A aposta na morte do jogo: como o mercado subverte a essência do futebol
A indústria das apostas esportivas transforma paixão em lucro, reduz o jogo a estatísticas frias e ameaça a cultura, a ética e a alma do futebol.
Thiago Modenesi/Vermelho
Neste domingo fui numa lanchonete com meu filho e passava na TV o jogo do Vila Nova contra o Amazonas, os atendentes não torciam por nenhum dos dois, mas monetizavam atentamente cada passe, cada jogada e cada gol, sem paixão alguma, apenas focando em quanto ganhariam e perderiam ali.
O futebol sempre pulsou com uma magia singular. É mais que um esporte, é narrativa coletiva, identidade cultural, catarse emocional. É a imprevisibilidade do drible, a genialidade inesperada, o gol nos acréscimos que ergue estádios. É paixão pura, desinteressada, jogada por amor à camisa e ao jogo. No entanto, uma sombra avassaladora ameaça essa essência: a indústria das apostas esportivas, que não apenas infiltra o universo do futebol, mas ativamente o subverte, impondo uma lógica neoliberal que corrói sua alma.
O neoliberalismo, em sua essência, é um projeto de colonização total pela lógica de mercado. Tudo se torna commodity, tudo tem preço, tudo é passível de exploração e monetização. As apostas esportivas são a ponta de lança perfeita dessa invasão no território sagrado do esporte. Não só isso, leva o raciocínio da “uberização”, em que todos priorizam o individualismo focado no lucro a partir da lógica neoliberal de sociedade com primazia do mercado e da especulação financeira.
Elas operam uma perversa transmutação do jogador ao ativo financeiro, em que o craque que encanta não é mais apenas um artista em campo, é um ativo cujo desempenho afeta as odds, que são calculadas dentro da possibilidade de um resultado vir a ocorrer naquela partida, e os lucros das casas de aposta. Sua lesão não é só uma tragédia esportiva, é um evento de mercado que causa prejuízos ou ganhos. A genialidade é reduzida a um fator de risco calculável.
A emoção da vitória ou da derrota é substituída pela fria avaliação de um investimento. O torcedor, outrora movido pela lealdade e paixão, é seduzido a se tornar um especulador. A alegria do gol do seu time se confunde (ou é superada) pelo alívio de ter “acertado” a aposta. O jogo deixa de ser um fim em si mesmo para se tornar um meio para transações financeiras.
A magia do futebol reside justamente no seu caráter incerto, no fato de que o “fraco” pode vencer o “forte”, e que o improvável algumas vezes acontece. As apostas buscam incessantemente domar essa imprevisibilidade, transformando-a em “risco” a ser quantificado, precificado e, idealmente (ao menos para as casas de apostas…), controlado. Essa busca pela previsibilidade absoluta é o oposto do espírito do jogo.
O futebol constrói comunidades, une pessoas em torno de um símbolo comum. As apostas fomentam o individualismo neoliberal por excelência. É o ganho pessoal acima do resultado coletivo do time. Torce-se contra o próprio time se isso significar lucro na aposta. O “eu” sobrepõe-se ao ‘nós” da torcida.
O incentivo perverso ao lucro através de resultados específicos cria terreno fértil para manipulação de partidas, intimidação de jogadores e corrupção. A integridade do esporte é posta em xeque quando o resultado vale mais do que a honestidade do espetáculo.
A invasão visual é brutal. Logos de casas de apostas dominam camisas, estádios, placas de publicidade e telas de transmissão. Essa saturação normaliza o jogo de azar, especialmente entre jovens e grupos mais vulneráveis, banalizando um vício com consequências sociais devastadoras.
A linguagem das apostas contamina também a cobertura esportiva. Discussões sobre “odds”, “favoritismo” para as casas e “valor de aposta” substituem análises táticas e celebrações da beleza do jogo. O foco desloca-se da arte para o mercado.
Por trás do marketing glamourizado, esconde-se uma indústria predatória que lucra com a dependência. A tragédia humana do vício em jogos de azar – endividamento, desestruturação familiar, problemas de saúde mental – é o subproduto oculto e brutal desta transposição neoliberal para os campos de futebol.
As apostas esportivas não são um complemento inocente ao futebol. Elas representam a imposição violenta de uma lógica neoliberal que esvazia o esporte de seu significado cultural e emocional, transformando-o em mais um campo de batalha do mercado, onde tudo é precificado e a única medida de valor é o lucro.
Subvertem a essência do jogo ao substituir a paixão desinteressada pela especulação individualista, a imprevisibilidade mágica pelo risco calculado, e a integridade competitiva pela ameaça constante da corrupção. Defender o futebol como expressão cultural e coletiva é, também, resistir a essa colonização neoliberal que busca transformar cada lance, cada jogador, cada torcedor, em meros números numa planilha de lucros e perdas. A verdadeira essência do futebol reside no jogo, não na aposta. E é essa essência que precisa ser preservada contra a voracidade do mercado, se faz urgente o rigor da Lei para as bets para ao menos tentar mitigar o prejuízo que causam a grande paixão dos brasileiros.
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