Os intelectuais e a ditadura no Brasil
Como o regime se relacionava com a intelectualidade
– e a utilizava no governo? De que forma aconteceu a “limpeza ideológica” nas
universidades? De tecnocráticos anticomunistas aos que sonhavam ser a nova
elite do Brasil, como agiam as duas principais alas alinhadas aos militares?
Michel Goulart da Silva/Outras Palavras
Em texto publicado na década de 1970, discutindo a questão dos
intelectuais na ditadura, Florestan Fernandes procurava chamar a atenção para a
situação concreta em que esses setores viviam naquele contexto. O sociólogo via
uma postura equivocada por parte da maioria desses setores. Para Florestan
Fernandes, “o intelectual, ainda que universitário e profissional liberal, não
surge como uma variante do homem comum. É sua réplica, frequentemente piorada,
porque se representa como parte e imune à contaminação do atraso geral”.1
Durante a ditadura iniciada com o golpe de 1964, como em outros momentos
da história do Brasil, é possível perceber a atividade de intelectuais que não
apenas defendem regimes repressivos ou ataques a liberdades democráticas, como
utilizam suas pesquisas e produções teóricas para construir justificativas às
ações desses regimes. São exemplos disso intelectuais que colaboram com órgãos
como ESG ou que assumiram
cargos como interventores em universidades ou mesmo aqueles que ocuparam
funções em governos da ditadura, como Flávio Suplicy de Lacerda, Raymundo Moniz
de Aragão, Mário Henrique Simonsen, entre outros. Na UFSC, esse debate foi
recentemente reacendido por conta da proposta de mudança de nome do campus, que
homenageia David José Ferreira, reitor que n&a tilde;o apenas apoiou a
ditadura como auxiliou o regime na perseguição contra colegas de universidade.
Florestan Fernandes afirmava que a ditadura encontrou “um apoio cada vez mais
amplo, ao invés de oposição, por parte dos intelectuais”.2
Os golpistas de 1964 encontraram uma estrutura técnica consolidada por
governos anteriores, ampliando as funções estatais de organização e controle
social, na qual os intelectuais poderiam explorar uma esfera administrativa
baseada na ideia de eficiência técnica. Esses segmentos enfatizavam o
gerenciamento científico, a administração pública normativa e a formalização e
rotinização de tarefas. O processo de desenvolvimento dessa burocracia se
consolidou no governo de Juscelino Kubitschek. Nesse período,
“[…] a rede tecno-burocrática de influência dentro do aparelho estatal era
formada pelas camadas mais altas da administração pública e pelos técnicos
pertencentes a agências e empresas estatais, os quais tinham ligações
operacionais e interesses dentro do bloco de poder multinacional e associado.
Esses executivos estatais asseguravam os canais de formulação de diretrizes
políticas e de tomadas de decisão necessários aos interesses multinacionais e
associados, organizando a opinião pública. Eles aplicaram a racionalidade
capitalista da empresa privada às soluções dos problemas socioeconômicos
nacionais, proporcionando a contrapartida pública do macro-marketing empresarial
sob a forma de um planejamento limitado e recomendações técnicas”.3
Observa-se nesse processo a integração de uma parcela de intelectuais ao
Estado, sob a retórica de que sua atuação se daria a partir do conhecimento
científico, de forma neutra e com vistas a uma melhoria das condições da
sociedade. Essa estrutura foi fundamental para a ditadura, na medida em que
imbricava o desenvolvimento econômico, a estruturação da gestão estatal e a
formulação ideológica. Segundo Octávio Ianni,
“[…] economistas, administradores, engenheiros, estatísticos, educadores,
sociólogos, jornalistas e outros, muitos foram os especialistas civis e
militares convocados para operar e ‘modernizar’ a organização e o funcionamento
do aparelho estatal. Tratava-se de substituir o ‘político’ pelo ‘técnico’, a
‘demagogia’ pela ‘ciência’, o ‘carisma’ pela “eficácia”. Ao mesmo tempo que
constituía o seu intelectual orgânico, ela [a ditadura] desenvolvia também as
bases da ideologia desse intelectual”.4
O desenvolvimento dessa ideologia estava marcado pelo conservadorismo e pelo
anticomunismo. O anticomunismo, que impregnou setores da sociedade durante a
ditadura, se baseava na mistura de símbolos religiosos que se remetiam a
demônios e pecados com uma retórica nacionalista e de defesa da propriedade. O
conservadorismo difundido pelos ditadores pretendia transformar o Brasil em uma
“potência média” integrada ao bloco econômico e político liderado pelos Estados
Unidos, desenvolvendo o capitalismo de forma integrada ao imperialismo e, ao
mesmo tempo, defendendo a “moral” e os “bons costumes” cristãos. Sabe-se que
“[…] o propósito modernizador se concentrava na perspectiva econômica e
administrativa, com vistas ao crescimento, à aceleração da industrialização e à
melhoria da máquina estatal. Já o projeto autoritário-conservador se pautava em
manter os segmentos subalternos excluídos, especialmente como atores políticos,
bem como em combater as ideias e os agentes da esquerda – por vezes, qualquer
tipo de vanguarda – nos campos da política e da cultura, defendendo valores
tradicionais como pátria, família e religião, incluindo a moral cristã”.5
Essa faceta de modernização econômica não parecia se mostrar contraditória com
as ideias desenvolvidas por setores que defendiam os valores “tradicionais”.
Observa-se que
“[…] esses setores, geralmente representados por religiosos, intelectuais
conservadores e militares, não se contentavam tão somente com o expurgo da
esquerda revolucionária e da corrupção. Eles desejavam aproveitar o momento
para impor uma agenda conservadora mais ampla, que contemplasse a luta contra
comportamentos morais desviantes, a imposição de censura e a adoção de medidas
para fortalecer os valores caros à tradição, sobretudo pátria e religião”.6
Essa complexa articulação de ideias exigiu da intelectualidade que
apoiava o regime a tentativa de construção de justificativas e explicações.
Diante do golpe e da ameaça ditatorial, esses intelectuais se mostravam
identificados com o pânico e o medo propagado pelos setores que realizaram ou
apoiaram a ação dos militares em 1964. O sociólogo aponta para “conexões
estruturais e dinâmicas existentes”, as quais mostram que
“[…] as posições e papéis intelectuais acham-se ramificadas através
do status privilegiados das classes alta e média. Em
consequência, os intelectuais ficam permanentemente expostos a interesses, a
ideologias e a valores que, por sua própria natureza, são intrinsecamente
conservadores, no sentido de que fazem parte do horizonte cultural conservantista
dos setores dominantes das classes alta e média”.7
Essa convergência entre intelectuais e ideias conservadoras não se
manifestou apenas em espaços dos próprios militares, como a Escola Superior de
Guerra (ESG), mas também nas universidades, onde, além da perseguição a uma
parcela de intelectuais, muitos de seus trabalhadores auxiliaram na manutenção
da ditadura, seja por meio do silêncio, seja pela colaboração direta com o
regime. Nessa relação dos intelectuais com a ditadura percebe-se uma conivência
moldada por diferentes fatores. Os intelectuais “careciam de meios de absorção
de suas frustrações”, sendo “sobrecarregados com expectativas de controle e de
ação conflitantes, impostas pela ditadura militar ou pelos grupos radicais e
por si próprios”.8 Para os
intelectuais, essa situação criava “uma tempestade de fricções, desilusões e
desorientação moral”.9
Um dos acontecimentos mais destacados da ditadura em relação aos
intelectuais passa por uma lista de demissões decretadas pelo governo
ditatorial, por força do AI-5, em abril de 1969. Essa lista incluía
intelectuais como Bolivar Lamonier, Caio Prado, Emília Viotti, Fernando
Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Jean Claude Bernadet, Maria Yedda
Linhares, Octávio Ianni e dezenas de outros nomes, associados a posições
políticas e ideológicas variadas, entre liberais, comunistas e socialistas.
Essa “limpeza ideológica” realizada pela ditadura “levou ao bloqueio da livre
circulação de ideias e de textos, e à instalação de mecanismos para vigiar a
comunidade universitária”.10
Muitos dos intelectuais perseguidos pelo regime se exilaram, encontrando novas
colocações profissionais em importantes universidades em outros países, e, em
muitos casos, se engajando em lutas organizadas em âmbito internacional contra
a ditadura no Brasil. Contudo, outra parcela da intelectualidade optou ou pelo
silêncio ou pela colaboração com o regime repressivo, sendo possível apontar
que, “dentro dos muros universitários, alguns docentes conservadores apoiaram a
pauta repressiva na íntegra a fim de se livrar de adversários e concorrentes
internos”.11 O
governo ditatorial
“[…] lançou mão de estratégias de cooptação, e vários agentes demonstraram
flexibilidade em relação a normas e valores dominantes, com tendência a
tangenciar os preceitos legais e confiar mais na autoridade pessoal, nos laços
sociais e em arranjos informais. Essas práticas permitiram ao Estado contar com
o talento de profissionais provenientes de campo ideológico adversário, mas
também propiciaram o amortecimento da repressão, com base na mobilização de
fidelidades pessoais e compromissos informais”.12
Essa situação política impactou no trabalho realizado pelos intelectuais, na
medida em que instituições onde atuavam “foram usadas em proveito dos
interesses escusos predominantes, para apoiar tanto os golpes de Estado militares,
quanto a militarização do poder político”.13 Para
muitos intelectuais, a produção acadêmica foi “considerada como um meio
honorífico de se obter bons salários e prestígio, em contraposição à pesquisa
empenhada no avanço do conhecimento original”.14 Esses
intelectuais que mantiveram espaç ;os institucionais aprofundaram sua atuação
como técnicos de Estado. Com isso,
“[…] o fluxo da cooperação intelectual, leal e entusiasta ou fria e calculada,
ultrapassou todas as expectativas (e mesmo as probabilidades existentes de
absorção útil). Alguns atritos surgiram, destruindo a ilusão de que a
restauração da ordem envolveria rápido restabelecimento do controle civil do
poder político, e provocando o retraimento dos intelectuais que fizeram o papel
de inocentes úteis ou de aliados perigosos. Mas, a massa dos intelectuais
conservadores (liberais e neutros) mostrou uma grande tolerância, proclamando
sua fé na ordem revolucionária”.15
Os eventuais atritos entre essa intelectualidade e a ditadura podem ter
relação, entre outros fatores, com a postura dos militares de atuarem, eles
próprios, como intelectuais, por meio da atuação junto a suas próprias escolas
de formação. Civis fizeram parte dessa rede de formação, por meio, entre outras
formas, da Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG),
mostrando uma postura de aproximação de gestores públicos e intelectuais com os
militares.
Embora houvesse esses atritos, na ditadura se abria oportunidades para
os intelectuais ditos de “mentalidade aberta” e “tolerantes”.16 Embora
perdessem “o sentido de dignidade, inerente à posição do intelectual na
sociedade”, ganhavam “poder vivo”, enquanto “lacaios do poder político-militar
institucionalizado”.17
Entre esses intelectuais é possível identificar dois setores, um dos
quais eram os que se diziam “revolucionários”, ou seja, aqueles “identificados
com os golpes de Estado e com a militarização do poder político”.18 O outro
grupo eram os técnicos e cientistas “envolvidos na tecnocratização do poder
político-militar”, que se viam como uma “elite cultural” que estaria “emergindo
com e através do regime autoritário militar”.19 Este
segundo grupo procurava construir “mais do que as estruturas políticas da
ditadura militar”, mas sim “o tipo de economia, de sociedade e de Estado”
dentro dos quais pudessem se constituir, “sob o capitalismo industrial
dependente, uma poderosa elite cultural”.20
A relação com o regime ditatorial por parte desses dois grupos de
intelectuais aponta para a postura de “adesão” e de “acomodação”. Esses termos
mostram um quadro em que “muitos agentes não resistiram nem aderiram, mas
buscaram formas de acomodação e convivência com o sistema autoritário”.21 Esses
intelectuais estavam permanentemente expostos a interesses, a ideologias e a
valores que, por sua própria natureza, eram intrinsecamente conservadores,
compartilhando do horizonte cultural das classes dominantes. Naquele contexto,
“[…] o desejo modernizador implicava desenvolvimento econômico e
tecnológico, além de expansão industrial e mecanização agrícola, o que levava
ao crescimento da urbanização e do operariado fabril, gerando potenciais
tensões e instabilidade nas relações sociais e de trabalho. Já o impulso
conservador estava ligado à vontade de preservar a ordem social e os valores
tradicionais, e por isso combater as utopias revolucionárias e todas as formas
de subversão e “desvio”, incluindo questionamentos à moral e aos comportamentos
convencionais”.22
O engajamento desses intelectuais tinha como limites a preservação
do status quo, com vistas à manutenção da estabilidade política e
social. O processo de integração dessa intelectualidade se explica, por um
lado, pelas condições materiais, na medida em que se observa a integração de
quadros técnicos à burocracia estatal, e, por outro, por fatores políticos e
ideológicos. Esses elementos fizeram com que uma parcela da intelectualidade
constituísse afinidades com o regime ditatorial.
Essa intelectualidade cumpriu papel central na sustentação política e
ideológica do regime e na defesa dos interesses econômicos defendidos pelos
ditadores. No presente, como parte dos embates pela memória e pela história, o
legado deixado por esses intelectuais conservadores é utilizado para justificar
tanto a modernização baseada no aprofundamento da exploração dos trabalhadores
como as ações políticas e econômicas que levaram à opressão e a à perseguição
dos trabalhadores no período.
Notas:
1 FERNANDES,
Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Expressão
Popular, 2020, p. 51.
2 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 172.
3 DREIFUSS, René
Armand. 1964: a conquista do estado. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 73.
4 IANNI, Octávio. A
ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019, p. 63.
5 MOTTA, Rodrigo Patto
Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 15.
6 MOTTA, Rodrigo Patto
Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 16.
7 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 174.
8 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 189.
9 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 189.
10 MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 8.
11 MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 394.
12 MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 17.
13 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 177.
14 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 177.
15 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 179.
16 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 180.
17 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 180.
18 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 180.
19 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 180.
20 FERNANDES,
Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São
Paulo: Globo, 2010, p. 181.
21 MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 301.
22 MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 289.
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Veja: Estratégias e narrativas de comunicação na luta de ideias https://www.youtube.com/watch?v=-D1bQLShVk0
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