A geopolítica nas lentes de Sebastião Salgado
Ao analisar de
forma crítica a obra de Sebastião Salgado — em especial os livros Terra, Êxodos e Gênesis — como expressão visual da
geopolítica contemporânea, é possível abordar temas como a estrutura
fundiária brasileira, os fluxos migratórios globais e as disputas por soberania
ambiental
Maurício Alfredo/Le Monde Diplomatique
A ausência de Sebastião
Salgado deixará um profundo vazio no panorama da fotografia
documental, especialmente por sua capacidade ímpar de humanizar questões
geopolíticas complexas e dar voz aos invisíveis através de imagens poderosas e
atemporais.
Seu olhar
fotográfico carrega mais que técnica e estética: revela um território humano
marcado por desigualdades, deslocamentos, resistências e esperanças. Suas
imagens, que cruzam desertos, florestas, minas, campos de refugiados e cidades
dilaceradas por guerras, constituem ao mesmo tempo documento e denúncia. Obras
como Terra, Êxodos e Gênesis não
são apenas coleções de imagens; elas refletem e desvendam a geopolítica
contemporânea em toda a sua crueza e complexidade. São um testemunho visceral
da condição humana, revelando as cicatrizes profundas deixadas pela
globalização, pelos conflitos implacáveis e pelas drásticas transformações
planetárias.
Terra como espelho da
geopolítica da estrutura fundiária brasileira
O
livro Terra (1997), de Sebastião Salgado, é um marco em sua
trajetória, ao se dedicar ao drama dos trabalhadores rurais sem-terra no
Brasil. Suas fotografias revelam um território em disputa, onde a terra se
configura como palco de uma intensa luta política entre forças antagônicas. De
um lado, o latifúndio historicamente consolidado pela herança direta do sistema
colonial de capitanias hereditárias e sesmarias que favoreceu a formação de
grandes propriedades, muitas vezes improdutivas. De outro, os sujeitos
coletivos que lutam pela reforma agrária e pela justiça social.
Seguindo a
perspectiva de Milton Santos (2000), o território não é apenas um espaço
físico, mas o espaço apropriado por relações de poder. As imagens de Salgado
escancaram essa estrutura fundiária excludente e altamente concentrada, que
molda a geopolítica interna do Brasil a partir do acesso à terra e de sua
função social. Em termos geopolíticos, a terra no Brasil é, sobretudo, um
recurso estratégico: quem a detém, concentra poder político, econômico e
simbólico.
Na obra, a
presença do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é central. O movimento não
apenas aparece como protagonista da luta por terra, mas também como um ator
geopolítico. Suas ações diretas retratadas nas ocupações, marchas, construção
de escolas e cooperativas, reconfiguram o território ao inscrever nele uma
lógica de soberania popular, em contraposição à racionalidade mercantil do
agronegócio globalizado.
A
fotografia de Salgado em Terra denuncia com contundência as
consequências sociais da penetração do capital no campo brasileiro. Suas
imagens de miséria, exaustão e deslocamento não são meros registros estéticos,
mas testemunhas visuais da lógica predatória do agronegócio e da monocultura,
que, como analisa Oliveira (2007), aprofundam os conflitos agrários e
intensificam a exclusão social. Articulando-se à crítica teórica de Oliveira, o
trabalho do fotógrafo revela a face brutal de um modelo agroexportador que
subordina a terra à lógica das commodities, em detrimento da soberania
alimentar, da função social da propriedade e da dignidade dos trabalhadores do
campo. O livro constitui uma denúncia visual potente e sensível da
geopolítica fundiária brasileira, marcada pela concentração de terras, pela
violência estrutural e pela resistência dos sujeitos historicamente
marginalizados.
Êxodos: geopolítica das
exclusões e dos fluxos migratórios
Com Êxodos (2000),
Sebastião Salgado volta seu olhar para o fenômeno global dos deslocamentos em
massa, fenômeno que a ONU classifica como sendo a maior
crise humanitária desde 1945. Nesse trabalho, Salgado percorre
territórios devastados por guerras, fome, perseguição e pobreza, oferecendo uma
narrativa visual das consequências de um sistema-mundo excludente. Seus
retratos de migrantes africanos e refugiados evidenciam uma clara contradição:
enquanto um mundo de elevado poder tecnológico, principalmente de setores como
informática e telecomunicações, responsáveis pelo processo de globalização,
facilita a acelerada movimentação de capitais, investimentos e mercadorias
entre os países, a livre circulação de pessoas permanece severamente
restrita. Essa disparidade sublinha a lógica do capital global, que
consistentemente prioriza o fluxo econômico em detrimento da mobilidade
humana.
Essa
abordagem aproxima-se da proposta de Yves Lacoste (1988), para quem a
geografia, e por extensão a geopolítica, é historicamente utilizada como
instrumento de domínio. As imagens de Salgado não apenas documentam a
realidade; elas a contestam, ao revelar o sofrimento invisível nas estatísticas
e nas decisões políticas de âmbito internacional.
Gênesis: uma análise
geopolítica da preservação e da soberania planetária
Se Êxodos revela
os efeitos colaterais da globalização nos corpos em movimento, Gênesis (2013),
por sua vez, volta-se para os espaços ainda preservados, mas igualmente
ameaçados por essa mesma ordem global. Neste ensaio, Salgado nos apresenta uma
“homenagem ao planeta em seu estado natural”. A obra foi concebida em
territórios estratégicos do ponto de vista ecológico e geopolítico: a Amazônia,
o Ártico, o Saara, as florestas tropicais do Congo e o arquipélago de
Galápagos. Mais que simples reservas ambientais, essas zonas são ativos
geopolíticos cruciais, onde se sobrepõem interesses conservacionistas, extrativistas,
militares e indígenas, tornando-as focos de disputa e poder.
Ao
retratar comunidades indígenas, Salgado os eleva de meras curiosidades
etnográficas a atores geopolíticos fundamentais na defesa desses territórios e
de seus modos de vida. Com seu conhecimento milenar e práticas sustentáveis,
esses povos são os verdadeiros guardiões da biodiversidade, e a preservação de
sua cultura e de seu território constitui um ato de resistência contra o avanço
do agronegócio, da mineração e da exploração madeireira — vetores de
desmatamento e perda de biodiversidade.
Nesse
contexto, a obra do fotógrafo transcende
a mera fotografia documental para se tornar um chamado visual
contundente à reflexão sobre a gestão global dos recursos naturais, a soberania
territorial e o futuro do planeta, todos ameaçados pela globalização
capitalista.
Diante do
exposto, a arte de Sebastião Salgado não é apenas um testemunho sensível da
condição humana, é uma denúncia visual das engrenagens que sustentam a
desigualdade planetária. Suas imagens não confortam; inquietam, não embelezam a
tragédia; revelam sua origem estrutural. Essa revelação é o ponto de partida
para qualquer transformação da realidade.
Salgado
não nos entrega certezas nem soluções fáceis. Ele nos devolve o espelho de um
mundo fraturado onde a barbárie convive com a resistência. Cabe a nós decidir:
vamos seguir contemplando as ruínas com olhos vazios, ou enxergar nelas os
contornos de um outro futuro possível?
Maurício
Alfredo é
mestre em Educação, professor de Geografia, Geopolítica e Atualidades no Ensino
Médio e Superior. Autor de material didático junto à Editora Companhia da
Escola.
Referências
LACOSTE, Yves. A
geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Campinas: Papirus,
1988.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino
de. O modo capitalista de produção e a agricultura. 2. ed.
rev. e ampl. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
SALGADO,
Sebastião. Terra:
luta pela terra e a reforma agrária. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
SALGADO,
Sebastião. Êxodos.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SALGADO,
Sebastião. Gênesis.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
SANTOS, Milton. Por
uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
[Ilustração:
Sebastião Salgado]
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Sebastião Salgado, o homem que “desenha com a luz” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/02/sebastiao-salgado-80-anos.html
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