03 dezembro 2025

Ameaças articuladas

O ataque à soberania chega à segurança pública
Dois grandes debates da sociedade brasileira parecem ter se cruzado no polêmico PL Antifacção: o combate ao crime organizado e os ataques à soberania nacional brasileira
Victoria Moura Vormittag/Le Monde Diplomatique  

O PL 5582/2025, de relatoria do deputado Guilherme Derrite (PP-SP), propõe o Marco Legal do Combate ao Crime Organizado. O texto original aborda temas como o papel da Polícia Federal no combate às facções e a elevação de penas para delitos contra o Estado e a segurança coletiva. Inicialmente, o texto propunha a “equiparação funcional típica” das atividades de organizações criminosas às atividades de organizações terroristas, por meio da inclusão das modalidades criminosas na Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo). 

Depois de muitas críticas, o relator recuou na versão mais recente de seu parecer, excluindo a equiparação das organizações criminosas a grupos terroristas. Mas a questão está longe de chegar a um fim: o líder do Partido Liberal, Sóstenes Cavalcante, afirma que não abrirá “mão de enquadrar organizações como terroristas”.[1] A frustração da população brasileira quanto à segurança pública também favorece a popularidade de discursos que se apoiam em narrativas de terrorismo urbano. Ou seja, o debate fundamental sobre a equiparação persistirá.

Assim, é crucial esclarecer os efeitos dessa equiparação, que vão muito além do direito interno.

Na prática, abre-se margem para graves interferências indevidas de Estados estrangeiros, sobretudo no contexto da administração Donald Trump.

Vale fazer um panorama do tratamento global do combate ao terrorismo. Desde os ataques de 11 de setembro de 2001, a legislação antiterrorismo mundial se tornou mais rígida. Nos EUA, o Patriot Act não apenas restringiu as liberdades individuais de seus próprios cidadãos, mas também serviu de pretexto para a “Guerra ao Terror” e para as subsequentes invasões do Afeganistão e do Iraque.

Mas a cruzada antiterrorista não parou por aí. Agora, ela chegou ao Mar do Caribe.

É importante explicar que, enquanto questões de ordem pública são de competência doméstica e, portanto, de responsabilidade das polícias, as questões de segurança nacional estão na seara externa e pedem atuação militar. Nesse contexto, fica claro que a designação de organizações como “terroristas” faz parte de uma estratégia dos EUA de deslocar o arcabouço legal e político aplicável: o problema é retirado do âmbito da ordem pública (portanto, doméstica) e elevado à segurança nacional, o que legitima a ação militar na esfera internacional.

É exatamente essa a brecha que a administração Trump tenta explorar atualmente no Mar do Caribe, utilizando o combate ao narcoterrorismo como justificativa para atacar embarcações estrangeiras, chegando a afirmar que o país está em um conflito armado.[2]

Desde setembro, as forças armadas dos EUA já mataram dezenas de pessoas (cidadãos colombianos, equatorianos e venezuelanos) em ataques a embarcações na América do Sul.[3] O governo afirma que as vítimas eram membros de organizações narcoterroristas, como o colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN) e o venezuelano Tren de Aragua, ambos designados pelos EUA como organizações terroristas estrangeiras. Tais ações, realizadas sob o pretexto de ter como alvos narcoterroristas, negam qualquer direito de defesa a esses indivíduos, visto que qualquer prova de sua atuação é destruída no próprio ataque.[4] O governo chega a se referir aos tripulantes mortos como “combatentes ilegais”, o que, na prática, retira as proteções devidas a civis e a prisioneiros de guerra, sem que haja apresentação de provas de sua filiação criminosa ou terrorista.[5]

O governo Trump afirma que os ataques ocorreram em águas internacionais, o que é negado, por exemplo, pelo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, que acusa os EUA de terem invadido seu território.[6] Da mesma forma, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, indiciado por narcoterrorismo no primeiro mandato de Trump, afirma que tais ataques são parte da contínua tentativa dos EUA de forçar uma mudança de regime em seu país.[7]

O Secretário do Departamento de Guerra dos EUA, Pete Hegseth, não alivia a retórica, defendendo os ataques como ações em defesa da segurança nacional contra “cartéis terroristas”.[8] Em 1º de novembro, Hegseth declarou que os EUA tratarão “esses narcoterroristas” exatamente como a Al-Qaeda.[9] Em 7 de novembro, afirmou: “Se vocês continuarem a traficar drogas letais – iremos matá-los.”[10]

Outras consequências de se considerar organizações criminosas como grupos terroristas incluem ações de inteligência que violam a soberania nacional com base em mera suspeita de envolvimento com essas organizações, ou até mesmo a possibilidade de intervenções ou invasões estrangeiras sob alegações de que o governo local não tem capacidade ou disposição para combater o terrorismo. A nomenclatura “terrorista” ainda carrega um significativo soft power e facilita a associação dessas organizações a grupos como a Al-Qaeda e o autointitulado Estado Islâmico, atraindo maior aprovação da opinião pública. Essa equiparação, portanto, coloca o combate ao crime organizado dentro da esfera da Guerra ao Terror, o super trunfo dos EUA para justificar suas a&c cedil;ões unilaterais ao redor do mundo.

Podem parecer consequências conspiracionistas. Entretanto, não podemos esquecer que, há poucos meses, o deputado Eduardo Bolsonaro afirmou que “se o regime brasileiro for consolidado e tiver uma evolução igual à da Venezuela” pode ser necessária “a vinda de caças F-35 e de navios de guerra”.[11] No mesmo sentido, seu irmão, o Senador Flávio Bolsonaro, que preside atualmente a Comissão de Segurança Pública do Senado, disse sentir inveja do bombardeio dos EUA a uma embarcação no Pacífico, sugerindo que o mesmo ocorresse com barcos na Baía da Guanabara[12]< /sup>

Paralelamente, a porta-voz da Casa Branca mencionou que Trump não tem medo de usar força militar em defesa da liberdade em relação ao Brasil.[13] Completando o cenário atual, o USS Gerald R. Ford, maior porta-aviões do mundo, acaba de chegar à América Latina para atuar em operações de narcoterrorismo em nome dos EUA.[14]

Vale lembrar, também, que, no começo do ano, representantes do governo Trump defenderam a classificação do PCC e do Comando Vermelho como terroristas.[15] Não à toa, a diplomacia brasileira reconhece o risco de que os Estados Unidos utilizem o combate ao narcotráfico e a classificação de grupos como terroristas para justificar operações militares na região.[16]

Ainda, a designação de organizações criminosas como terroristas vai de encontro ao posicionamento já consolidado do Itamaraty sobre o tema.

Como princípio, o Brasil considera como terrorista apenas organizações assim designadas pelo Conselho de Segurança da ONU, quais sejam a Al-Qaeda, o autointitulado Estado Islâmico e organizações e indivíduos a eles conexos ou ao Talibã. Esse é um posicionamento de Estado, não de governo. Isso não impede que o governo brasileiro classifique as ações uma organização fora dessa lista como atos ou atentados terroristas. Para o Brasil, o combate ao terrorismo deve fazer parte de uma abordagem holística, que leva em consideração os vínculos existentes entre o terrorismo e seu financiamento, que podem incluir manifestações do crime organizado transnacional, particularmente por  meio do combate à lavagem de dinheiro.[17]

O debate em torno do PL Antifacção, portanto, revela uma perigosa interseção entre a demagogia eleitoral e a ingenuidade jurídica. Ao ignorar a distinção conceitual e abraçar a nomenclatura de “narcoterrorismo”, o projeto torna-se uma armadilha à soberania brasileira, entregando aos EUA o super trunfo que justifica suas ações unilaterais ao redor do mundo.

O combate ao crime organizado é urgente. Porém, a escolha da melhor estratégia para este fim não deve ser pautada por interesses eleitoreiros e não pode ocorrer às custas da soberania brasileira.

Victoria Moura Vormittag é bacharela em Direito pela USP, advogada e pesquisadora especializada em direito internacional público, comércio internacional e direitos humanos.

[1] SALOMÃO, Mateus. Marco Legal do Combate ao Crime Organizado recuou de incluir previsões para organizações criminosas na lei que trata do terrorismo. CNN Brasil, 11 nov. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pl-nao-vai-abrir-mao-de-enquadrar-organizacoes-como-terroristas-diz-lider/

[2] SAVAGE, Charlie; SCHMITT, Eric. Trump ‘Determined’ the U.S. Is Now in a War With Drug Cartels, Congress Is Told. New York Times, 2 out. 2025. Disponível em: https://www.nytimes.com/2025/10/02/us/politics/trump-drug-cartels-war.html.

[3] BARAJAS, Joshua. All the U.S. military strikes against alleged drug boats. PBS, 31 out. 2025. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/world/all-the-u-s-military-strikes-against-alleged-drug-boats.

[4] MONTOYA, Angeline. Colombia criticizes the US after it strikes boats under the pretext of fighting narcoterrorism. Le Monde, 21 out. 2025. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/international/article/2025/10/21/colombia-criticizes-the-us-after-it-strikes-boats-under-the-pretext-of-fighting-narcoterrorism_6746622_4.html.

[5] BARAJAS, Joshua. All the U.S. military strikes against alleged drug boats. PBS, 31 out. 2025. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/world/all-the-u-s-military-strikes-against-alleged-drug-boats.

[6] MEGERIAN, Chris; COTO, Dánica. Trump calls Colombia’s Petro an illegal drug dealer and cuts off U.S. aid to the country. PBS, 11 nov. 2025. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/world/trump-calls-colombias-petro-an-illegal-drug-dealer-and-cuts-off-u-s-aid-to-the-country.

[7] BARAJAS, Joshua. All the U.S. military strikes against alleged drug boats. PBS, 31 out. 2025. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/world/all-the-u-s-military-strikes-against-alleged-drug-boats.

[8] HEGSETH, Pete. Postagem no X. 4 abr. 2024. Disponível em: https://x.com/SecWar/status/1987863821868732447?s=20

[9] HEGSETH, Pete. Postagem no X. 2 abr. 2024. Disponível em: https://x.com/SecWar/status/1984816590940987802.

[10] HEGSETH, Pete. Postagem no X. 3 abr. 2024. Disponível em: https://x.com/SecWar/status/1986631797547921741

[11] CAPPELLI, Paulo. Eduardo Bolsonaro diz que EUA pode enviar caças ao Brasil no futuro. Metrópoles, 14 out. 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/eduardo-bolsonaro-diz-que-eua-pode-enviar-cacas-ao-brasil-no-futuro.

[12] FLÁVIO BOLSONARO DIZ TER “INVEJA” DE ATAQUE DOS EUA E CITA BARCOS NO RIO. CNN Brasil, 23 out. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/flavio-bolsonaro-diz-ter-inveja-de-ataque-dos-eua-e-cita-barcos-no-rio/

[13] MATOS, Maria Clara. Itamaraty condena uso da força após fala de porta-voz dos EUA. CNN Brasil, 9 set. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/itamaraty-condena-uso-da-forca-apos-fala-de-porta-voz-dos-eua/.

[14] SCHMITT, Eric. Aircraft Carrier Moves Into the Caribbean as U.S. Confronts Venezuela. New York Times, 11 nov. 2025. Disponível em: https://www.nytimes.com/2025/11/11/us/politics/aircraft-carrier-moves-into-the-caribbean-as-us-confronts-venezuela.html.

[15] MARTINS, Leticia. Entenda por que os EUA querem que PCC seja classificado como terrorista. CNN Brasil, 7 mai. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-por-que-os-eua-querem-que-pcc-seja-classificado-como-terrorista/.

[16] CORRÊA, Alessandra. Trump pode declarar PCC organização terrorista? Por que governo Lula se preocupa com isso. BBC News Brasil, 16 set. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvgvm01g7jgo

[17] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. III Conferência Ministerial Hemisférica de Luta contra o Terrorismo – Comunicado Conjunto. MRE, 20 jan. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2020/iii-conferencia-ministerial-hemisferica-de-luta-contra-o-terrorismo-comunicado-conjunto, parágrafos §3 e §18

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Leia também: Elias Jabbour: Estado fraco, crime forte e o preço do neoliberalismo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/elias-jabbour-neoliberalismo.html 

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