29 junho 2025

Uma crônica de Ruy Castro

Nuvens de fumo
Os fumantes podem estar diminuindo no Brasil. Mas, com o vape, os que ainda fumam estão fumando muito mais
Ruy Castro/Folha de S. Paulo 

Há pouco, dando umas voltas por Portugal e Itália, uma cena me chamou a atenção: a naturalidade com que as pessoas, dentro ou fora de lugares públicos, acendiam seus cigarros. Lembrei-me de quando eu e a minha geração fazíamos isso no Brasil.

Éramos vizinhos de mesa na Redação da Manchete no começo dos anos 1970: Carlos Heitor Cony, o veterano e enciclopédico R. Magalhães Junior e, ainda garoto, eu. Magalhães passava o expediente numa nuvem de fumaça provocada por meus cigarros e pelos cigarros e o cachimbo de Cony. Mas, como deixara de fumar havia pouco, parecia não se incomodar com a fumigação a que era submetido —emitia, no máximo, ocasionais grunhidos. Não fazíamos por maldade —a Redação quase inteira fumava.

Todo fumante está convencido de que fuma por prazer e que deixará de fumar quando quiser. É um clichê comum a todas as dependências: a de que se usa esta ou aquela substância —fumo, álcool, drogas, inalantes, comprimidos— por vontade própria. No começo e por algum tempo, sim, e cada um a usará dentro de suas capacidades orgânicas —ninguém beberá ou se drogará demais se não for organicamente apto para absorver a substância. Como todo dependente, eu era ignorante disso.

Um dia, há 20 anos, ao aprender como funcionam as dependências, consegui deixar o cigarro. Superei a síndrome de abstinência, nunca recaí e me convenci de que nenhum ato é mais criminosamente socializado que o de fumar. Mas nisso, o Brasil, tão alérgico a boas práticas, tem sido um surpreendente exemplo para o mundo: é dos países com a maior redução de fumantes nas últimas décadas.

Essa façanha está agora em perigo diante dos cigarros eletrônicos, vendidos pela indústria como "inofensivos" e para quem quer "reduzir o fumo". A indústria é cínica e sabe que é o contrário. Um cigarro dura cerca de 15 tragadas; um maço, 300 tragadas. Um único refil de vape, 1.500, e com maior teor de nicotina. Ou seja, os fumantes podem estar diminuindo, mas os que ainda fumam estão fumando muito mais.

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