. Reformas regressivas, especialmente no plano econômico e institucional, foram inscritas na Constituição. Este é um dado estrutural da correlação de forças atual que não pode ser ignorado.

Nesse percurso, a esquerda perdeu, em parte, a conexão com o novo arco de aspirações da sociedade e não acompanhou as transformações sociológicas que marcaram os estratos mais amplos da classe trabalhadora.

Contudo, o mundo mudou. Apesar do avanço da extrema-direita, em especial no Ocidente em crise, e da agressividade reacionária das forças imperialistas, o cenário geopolítico abre novas possibilidades para países que buscam superar sua condição dependente. Nesse contexto, o Brasil precisa fazer escolhas estratégicas. 

Por que retomar o debate sobre reformas estruturais

Recolocar a soberania nacional no centro da agenda é condição para um desenvolvimento autônomo. Isso exige uma estratégia clara, lideranças políticas coesas e força mobilizadora — sem as quais as mudanças estruturais seguirão bloqueadas.

É com essa reflexão estratégica que está em débito a esquerda brasileira. Daí a necessidade de lutar por reformas estruturais — políticas, institucionais, financeiras, tributárias, democráticas, sociais e civis — articuladas à construção de um polo unitário das forças progressistas, de caráter patriótico e popular. Esse polo deve ser núcleo de amplas concertações sociais, que só se concretizam com forte mobilização popular, imprescindíveis ao desenvolvimento.

Eleições de 2026: vitória como ponto de partida, não de chegada

Vencer as eleições presidenciais de 2026 é condição essencial. Mas não basta vencer: é preciso que essa vitória represente mais do que a preservação da democracia — ela deve apontar para uma disputa real em torno de reformas estruturais.

O Brasil precisa de uma nova “corrente elétrica” capaz de galvanizar esperanças, renovar a narrativa progressista e articular forças sociais para superar o sistema de dependência. Isso requer um pólo unitário com um programa comum para disputar a sociedade, não apenas para pressionar o governo.

A história mostra que as grandes transformações nacionais resultaram de mobilizações vigorosas e plurais. Reconstruí-las, no espírito do nosso tempo, é o desafio estratégico colocado para a esquerda progressista. Independentemente do tempo necessário, essa jornada precisa começar agora — enfrentando as lutas do presente e a eleição de 2026 com um novo horizonte e renovada disposição de luta.

Walter Sorrentino é presidente da Fundação Maurício Grabois e vice-presidente nacional do PCdoB.

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Leia também: Forças políticas ativas na frente ampla https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_27.html

Humor de resistência

 

Nando Motta

Postei nas redes

"Estados Unidos podem se tornar reféns de Netanyahu ou marionetes do Irã?", questionam articulistas americanófilos. Nem uma coisa nem outra. Mas Trump é capaz de qualquer loucura, acrescento.

Sem agulha no palheiro https://bit.ly/3Ye45TD 

Minha opinião

Aliado do centro-direita, mas enfraquecido 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65 

Leia editoriais e escritos de colunistas "da casa" nos grandes jornais conservadores do país. 

Ouça e veja "analistas" de política e economia nas redes de rádio e TV. 

Acesse sites noticiosos e analíticos vinculados ao complexo midiático dominante. 

Agora conclua comigo: está em curso a construção de uma candidatura presidencial de centro-direita eleitoralmente competitiva e que possa, sim, receber o apoio da extrema direita.

A repetição de uma nova aventura bolsonarista parece descartada. Não teria imagem palatável, nem o fôlego eleitoral de antes. 

Assim trabalha a classe dominante sob a liderança do capital financeiro e do grande agronegócio exportador. Deseja derrotar o presidente Lula numa possível candidatura à reeleição e assumir plenamente os destinos do país com um marionete minimamente capaz e confiável. 

Este é o jogo que está em curso em ambiente político onde a elite dominante impõe, pela mídia e pela maioria parlamentar, limitações terríveis à execução da proposta de governo de Lula.

Cá no campo das forças populares e progressistas cabe conduta proativa, encarando a polêmica como de fato ela se apresenta — para além da maior divulgação das chamadas "entregas" do governo. 

Tremenda guerra em curso pelo que Aldo Arantes chama "domínio das mentes", cujo campo de batalha se situa no conflito de ideias.

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Leia: O busílis da questão https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/minha-opiniao_16.html 

Palavra de poeta

Aurora e crepúsculo,
mais um dia de guerra
Carlos Marinho* 
Aurora de estampidos,
crepúsculo em chamas e 
incandescência, fogo, morte.
 
Há guerra, mas faltam ideais.
Ideias tombam antes de nascer,
soterradas em ruídos de poder.
 
Dias mais incertos
que a sombra da dúvida,
mais frágeis que promessas
em boca de fuzil e aço.
 
E a vida segue, trôpega,
nesse mundo torto,
onde o chão treme
e a esperança se esconde.
 
Salvem o planeta.
Salvem a paz.
 
[Ilustração: imagem gerada por IA]
 
*Médico, poeta
Leia também 'Ninguém me habita', poema de Thiago de Mello https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-poeta-thiago-de-mello_25.html 

Enio Lins opina

Israel x Irã, crônica de uma guerra anunciada – trecho 1
Enio Lins  

COMO TODO MUNDO ESPERAVA, Israel e Irã entraram em guerra oficial. A surpresa é a pronta reação iraniana. Pela primeira vez, Teerã reage com uma ação contundente às provocações israelenses. E o planeta está à beira de uma guerra mundial, catastrófica para toda humanidade, por culpa exclusiva de Israel – e dos Estados Unidos, historicamente cúmplice e principal apoio do regime sionista desde os anos 60.


NUMA ANÁLISE OBJETIVA, deve-se reconhecer a imensa superioridade bélica de Israel, até pela diferença entre os orçamentos militares, como publicado pela BBC: enquanto o Irã investe 2% de seu PIB na defesa, Israel torra o dobro, 4%. Em termos de metal sonante, o Irã gasta US$ 7,4 bilhões, e Israel US$ 19 bilhões. Gastos anuais, projeção de dados de 2022. Durante toda longa história de agressões sofridas, Teerã nunca havia respondido à altura às investidas de Telavive. Até 13 de junho de 2025, era só pau na papada dos iranianos, mas alguma mudança parece ter acontecido, e pela primeira vez, os sionistas estariam recebendo algum troco real – mas a preeminência militar, até prova em contrário, segue israelense.

ISRAEL É A MAIOR INDÚSTRIA DA MORTE em todo Oriente Médio. Além de estar exterminando a população palestina em Gaza, o placar é arrasador se tomarmos como base os assassinatos de iranianos. O terror israelense é insuperável em sofisticação e letalidade. Em relação às provocações contra o Irã, essa desenvoltura criminosa chama a atenção desde o assassinato, em 27 de novembro de 2020, em plena área urbana de Teerã, do cientista Mohsen Fakhrizadeh, tido como o então físico nuclear mais importante do país persa. Desde então, numa sequência impressionante de atentados, Israel tem assassinado sistematicamente altos oficiais e cientistas iranianos. N a recente agressão israelense contra Teerã, foram trucidados pelo menos nove cientistas e quatro dos principais líderes militares persas. Na teoria, o Irã estaria incapacitado, por um bom tempo, de dar qualquer resposta militar eficiente. Mas, na prática, a coisa parece estar sendo diferente.

NUNCA UM MILITAR IMPORTANTE, ou líder proeminente de Israel, foi alcançado por ações estrangeiras. Yitzhak Rabin foi assassinado, sim, mas por um terrorista israelense. Rabin, nascido em Jerusalém, filho de judeus russos, lutou contra árabes e palestinos, foi primeiro-ministro em duas ocasiões (1974/1977 e 1992/1995) e ousou construir um plano de paz com os palestinos, assinando, com Yasser Arafat, compromissos no âmbito dos Acordos de Oslo, e ganharam juntos o Nobel da Paz de 1994 por isso. Em 4 de novembro de 1995, um jovem terrorista israelense, tranquilamente, passou pelo que deveria ser sua segurança intransponível, e lhe acertou dois tiros, matando-o. Ah, existe um judeu vítima, ligado ao programa nuclear israelen se, mas falaremos sobre isso amanhã.

COMO EM TODAS AS GUERRAS, a batalha pela informação é cruenta, e cada lado despeja bazófias, mentiras e diversionismos no noticiário. Aparentemente, Israel estaria sofrendo abalos inéditos – mas nada ainda efetivamente danoso para sua máquina de guerra, pelo menos a meu ler. Nas entrelinhas, é importante decifrar quais áreas israelenses estão sendo atingidas pelos mísseis iranianos. Diz Teerã que está detonando alvos militares... será? Se forem apenas civis os alvos atingidos em território israelense, é bom ficar de olho se não seria um repeteco da tática sionista de 7 de outubro de 2023, quando deixaram livre o caminho para que o Hamas provocasse um grande número de vítimas, ação que “justificou” a subsequente ofensiva de Israel, arrasadora, contra a Gueto de Gaza, hoje praticamente riscado do map a, com os sionistas repetindo contra os palestinos o que os nazistas fizeram com os judeus no Gueto de Varsóvia. A grande indagação segue no ar: Como o Irã irá resistir à máquina mortífera israelo-estadunidense?

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Leia também: Israel-Irã: uma grande guerra a caminho? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/israel-x-ira.html

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Israel x Irã

Israel-Irã: uma grande guerra a caminho?
Como o desgaste de Netanyahu explica a onda de ataques. O que está por trás da posição ambígua de Trump. A nova diplomacia que emerge na região. Os desafios de Teerã em mobilizar apoio concreto de aliados. E os caminhos para frear Tel Aviv
Isabela Agostinelli em entrevista a Glauco Faria e Guilherme Arruda/Outras Palavras 

O intenso bombardeio promovido por Israel contra o Irã, iniciado na última sexta-feira (13/6), não é raio em céu azul. Está intrinsecamente ligado à campanha genocida na Faixa de Gaza e às agressões promovidas contra o Líbano, a Síria e o Iêmen desde o 7 de outubro.

No entanto, não se trata de somente outra frente do conflito no Oriente Médio. O que vem demonstrando a altiva retaliação iraniana — que furou repetidas vezes o “infalível” Domo de Ferro, atingindo regiões urbanas densamente povoadas e acertando mísseis balísticos em bases militares, ministérios e causando o fechamento de uma das duas únicas refinarias de Israel — é que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu decidiu provocar um adversário que possui uma capacidade de resposta muito mais elevada que os países atacados. A guerra poderá se tornar regional? Se assim for, tomaria escala global? 

Os primeiros dias indicam que não será um passeio no parque para Israel. No entanto, é preciso ser realista: o cenário internacional é muito duro para o Irã. As críticas ocidentais à conduta israelense na guerra, mesmo que se ampliem, muito provavelmente não passarão da condenação verbal. A tendência geral à normalização sofreu um revés com o 7 de outubro, mas é difícil dizer se os países árabes tomarão ações mais concretas contra os crimes sionistas. À diferença da “relação especial” entre EUA e Israel, Rússia e China tendem a não se imiscuir diretamente no conflito. O Brasil, apesar de aspirar à liderança dos Brics, ainda é complacente, recusando-se a debater o rompimento de relações diplomáticas e econômicas com o Estado agressor.

Mas a ampliação do movimento de massas global em defesa do povo palestino poderia forçar os Estados a imporem sanções reais que paralisem o esforço de guerra israelense?

Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), Isabella Agostinelli ofereceu informações que traçam um contexto mais amplo para o atual cenário do Oriente Médio em entrevista ao Outra Manhã, programa de entrevistas de Outras Palavras

Neste domingo, o Exército israelense bombardeou novamente Teerã, a capital iraniana. O número de mortos nos ataques de Israel que se iniciaram na sexta-feira já subiu para mais de duzentos e vinte, segundo o Ministério da Saúde iraniano; entre eles, setenta mulheres e crianças. Do lado de Israel, os ataques mataram ao menos quatorze pessoas. Israel já ameaça há décadas atacar o Irã. Netanyahu, desde que voltou ao poder, tem uma verdadeira obsessão com essa ideia. Agora, resolveu cumprir as ameaças.

O que estamos testemunhando é mais uma onda de violência e mortes no Oriente Médio, ligada à ação do Estado de Israel como um grande desestabilizador na região. Israel se vende como um pilar do que chama de “nova estabilidade regional”, mas, na verdade, suas ações mostram o contrário. Existe uma grande discrepância entre o que é dito e o que é feito.

Refletindo sobre a racionalidade por trás dos ataques de Israel contra o Irã, iniciados nesta sexta-feira após décadas de ameaças retóricas, podemos levantar a hipótese de que o elemento central, agora, são as pressões que Israel tem sofrido interna e externamente. 

Nas últimas semanas, vimos um aumento dessas pressões — ainda que elas também sejam principalmente retóricas, e não muito materiais. Há o exemplo da Flotilha da Liberdade de que participaram o brasileiro Thiago Ávila e a Greta Thunberg, cujos participantes foram presos por Israel, o que gerou muita atenção da mídia no mundo todo. Há também o Comboio Sumud, caravana que está atravessando o norte da África e reúne muito mais pessoas do que a Flotilha. São quase 7 mil pessoas tentando levar ajuda humanitária a Gaza. A gente também tem visto uma pressão um pouco maior por parte dos Estados e da chamada “comunidade internacional”, que está dando a entender que Israel sofrerá algumas sanções. Principalmente da parte de países europeus, como a Inglaterra, houve a ameaça de quebra de tratados de liv re comércio. 

Não chegam a ser motivos, mas podemos dizer que esses são alguns fatores que levaram o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, chefe de governo de Israel, a tomar essa atitude brusca de violação da soberania do Irã. No fim das contas, a grande justificativa por trás da ação de Israel foi a “guerra preventiva”. O ataque preventivo retoma o que foi a Doutrina Bush, que deu início à Guerra Global ao Terror e veio para justificar a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003.

Desde o início dos ataques, chama a atenção o posicionamento ambíguo dos Estados Unidos. Apesar de se posicionar claramente ao lado de Israel, os EUA não se posicionaram no sentido de mobilizar todo o seu aparato militar presente no Oriente Médio para também atacar o Irã. Vimos, inclusive, Trump dizer que espera que o Irã volte a negociar em torno do acordo nuclear. Vinte anos após a invasão do Iraque e do Afeganistão, poderia estar começando um Oriente Médio pós-americano?

Esta foi a pergunta que tentei responder na minha pesquisa de pós-doutorado ano passado, mas ainda não consegui: estaríamos vivendo um Oriente Médio pós-americano? Acho que podemos destrinchar essa questão em alguns pontos principais. Primeiro, o também motivo pelo qual Netanyahu adotou a postura de atacar preventivamente o Irã, considerado o grande inimigo na região.

Trump, como você disse, é uma figura ambígua. No começo, afirmou que estaria aberto a novas negociações em torno da retomada de um acordo nuclear entre Estados Unidos e Irã. Dias depois, falou que ia bombardear o Irã. Esse é o mesmo Trump que havia acabado com um acordo nuclear que havia sido feito em 2015, envolvendo o Irã, os EUA, algumas potências europeias e a China, o JCPOA. [Joint Comprehensive Plan of Action, ou Plano de Ação Conjunto Global, um acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano firmado em 2015]. Trump chegou ao poder em 2017 e, já no ano seguinte, se retirou do acordo e retomou as sanções econômicas contra o Irã. Havia a expectativa de que Joe Biden retomaria esse acordo, mas isso nunca se materializou; pelo contrário, ele aumentou o número de sanções.

A questão do acordo nuclear também é um motivo pelo qual o Netanyahu adotou essa postura de atacar preventivamente o seu grande inimigo ali na região: o Irã. Trump é essa figura ambígua que, no começo do ano, disse que estaria aberto a novas negociações em torno do acordo nuclear entre Estados Unidos e Irã. E, na mesma semana, disse que iria bombardear o Irã. Nestas retóricas, onde está a verdade? Qual é, de fato, a posição de Trump? É o mesmo Trump que acabou com o acordo nuclear que havia sido feito entre os EUA, algumas potências europeias, a China e o Irã?

Uma ambiguidade conveniente, ao apoiar Israel e ver que as sanções econômicas contra o Irã não funcionaram… 

As sanções econômicas têm sido um instrumento da política externa americana, quase que preferencial, para lidar com os seus chamados inimigos: Irã, Venezuela, Cuba, Coreia do Norte e a própria Rússia, depois da invasão da Ucrânia em 2022. A grande questão é: a justificativa é pressionar uma mudança de regime; só que isso não aconteceu com o Irã. Pelo contrário, o regime tem se fortalecido, algo que tenho acompanhado bastante, e impulsionam o Irã a diversificar suas parcerias estratégicas. 

Desde 2018, com a retomada das sanções que Trump chama de “campanha de pressão máxima”, o Irã se aproximou muito da Rússia e da China.  Militarmente, não existe ainda um Oriente Médio pós-americano. Os EUA ainda são o país que tem mais bases militares neste território. Mas, em termos de influência econômica e diplomática, a China tem se consolidado como um dos grandes parceiros — ou, pelo menos, o maior parceiro comercial de muitos países.

A China adotou uma postura muito importante lá em 2023, antes dos ataques do Hamas e dessa atual fase do genocídio em Gaza, que foi mediar os acordos de normalização entre Irã e Arábia Saudita, que até então eram países considerados inimigos. Ou seja, uma postura muito diferente da que, desde os anos 80, os EUA adotam como política externa no Oriente Médio, baseada em intervenções e presença militar massiva.

Ainda sobre o Irã, vale prestar atenção em um fenômeno interessante. O país, claro, tem grandes questões domésticas de violações de direitos humanos e há as mulheres que lutam por seus direitos (pois o feminismo não é algo somente ocidental), o que têm desdobramentos dependendo de cada local, mas não houve de fato mudança de regime ou pressão popular para uma mudança de regime. Na verdade, nesses últimos dias, a população iraniana foi às ruas pedir para que o país desenvolva o seu programa nuclear. Isso nunca tinha acontecido. Então, também aí há uma variável importante que é a sociedade civil; não a organizada, mas a população em si. Fala-se muito da força das ruas árabes — no caso do Irã, seriam ruas persas — que acredito ser um indica dor interessante do apoio da população ao desenvolvimento do programa nuclear iraniano, algo que exige ser acompanhado de perto. 

Israel nunca assinou o Tratado de Não-Proliferação e tudo indica que possui algo entre 50 a 90 armas nucleares, desenvolvidas com a colaboração de países como Estados Unidos, Reino Unido e França. Israel chegou a fazer testes nucleares clandestinos até mesmo em parceria com a África do Sul do apartheid. Mas, ao se pronunciarem sobre a guerra em curso, as potências ocidentais frisam apenas que o Irã não pode desenvolver armas nucleares. Não se trata de uma hipocrisia da comunidade internacional, que permitiu e apoiou a construção do arsenal atômico clandestino de Israel, exercer toda essa pressão diplomática para que o Irã não faça o mesmo?

É total hipocrisia e impunidade as ações de Israel, apoiadas pelos EUA, claro, porque não assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear — a justificativa usada para ameaçar seus vizinhos. O Irã assinou. Não há provas de que o Irã tem ou está desenvolvendo bombas nucleares. É uma narrativa similar à usada no Iraque: um país está desenvolvendo armas de destruição em massa, neste caso o Irã, ameaçando a estabilidade regional. 

Kenneth Waltz, o “pai da teoria das relações internacionais”, publicou em 2012 um artigo chamado “Por que o Irã deveria ter a bomba”. Basicamente, o argumento da teoria chamada neorrealista das relações internacionais discute a necessidade de uma balança de poder, o mesmo ou similar, para garantir a estabilidade regional. 

Isso também retoma um pouco a uma das primeiras perguntas, sobre os motivos de Netanyahu atacar o Irã agora, diante da perspectiva de que as negociações entre Teerã e Washington para promover um novo acordo nuclear fossem retomadas ainda neste mês. A estratégia de Trump e Biden sempre foi de pressão, infundada e ineficaz, por meio de sanções econômicas.

Agora tem-se uma retórica um pouco diferente; uma postura, pelo menos em estratégia, que é voltar à mesa de negociação para, enfim, chegar ao novo acordo nuclear e diminuir, ou pelo menos acabar, com as sanções econômicas. Isso significa que, se esse acordo, de fato, for feito, haverá um novo arranjo de acordos que permitam que o Irã não sofra mais com estas sanções e consiga se estabelecer no Oriente Médio de forma um pouco mais estável. 

Isso não é interessante para Israel. Ano passado, Netanyahu foi aos Estados Unidos e discursou no Congresso americano, dizendo que o Irã era o grande inimigo e que era o momento para desenvolver sua visão para o Oriente Médio. Ele apontou que, com mediação dos EUA e com as relações com alguns países árabes, principalmente monarquias do Golfo, seria possível estabelecer a Aliança de Abraão – uma espécie de Otan do Oriente Médio. 

A normalização das relações com a Jordânia em 1994 e, antes, em 1979, com o Egito, além das que Israel tem com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão, não são acordos de paz, porque não são países que estavam em guerra com Israel, mas era uma lógica surgida em 2020, e mediada por Trump, baseada no que alguns autores vão chamar de paz neoliberal ou paz econômica: a ideia de que as relações comerciais são as responsáveis por estabilizar a região ao fazer com que os países não entrem em guerra. A Palestina, dentro dos acordos de Abraão, foi completamente ignorada; ou seja: a questão palestina não era mais um elemento que deveria ser resolvido para garantir a chamada paz entre árabes e israelenses. 

Outro país entraria no acordo: a Arábia Saudita é o grande foco dos acordos de Abraão, apesar de ainda não fazer parte. Desde Trump I e depois com o Biden, houve uma tentativa de incluir a Arábia Saudita, sendo o ator mais poderoso do Conselho de Cooperação do Golfo e das Monarquias do Golfo. Uma normalização entre Arábia Saudita e Israel significaria o completo abandono da questão palestina. Os ataques do 7 de outubro do Hamas e o genocídio em Gaza paralisaram completamente essas negociações. A Arábia Saudita disse que não vai retomar as negociações enquanto não houver uma solução factível para a criação de um Estado palestino. 

Mas o genocídio em Gaza também mostrou que a ingerência dos Estados Unidos ainda é muito forte. Autores apontam, e eu concordo, que os EUA não somente apoiam o genocídio em Gaza, mas estão diretamente envolvidos, ao mandarem ajuda militar e financeira — ou seja, são os financiadores.  China e Rússia muito pouco têm feito também para frear esse genocídio, apesar de serem duas grandes potências que poderiam ter uma influência para pressionar o Estado de Israel. Ontem mesmo, houve outros bombardeios em Gaza, mas os olhos do mundo estão, obviamente, voltados para o Irã. 

Além da dinâmica recente de normalização das relações com Israel, chama atenção a conduta dos Estados árabes durante a atual guerra. O Comboio Sumud está sendo impedido de seguir até Gaza por um dos governos rivais que disputam a Líbia. Os participantes da Marcha Global para Gaza estão sendo presos e deportados pela ditadura do Egito. Segundo a própria monarquia, a Jordânia está derrubando os mísseis iranianos que cruzam seu espaço aéreo, alegando “defesa da soberania”. Existe alguma chance de que os estados árabes mudem de postura e tomem ações concretas contra os crimes e a conduta agressiva de Israel?

Sou bem pessimista nesse sentido. Acompanhando as ações de Egito e Jordânia, se vê que a questão palestina está longe de ser uma prioridade desses Estados. Não acho que os países do mundo árabe vão adotar uma postura mais dura em relação a Israel, principalmente os que já assinaram os Acordos de Abraão, como os Emirados Árabes Unidos (dentre eles, o Bahrein teve uma postura um pouco diferente, mas é um país muito pequeno).

Desde o momento em que normalizaram suas relações com Israel, esses governos passaram a ser considerados “traidores” pelas populações árabes. Normalizar as realizações com Israel é entendido, em primeiro lugar, como aceitar a própria colonização sionista da Palestina. Desde o 7 de outubro, ocorre uma série de manifestações no próprio Egito, na Jordânia, na Arábia Saudita e em outros países contra isso. Uma pesquisa do Washington Institute for Near East Policy mostrou que 96% dos sauditas é contra a normalização com Israel. Essa seria uma normalização de jure, porque ela já existe de fato, dado que existem relações comerciais por debaixo dos panos. Elas são principalmente ligadas à troca de tecnologia e à indústria de armas. 

Israel tem uma posição muito estratégica em sua política externa, que alguns autores chamam de “diplomacia das armas”, ou da venda de armas. Eles conseguem se dar bem com muitos países — inclusive do Sul Global, como o Brasil — e solidificar suas relações com base na indústria de armas e no setor tecnológico. Soma-se a isso a venda de sua imagem como uma “start-up nation” e como um oásis ocidental no Oriente Médio. No fim das contas, esses instrumentos conseguem consolidar essas boas relações comerciais, mesmo que não diplomáticas. Existe uma discrepância entre o que é dito na diplomacia e o que é feito na economia política internacional.

Com os países árabes, trocam-se muitas tecnologias e táticas de contra-insurgência. O Egito é um dos maiores exemplos. A cooperação foi se consolidando depois das revoltas árabes e se materializou mais adiante nos Acordos de Abraão. O comércio de Israel com os países árabes cresceu exponencialmente desde então e a venda de armas foi recorde no ano passado. De toda forma, a sociedade civil nesses países é contra a normalização, apontando que normalizar as relações com Israel é normalizar o genocídio, a limpeza étnica, a ocupação e a colonização israelense da Palestina. 

Um dos resultados do 7 de outubro foi expor ao mundo os perigos da normalização de Israel, lembrando que a criação e a manutenção desse Estado se baseiam na colonização, na expulsão e no roubo de terras. Enquanto olhamos para o que está acontecendo no Irã, Israel leva adiante sua política de expansão de assentamentos na Cisjordânia. Antes do 7 de outubro, Gaza estava ficando completamente marginalizada. Depois, ela passou a ser o centro das atenções. 

É importante que não se perca essa visão mais ampla do que é a questão palestina. Ela tem suas particularidades locais, mas revela violências estruturais que atingem todo o mundo. O que acontece na Palestina não é muito diferente do que aconteceu na África do Sul durante o apartheid ou de outros genocídios em curso. Apesar de Gaza ser um espaço muito pequeno, de somente 365 km², ela consegue revelar as operações estruturais do capitalismo e do colonialismo no século XXI.

Os gastos militares globais aumentaram em 37% na última década, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Em parte, isso se deve às pressões de Donald Trump sobre os demais países da OTAN e também à guerra na Ucrânia. Mas a escalada das tensões no Oriente Médio seguramente cumpre um papel nessa tendência. Como o atual conflito se encaixa na corrida armamentista mais geral que ocorre no mundo?

A guerra é sempre muito lucrativa para a indústria de armas. Desde o 7 de outubro, o volume do comércio de armamentos de Israel se expandiu bastante. Não só lá como também nos Estados Unidos, até por conta da guerra na Ucrânia. Existe um elemento de lucratividade na guerra permanente, mas que tem um fator particular neste caso: Israel foi fundado e se mantém por meio desse estado de guerra permanente contra os palestinos. A Palestina é um grande laboratório onde Israel testa suas armas que depois vão ser exportadas, inclusive para o Brasil.

Vários movimentos chamam a atenção para as conexões entre a colonização israelense da Palestina e a violência contra as comunidades, denunciando que as armas que matam os palestinos são as mesmas que matam a juventude negra no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Já existe uma nova corrida armamentista, mas ainda é complicado dizer no que ela vai resultar. Israel e o governo Netanyahu têm apostado tudo para tentar se manter existindo, e há uma tentativa de envolver diretamente os Estados Unidos na guerra. Não sei se os EUA se envolveriam militarmente no sentido de envio de tropas, já que existe a possibilidade de uma postura vinculada à retórica America First do Trump, de se retirar dos conflitos intermináveis no Oriente Médio. Isso já aconteceu no primeiro mandato dele, como nas negociações com o Talibã que resultaram na retirada das tropas americanas do Afeganistão em 2020. Mas tudo é possível nas relações internacionais, especialmente em um momento em que Trump diz uma coisa e no dia seguinte faz outra.

Em termos das relações entre as grandes potências e os países da região, os Estados Unidos e Israel têm consolidado e expandido sua chamada “relação especial”, em que muitas vezes é difícil distinguir o que são os interesses de Israel e o que são os interesses dos Estados Unidos. Se houver uma guerra total entre Israel e o Irã, acredito que os EUA vão se envolver diretamente. No entanto, o mesmo não seria verdade em relação ao Irã, que mantém boas relações com China e Rússia. A China opta por apoiar o Irã por meio de conversas diplomáticas e de bastidores, ela tradicionalmente não tem essa postura de envolvimento militar nos conflitos do Oriente Médio. A Rússia chegou a se envolver no conflito da Síria — mas o governo de Bashar al-Assad, com quem os russos mantinham rela&c cedil;ões, caiu em dezembro do ano passado. O envolvimento militar russo é improvável.

Isso responde também a uma dinâmica regional que tem se materializado desde a Primavera Árabe. As monarquias árabes que fazem parte do Conselho de Cooperação do Golfo adotam uma política externa que alguns autores chamam de hedging. Não se trata exatamente de neutralidade, mas é uma política de segurança em que se mantém boas relações com potências inimigas. É o caso da Arábia Saudita, que mantém relações com os Estados Unidos e a Rússia ao mesmo tempo. As monarquias não adotaram a política de sancionar a Rússia, encabeçada pela União Europeia e os EUA. Pelo contrário, elas mantiveram a cooperação energética, muito pautada pelo comércio do petróleo e do gás natural. Essas outras potências não se envolveriam em uma guerra regional entre Israel e Irã.

Além disso, existe a questão do armamento nuclear. É a primeira vez desde a Guerra Fria em que podemos estar na iminência de um conflito nuclear. Não acredito que essa guerra vá evoluir nesse sentido, até porque isso poderia significar a destruição da humanidade, mas é difícil não desconfiar do que Netanyahu e Trump podem fazer. 

Por isso, volto para o que tem se defendido desde o início do genocídio em Gaza, que é a necessidade de sanções e pressão contra o Estado de Israel que não sejam somente retóricas e diplomacia. Uma pesquisa que saiu no ano passado mostra que o Brasil é responsável por 9% do suprimento de petróleo cru de Israel. Interromper isso é uma forma de fazer uma pressão real. É o que se fez na Colômbia, depois da pressão de sindicatos e movimentos da sociedade civil. A Colômbia era um dos países que mais vendia carvão para Israel, e o governo de Gustavo Petro interrompeu esse comércio. Mas é preciso um movimento de massa. Além disso, não basta um só Estado sancionar ou pressionar Isra el, mas toda a comunidade internacional, que supostamente preza pela paz e segurança internacional, tem dado carta-branca para Israel fazer o que bem entender. 

Essa é a defesa do movimento global Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que existe desde 2005 e é uma forma de resistência para que Israel mude sua postura em relação aos palestinos, mas também ao Irã, ao Iêmen, à Síria, enfim, todos os países agredidos.

Desde o 7 de outubro, dez países passaram a reconhecer o Estado da Palestina. Outros onze países romperam ou reduziram o nível das relações diplomáticas com Israel. Ontem, manifestações significativas por todo o Brasil exigiram a ruptura das relações diplomáticas e econômicas com Israel. O ato em São Paulo chegou a contar com 30 mil pessoas. Mesmo assim, o governo Lula não se move. O que está por trás dessa paralisia?

Acredito que um dos elementos seja justamente a força de Israel com base em sua diplomacia das armas. Ela faz com que Israel tenha uma influência na política externa e até mesmo na política doméstica dos países. Além disso, é preciso considerar a força do movimento sionista — aqui, não só falando de “lobby israelense” ou “lobby sionista”, porque não se resume a isso —, da própria ideologia sionista, que encontra adeptos em muitos países. Mas o comércio é o elemento central que vai nos ajudar a entender por que o Brasil de Lula, que se diz progressista e defensor dos direitos humanos, segue com essa postura ambígua.

Lá em 2010, no apagar das luzes de seu segundo governo, Lula reconheceu o Estado da Palestina como um dos seus atos finais. Mas é preciso lembrar que naquele mesmo governo foi assinado o Acordo de Livre Comércio Mercosul-Israel, que não aconteceria sem a anuência do membro mais poderoso do bloco. Aquele foi o primeiro acordo comercial do Mercosul com um país de fora das Américas, isso não é pouca coisa.

Um dos elementos centrais para desmantelar a influência do imperialismo dos Estados Unidos no Oriente Médio é pressionar materialmente o Estado de Israel. No caso do Brasil, isso significa parar a venda de petróleo que abastece a indústria militar israelense e, em última instância, o genocídio em Gaza. 

O Brasil pode fazer muito mais do que só vir a público e dizer que está acontecendo um genocídio e Israel deveria parar de matar os palestinos. Uma política externa brasileira mais robusta e assertiva deveria pressionar materialmente o Estado de Israel, e ser um exemplo do que outros países latino-americanos e do Sul Global podem fazer. O Brasil se vende muito como uma liderança da América Latina, dos Brics e do Sul Global, mas está se restringindo aos termos retóricos. Eu não quero dizer que as palavras não são importantes, a diplomacia funciona por meio de gestos. Mas para parar as bombas que caem diariamente contra os palestinos, elas não bastam.

A Colômbia trouxe um exemplo importante, que deve ser seguido. Além de ter parado de vender carvão a Israel, a Colômbia integra o que é conhecido como Grupo de Haia, um grupo de nações do Sul Global que se uniram para fazer valer a ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional contra o Netanyahu e também para promover uma série de ações voltadas para o movimento de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel. O Brasil, assim como os demais países do Sul Global, deveria seguir o exemplo colombiano. O que acontece na Palestina pode acontecer a qualquer momento em nossos países, que vivem até hoje o legado da colonização e do imperialismo dos Estados Unidos e seus aliados.

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Leia: Oriente Médio em crise: o coração da instabilidade global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/claudio-carraly-opina_24.html