13 junho 2025

O olhar de Sebastião Salgado

A geopolítica nas lentes de Sebastião Salgado

Ao analisar de forma crítica a obra de Sebastião Salgado — em especial os livros TerraÊxodos e Gênesis — como expressão visual da geopolítica contemporânea, é possível abordar temas como a estrutura fundiária brasileira, os fluxos migratórios globais e as disputas por soberania ambiental

Maurício Alfredo/Le Monde Diplomatique 



ausência de Sebastião Salgado deixará um profundo vazio no panorama da fotografia documental, especialmente por sua capacidade ímpar de humanizar questões geopolíticas complexas e dar voz aos invisíveis através de imagens poderosas e atemporais. 

Seu olhar fotográfico carrega mais que técnica e estética: revela um território humano marcado por desigualdades, deslocamentos, resistências e esperanças. Suas imagens, que cruzam desertos, florestas, minas, campos de refugiados e cidades dilaceradas por guerras, constituem ao mesmo tempo documento e denúncia. Obras como TerraÊxodos e Gênesis não são apenas coleções de imagens; elas refletem e desvendam a geopolítica contemporânea em toda a sua crueza e complexidade. São um testemunho visceral da condição humana, revelando as cicatrizes profundas deixadas pela globalização, pelos conflitos implacáveis e pelas drásticas transformações planetárias.  

Terra como espelho da geopolítica da estrutura fundiária brasileira 

O livro Terra (1997), de Sebastião Salgado, é um marco em sua trajetória, ao se dedicar ao drama dos trabalhadores rurais sem-terra no Brasil. Suas fotografias revelam um território em disputa, onde a terra se configura como palco de uma intensa luta política entre forças antagônicas. De um lado, o latifúndio historicamente consolidado pela herança direta do sistema colonial de capitanias hereditárias e sesmarias que favoreceu a formação de grandes propriedades, muitas vezes improdutivas. De outro, os sujeitos coletivos que lutam pela reforma agrária e pela justiça social. 

Seguindo a perspectiva de Milton Santos (2000), o território não é apenas um espaço físico, mas o espaço apropriado por relações de poder. As imagens de Salgado escancaram essa estrutura fundiária excludente e altamente concentrada, que molda a geopolítica interna do Brasil a partir do acesso à terra e de sua função social. Em termos geopolíticos, a terra no Brasil é, sobretudo, um recurso estratégico: quem a detém, concentra poder político, econômico e simbólico. 

Na obra, a presença do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é central. O movimento não apenas aparece como protagonista da luta por terra, mas também como um ator geopolítico. Suas ações diretas retratadas nas ocupações, marchas, construção de escolas e cooperativas, reconfiguram o território ao inscrever nele uma lógica de soberania popular, em contraposição à racionalidade mercantil do agronegócio globalizado. 

A fotografia de Salgado em Terra denuncia com contundência as consequências sociais da penetração do capital no campo brasileiro. Suas imagens de miséria, exaustão e deslocamento não são meros registros estéticos, mas testemunhas visuais da lógica predatória do agronegócio e da monocultura, que, como analisa Oliveira (2007), aprofundam os conflitos agrários e intensificam a exclusão social. Articulando-se à crítica teórica de Oliveira, o trabalho do fotógrafo revela a face brutal de um modelo agroexportador que subordina a terra à lógica das commodities, em detrimento da soberania alimentar, da função social da propriedade e da dignidade dos trabalhadores do campo. O livro constitui uma denúncia visual potente e sensível da geopolítica fundiária brasileira, marcada pela concentração de terras, pela violência estrutural e pela resistência dos sujeitos historicamente marginalizados. 

Êxodos: geopolítica das exclusões e dos fluxos migratórios  

Com Êxodos (2000), Sebastião Salgado volta seu olhar para o fenômeno global dos deslocamentos em massa, fenômeno que a ONU classifica como sendo a maior crise humanitária desde 1945. Nesse trabalho, Salgado percorre territórios devastados por guerras, fome, perseguição e pobreza, oferecendo uma narrativa visual das consequências de um sistema-mundo excludente. Seus retratos de migrantes africanos e refugiados evidenciam uma clara contradição: enquanto um mundo de elevado poder tecnológico, principalmente de setores como informática e telecomunicações, responsáveis pelo processo de globalização, facilita a acelerada movimentação de capitais, investimentos e mercadorias entre os países, a livre circulação de pessoas permanece severamente restrita. Essa disparidade sublinha a lógica do capital global, que consistentemente prioriza o fluxo econômico em detrimento da mobilidade humana. 

Essa abordagem aproxima-se da proposta de Yves Lacoste (1988), para quem a geografia, e por extensão a geopolítica, é historicamente utilizada como instrumento de domínio. As imagens de Salgado não apenas documentam a realidade; elas a contestam, ao revelar o sofrimento invisível nas estatísticas e nas decisões políticas de âmbito internacional. 

Gênesis: uma análise geopolítica da preservação e da soberania planetária 

Se Êxodos revela os efeitos colaterais da globalização nos corpos em movimento, Gênesis (2013), por sua vez, volta-se para os espaços ainda preservados, mas igualmente ameaçados por essa mesma ordem global. Neste ensaio, Salgado nos apresenta uma “homenagem ao planeta em seu estado natural”. A obra foi concebida em territórios estratégicos do ponto de vista ecológico e geopolítico: a Amazônia, o Ártico, o Saara, as florestas tropicais do Congo e o arquipélago de Galápagos. Mais que simples reservas ambientais, essas zonas são ativos geopolíticos cruciais, onde se sobrepõem interesses conservacionistas, extrativistas, militares e indígenas, tornando-as focos de disputa e poder. 

Ao retratar comunidades indígenas, Salgado os eleva de meras curiosidades etnográficas a atores geopolíticos fundamentais na defesa desses territórios e de seus modos de vida. Com seu conhecimento milenar e práticas sustentáveis, esses povos são os verdadeiros guardiões da biodiversidade, e a preservação de sua cultura e de seu território constitui um ato de resistência contra o avanço do agronegócio, da mineração e da exploração madeireira — vetores de desmatamento e perda de biodiversidade. 

Nesse contexto, a obra do fotógrafo transcende a mera fotografia documental para se tornar um chamado visual contundente à reflexão sobre a gestão global dos recursos naturais, a soberania territorial e o futuro do planeta, todos ameaçados pela globalização capitalista. 

Diante do exposto, a arte de Sebastião Salgado não é apenas um testemunho sensível da condição humana, é uma denúncia visual das engrenagens que sustentam a desigualdade planetária. Suas imagens não confortam; inquietam, não embelezam a tragédia; revelam sua origem estrutural. Essa revelação é o ponto de partida para qualquer transformação da realidade. 

Salgado não nos entrega certezas nem soluções fáceis. Ele nos devolve o espelho de um mundo fraturado onde a barbárie convive com a resistência. Cabe a nós decidir: vamos seguir contemplando as ruínas com olhos vazios, ou enxergar nelas os contornos de um outro futuro possível? 

Maurício Alfredo é mestre em Educação, professor de Geografia, Geopolítica e Atualidades no Ensino Médio e Superior. Autor de material didático junto à Editora Companhia da Escola. 

Referências 

LACOSTE, Yves. A geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988. 

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. O modo capitalista de produção e a agricultura. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Expressão Popular, 2007. 

SALGADO, Sebastião. Terra: luta pela terra e a reforma agrária. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 

SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 

SALGADO, Sebastião. Gênesis. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. 

[Ilustração: Sebastião Salgado]

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Sebastião Salgado, o homem que “desenha com a luz” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/02/sebastiao-salgado-80-anos.html

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