Mundial de empresas: choque entre oligopólios do futebol
Capos das maiores entidades do
esporte disputam a supremacia em megaeventos. Mundial de Clubes é a nova aposta
da FIFA. Na Europa, a fábrica de pop-stars da UEFA enfrenta o
mercado do Oriente Médio. E a real disputa, para a tristeza do torcedor, é pelo
monopólio do futebol
Raphael Fagundes e Danilo Sorato/Le Monde
Diplomatique
“Ídolo
máximo do Liverpool, o atacante Mohamed Salah criticou o
comportamento da torcida com o lateral-direito Alexander-Arnold. De saída dos Reds após 20 anos, o defensor inglês
foi vaiado ao substituir Conor Bradley no empate por 2 a 2 contra o Arsenal, pela 36ª rodada da
Premier League”.1
O mesmo aconteceu com Gerson, com venda encaminhada para o Zenit da Rússia, no Mundial de Clubes da FIFA. “O meio-campo Gerson, do Flamengo, foi vaiado pelos rubro-negros presentes no estádio Lincoln Financial Field, antes de a bola rolar para o jogo contra o Esperánce, nesta segunda-feira, na estreia do time na Copa do Mundo da Fifa”.2
Embora a mentalidade neoliberal esteja entranhada na sociedade, alimentada por um discurso que exalta “a promoção de uma visão empreendedora e puramente econômica da vida e de todas as atividades humanas”3, elementos simbólicos ligados à questão da identidade, do sentimento de pertencimento, da emoção etc. permanecem fortes, porém são sustentados por interesses diferentes dos quais, outrora, impulsionaram a disseminação do futebol pelo mundo.
O futebol
não saiu da Inglaterra sob o comando de uma vocação econômica. Não se tratava
de uma commodity cultural inglesa. Não foi a economia que se
apropriou do futebol nos primeiros anos da prática esportiva, mas a
política.
Criado
pela classe média como um elemento de distinção, Eric Hobsbawm explica que, nos
primórdios de sua profissionalização, o esporte bretão mais parecia “uma
curiosa caricatura das relações entre classes do capitalismo industrial, como
empregadores de uma força de trabalho predominantemente operária, atraída para
a indústria pelos altos salários, pela oportunidade de ganhos extras antes da
aposentadoria (partidas beneficentes), mas, acima de tudo, pela oportunidade de
adquirir prestígio”.4 Neste momento, os trabalhadores jogavam para complementar
a renda.
De acordo
com o historiador Renato Soares Coutinho, a pretensão popular do Flamengo, por
exemplo, só veio na década de 1930, quando surge um projeto de Estado
nacionalista. A cultura popular passa a ser valorizada. A capoeira, os blocos
carnavalescos, o samba etc., passam a ser símbolos da nação. “Estado e
trabalhador haviam encontrado um vocabulário adequado para o reconhecimento
mútuo: o nacionalismo”, destaca Coutinho. “O Flamengo foi o primeiro clube de
futebol no Brasil que se apropriou do bem-sucedido discurso nacionalista estatal”.
Ou seja, o Flamengo começou a investir em sua imagem popular se aproveitando do
discurso político da época.
No
período entreguerras, “o Estado-nação totalitário ‘descobre’ o futebol e
procura colocá-lo a serviço do interesse nacional”.5 Hitler promovia partidas
internacionais para divulgar a imagem do regime nazista. E para a Copa de 1934,
na Itália, “um dos cartazes promocionais do Mundial apresentava um jogador, com
a bola no pé, fazendo a clássica saudação fascista com o braço estendido”.6
Mas, após
a Segunda Guerra Mundial, o Estado de bem-estar social aumentou a renda do
trabalhador, ao mesmo tempo em que ampliou o período de ócio. As tecnologias de
comunicação também foram aprimoradas, principalmente com a invenção e
popularização da televisão. Tanto as Olimpíadas quanto as Copas “eram limitadas
a poucos países, a poucos trechos das competições e com atraso de alguns dias.
Contudo, na década de 1950, os russos lançaram o satélite Sputnik e 18 países
europeus – e, com algumas horas de defasagem, EUA, Canadá e Japão – assistiram
as Olimpíadas de 1960 pela televisão”.7 Esses elementos foram levando o futebol
a se encaminhar diretamente para a cultura de massas e a transmissão televisiva
torna-se a principal fonte de faturamento dos eventos.
Assim, quando o capitalismo entra em crise nos anos 1970, a forma encontrada pelos capitalistas para manter os lucros “foi a subsunção de setores que até então também não estavam totalmente integrados à lógica do valor”.8 De acordo com o professor Wagner Barbosa Matias, o futebol foi um desses setores.
“Até a reestruturação do modo capitalista ocorrida em meados da década de 1970, apesar de já existirem competições e campeonatos futebolísticos em todo o mundo, inclusive com grandes eventos internacionais, por exemplo, a Copa do Mundo FIFA, as receitas dos clubes e das federações eram basicamente a partir das bilheterias […] No entanto, isso ganha novos contornos com a substituição da bilheteria pela comercialização dos direitos de difusão das imagens produzidas pelos atletas como principal fonte de receita”, explica Matias.9
Hilário
Franco Júnior diz que regras como a do impedimento, a que regula o tempo que o
goleiro pode permanecer com a bola na mão após ser recuada e os três pontos
pela vitória nos campeonatos foram mudanças para aumentar a possibilidade de
gols e de dinamizar o jogo para agradar ao público que assiste ao espetáculo.10
Segundo o historiador, “hoje, quase todo equipamento de jogadores e árbitros
está disponível para o marketing, bem como os espaços dos estádios, salvo as
traves e as redes, pelo caráter religioso inerente a tais locais”.11
Jacques
Attali foi perspicaz em sua observação, como cita Gilberto Agostinho em livro
clássico: “Segundo o autor, o esporte vai perder sua identificação com o
sentimento nacional ou regional, sendo completamente controlado não só pelas
grandes corporações econômicas, como também pela mídia, com sua dinâmica
vinculada às exigências de uma programação televisiva intensa, capaz de
potencializar toda a emoção e a violência do jogo em um espaço como concentrado
entre um comercial e outro”.12 Esse momento chegou, e os clubes já podem ser
chamados de empresas.
Operários milionários
Hoje, a
concentração de capital é tão alta que é possível pagar milhões em um funcionário
quando o retorno é mensurado em bilhões. É curioso que “a desigualdade dos
patrimônios, que diminuirá até 1970, parece ter retomado uma curva
ascendente”13 a partir de tal década, a mesma em que, por sua vez, tem início a
“indústria do futebol”.14 Thomas Piketty mostra que “a teoria mais simples para
explicar a desigualdade dos salários sustenta que diferentes salários aportam
diferentes contribuições à produção de uma empresa”.15 O salário aumenta de
acordo com a qualificação e, no caso do futebol, o capital humano está
relacionado ao jogador que mais se adequa aos padrões do espetáculo midiático.
Como explica Wagner Matias, “o clube investe em capital constante – como
centros de treinamento, academias e estádios – e capital variável para produzir
em quantidade e qualidade de forma ininterrupta a mercadoria jogadores
profissionais […] Portanto, os clubes de posse dos meios de produção e de força
de trabalho se apropriam de jovens com potencial e no seu interior lapida […]
neles os signos do futebol espetáculo”.16
As
competições internacionais, principais fonte de renda da FIFA, funcionam como
uma vitrine. A FIFA vende o insumo “futebol” para a fabricação de outras
mercadorias (roupas, desodorantes, shampoos etc.). Diferente do
‘tecnofeudalismo’, em que as Big Techs exploram o trabalho não
assalariado dos usuários que cedem seus dados para tais corporações, os
clubes-empresas exploram os operários da bola pagando imensos salários, já que
o retorno não é apenas alto, mas porque o giro do próprio capital torna-se
extremamente rápido. “Afinal, diferentemente de um bem, os espetáculos são
consumidos rapidamente”.17
Embora
muitos destaquem a atuação dos países árabes para o fortalecimento da sua
imagem no cenário geopolítico, jamais podemos comparar tal utilização do
futebol com a promovida pelos regimes que o usaram para redefinir a identidade
nacional. Os que assistem ao Mundial de Clubes até se emocionam ao ver os times
latino-americanos vencerem os europeus, mas tudo se trata de um espetáculo que
comercializa – assim como grande parte da indústria do entretenimento — a
emoção. Os jogadores são funcionários, operários milionários, que são expostos
nos campos para vender marcas. O sentimento dos torcedores, a emoção de herdar
o time do pai, de chorar e gritar palavrões enquanto os jogos são assistidos
são genuínas. O que mudou é que, enquanto antes o que alimentava essas emoções
eram propósitos políticos, hoje são puramente econômicos. E se antes se dizia
que o futebol era usado para alienar as massas enquanto os políticos faziam o
que queriam, hoje ele é usado para enriquecer empresas.
Mundial de Clubes: uma oportunidade de negócio
Ao ser
entrevistado pelo The Atlantic, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, soltou
uma frase que buscava tocar o coração dos adeptos do esporte bretão: “Já era
hora de alguém inventar uma Copa do Mundo para clubes. Há 100 anos, sabemos
qual é o melhor país do mundo, mas, até hoje, não sabemos realmente qual é o
melhor time do mundo. Então, pensamos que talvez não fosse uma ideia ruim criar
uma Copa do Mundo para as equipes decidirem.”18 Era uma frase para agitar e
influenciar os principais consumidores do produto futebol. Infantino, capo da
FIFA, queria os olhos do planeta focados na principal competição de clubes. Mas
o que estava por trás dessas declarações?
A FIFA é
a principal entidade que comanda o futebol do planeta. Segundo último balanço
de contas apresentado pela entidade, espera-se que ela alcance um orçamento de
US$ 11 bilhões entre os anos de 2023-202619. Um aumento significativo de
aproximadamente US$ 4 bilhões em relação ao ciclo anterior entre 2019-2023.
Esses números mostram o poder econômico e financeiro que a entidade máxima do
esporte bretão tem arrecadado nos últimos anos sob a gestão de Infantino.
Diante
dos números, e com o objetivo de ampliar o capital, a FIFA resolveu criar um
torneio de clubes que englobe todos os continentes. Dentre as finalidades
estava certamente a intenção de abocanhar o mercado europeu, o mais potente
economicamente do mundo. Por exemplo, na última temporada 2023/2024, o futebol
europeu arrecadou cerca de 38 bilhões de euros, com um crescimento de 8% em
relação a temporada anterior20. Se olharmos para as cinco grandes ligas do
planeta (Espanha, Inglaterra, Itália, França e Alemanha), o valor gerado foi de
aproximadamente 20 bilhões de euros. Há uma oportunidade de ganhar dinheiro
para a FIFA, e ela não desperdiçou ao colocar representantes das 5 grandes
ligas no torneio, bem como colocar os europeus com o número maior de vagas.
FIFA x UEFA: a disputa pelo monopólio do
futebol
É claro
que a criação de um novo torneio provocaria conflitos. E o principal deles é
pela disputa do monopólio do produto Futebol. A FIFA, ao reivindicar para si um
torneio com 32 clubes, procurou diminuir a influência da segunda maior entidade
do futebol, a UEFA. Não é novidade no meio do futebol que o presidente da FIFA,
Gianni Infantino, e o presidente da UEFA, Alexander Ceferin, são rivais quando
o assunto é disputar a gestão do futebol mundial.
A UEFA,
com um orçamento de 6, 777 bilhões de euros na temporada 2023/202421, tem se
notabilizado com o slogan de a “maior organizadora de eventos
de futebol”. Seus produtos destacam-se, tais como, a Champions League e a
Eurocopa. Entretanto, nos últimos anos, Ceferin entrou em um lugar perigoso: o
futebol de seleções. Ao criar um novo torneio de seleções com apenas os
europeus, a Nations League, Ceferin começou a estratégia de ampliar o mercado
comandado pela Europa. Essa estratégia não caiu bem na FIFA, que costuma
divulgar possuir o “maior torneio do planeta”. A estratégia se ampliou na
temporada passada, quando a Champions League foi reformulada, aumentando o
número de clubes e jogos, com a finalidade de gerar mais receitas para a
instituição.
Sem
perder tempo, e observando o movimento dos rivais, a FIFA colocou seu projeto
de mundial de clubes para rodar. Apesar da pressão da UEFA e das ligas
nacionais, os gigantes europeus decidiram participar do torneio após observarem
qual seria a premiação. A FIFA desembolsou US$1 bilhão como premiação para
todos os participantes, valor que é dividido por cada fase e também existem
valores para vitória, empate e derrota. Um exemplo da importância financeira do
evento, é que caso o Real Madri chegue até a final conseguirá desembolsar
aproximadamente US$125 milhões. E é nesse ponto que chegamos a mais uma
disputa: o modelo de clubes.
Clubes-Sócios x Clubes-Estados: a disputa pelo
modelo de gestão e pelo capital
O Real
Madri, maior clube de futebol do mundo, orgulha-se de possuir um modelo de
gestão no qual os sócios do clube votam para escolher um presidente. O atual,
Florentino Peréz, é considerado um dos grandes gestores de futebol do século
XXI em virtude da revolução que criou ao juntar jogadores de futebol e direitos
de imagem, criando verdadeiros pop-stars do futebol. Esse
modelo iniciou com a 1ª geração dos galáticos entre 2001 e 2006, com jogadores
como Roberto Carlos, Beckham, Zidane, Figo, etc. Depois foi aperfeiçoado com a
introdução das redes sociais e a expansão da imagem, com a 2ª geração entre
2008 e 2018, e jogadores como Cristiano Ronaldo, Benzema, Di Maria, Modric,
dentre outros.
Esse
modelo que foi herdado do século XX, com algumas atualizações, vem sendo
ameaçado na Europa pelos chamados, clubes-Estado. São aqueles clubes que
possuem a administração sendo feita por um grupo de pessoas que são ligadas a
países, especificamente, aos países do Oriente Médio. Dentre os clubes que
estão nesse modelo aparecem o Paris Saint- Germain, o Manchester City, dentre
outros. A disputa entre os dois modelos é uma briga por quem comanda mais
capital do futebol advindos das receitas ligadas a patrocínios, ingressos,
premiações, etc.
É
interessante comparar os orçamentos desses dois modelos de gestão para entender
que apesar das diferenças de donos, eles possuem a mesma finalidade: lucrar e
alcançar o máximo de capital. Por exemplo, na temporada 2023/2024, o Real Madri
conseguiu atingir 1 bilhão de euros, tornando-se o primeiro clube da história a
alcançar esse valor. Seu adversário na gestão, os clube-Estados, Manchester
City e o PSG, atingiu o valor de 838 e 806 milhões de euros na mesma temporada,
respectivamente22.
O Real
Madri, interessado em conseguir mais dinheiro para financiar seus projetos
esportivos, durante a pandemia lançou uma iniciativa que criou um problema
político com a UEFA: a Superliga. O torneio, encampado por Real Madri e
Barcelona, buscava ser um competidor da Champions League. O projeto foi lançado
e apoiado pelos dois gigantes espanhóis, mas sofreu represálias de Ceferin que
ameaçou punir esportivamente ambos, caso seguissem com essa ideia.
Em
paralelo, o PSG articulou nos bastidores apoio a Ceferin e a UEFA, juntando um
grupo de times que fossem favoráveis a manter a Champions League, como principal
torneio de clubes do planeta. Estava formada as alianças políticas pela disputa
do capital do futebol: UEFA-PSG x Real Madri-Barcelona. Faltava um último ator
para compor essa disputa. Pois não falta, a FIFA com a criação do mundial de
clubes, indiretamente entrou nessa peleia ao trazer para seu torneio a benção
do maior clube do planeta, o Real Madri.
No fundo,
o que se percebe da disputa acima é uma briga pelo acesso ao capital que o
futebol gera no mundo. As federações disputam quem vai gerir as competições
esportivas, e a consequente mais valia advinda dessas competições. Do outro
lado, os clubes não apenas disputam troféus, mas querem lucrar ao máximo com
valores de competição, ingressos, publicidade e transferências. E a disputa se
intercruza quando federações e clubes se aliam para alcançar o monopólio do
futebol. Melhor dizendo, do Soccer.
Com esse
projeto neoliberal de transformar tudo em empresa, o sentimento de torcedor
está sendo manipulado por meio de um cimento ideológico que permite a
reprodução dessa estrutura. Assim, o jogador é um símbolo de “mérito;
individualismo; capacidade de superação e de lutar por novas conquistas; também
são fundamentais para induzir os indivíduos a comprarem os produtos e
serviços”.23 Não que o projeto ideológico nacionalista anterior era mais
emancipatório para a humanidade, mas, no que a sua substituição nos enriquece
socialmente para a construção de uma vida harmoniosa? Embora sejamos
torcedores, precisamos refletir sobre tal situação.
Raphael Fagundes é professor e Doutor em História Política pela UERJ. Danilo Sorato é professor de História e Relações Internacionais. Doutor em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Laboratório de Política Externa Brasileira (LEPEB/UFF) e Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos e do Planejamento Espacial Marinho (CEDEPEM/UFF/UFPel). Escreveu diversos artigos acadêmicos e jornalísticos sobre as relações internacionais do Brasil, em especial os governos Temer, Bolsonaro e Lula.
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Futebol brasileiro patina na gestão de clubes e federações https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/decadente-gestao-do-futebol-brasileiro.html
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