As manchetes
sonegadas e o fascismo
Tarso Genro,
Brasil 247
As delações premiadas são
confissões-informações prestadas por cidadãos que já reconhecem ter cometido
delitos e pretendem, através de uma colaboração formal com o Ministério Público
e o Poder Judiciário, obter reduções significativas de penas e até condições
especiais para o cumprimento das mesmas. Defendo que o instituto da “delação”
-usado com as devidas cautelas constitucionais- pode ser um bom instrumento
para nortear investigações e constituir provas para comprovar delitos de
difícil aferição.
O que está acontecendo no país, porém, não é isso. Trata-se de um
outro processo, de natureza jurídico-política, que caracteriza bem os momentos
de “exceção” que submetem, hoje, a democracia brasileira. Momentos que
pervertem o Estado de Direito, ferem o direito de defesa e promovem
linchamentos pela mídia tradicional, no melhor estilo da imprensa stalinista,
contra os “inimigos do povo soviético” e da imprensa nazi-fascista, que
adiantava as sentenças do Tribunais domesticados pelo sistema policial, autonomizado
dos demais poderes do Estado. O sistema policial, nestas hipóteses, era o
próprio Estado.
O instituto da “delação”, no Brasil, tornou-se apenas um sistema
de blindagem e impunidade dos delatores empresariais, para incriminar toda a
esfera da política, penalizando pela mídia de forma massiva -sem quaisquer
critérios de verificação, sem seletividade, sem hierarquia de
responsabilidades, sem separar crimes de irregularidades formais, sem separar
propinas de contribuições legais de campanha- penalizando, repito todos
os que estão no “mundo” da política. A sujeira das outras instituições do
Estado, do mundo privado, inclusive das mídias tradicionais passou, assim, a
ser depositada de forma exclusiva na “política” e nos partidos.
Isso era para ser feito exclusivamente contra o PT, mas o processo
“descontrolou-se”. Atingiu -em proporções gigantescamente maiores- a soma de
lideranças dos partidos de direita e de centro-direita no país, que começaram a
sofrer os mesmos métodos de incriminação em abstrato, que o PT e a esquerda
vinham sofrendo, “réus” sem processo perante a opinião pública, mas já
responsáveis pelos delitos apenas imputados. Delitos sem definição por sentença
ou mesmo sem relatórios próprios de qualquer Inquérito Policial numa
situação de normalidade jurídica. (“Outro lado”: evidentemente, dentre os
delatores estão pessoas que querem colaborar sinceramente com a Justiça e
safar-se, arrependidos, das penas previstas para os crimes que se envolveram,
cumprindo as tarefas dadas pelos seus patrões).
Observem como se dá o roteiro das incriminações: ele começa com
notinhas nas redes, em “blogs” dos jornais tradicionais ou nos seus associados,
ideologicamente, que transitam “informações” que logo são acolhidas por
colunas, aparentemente sem vínculos políticos (notoriamente
anti-esquerda, anti-petistas e anti-Lula), que preparam as condições para o
próximo passo: os vazamentos seletivos. Estes, são selecionados por pessoas da
burocracia do MP ou da Justiça -ou por ambos- e passam a orientar a confecção das
“Listas”. Estas vão “revelar” os delitos, como se eles já fossem apurados
-cometidos pelos “políticos bandidos”- que, já encomendado no clamor popular,
devem ser presos “imediatamente”, como é levado a dizer qualquer cidadão comum.
O processo de investigação inicial para apurar a notícia
“criminis”, como se diz no jargão penal, desta forma substituiu o processo
judicial e as “Listas” tornam-se, elas mesmas, as sentenças executadas por
execração pública, que debocham da Lei e da Constituição. Debocham porque nem
todos -de qualquer “Lista”- são políticos bandidos (sejam de esquerda ou
de direita) e porque os fatos que supostamente envolveram as pessoas
“listadas”, numa “Lista penal” única, não só são diferentes entre si, mas
sequer são produto de um inquérito regular ou processo judicial, que tenham
garantido qualquer resquício do direito de defesa.
Interessei-me, especialmente, pela chamada “Lista Fachin”, porque
o jornal “Zero Hora” havia noticiado que dois ex-governadores do Estado
estariam nela. Mesmo tendo confiança que o meu nome não estaria na “lista”
(porque sempre escolhi como Tesoureiros de campanha pessoas afinadas com a
posição de não recebimento de doações sem registro legal), tenho experiência
suficiente, porém, para saber que não é difícil ser alvo de montagens para
falsas incriminações, nesta verdadeira anomia moral e política que vive o país.
E porque, de outra parte, ninguém está livre de “receber” (falsamente) uma
“doação” ilegal, através de pessoas que eventualmente usem o nome do Partido ou
do Candidato, para obter recursos para proveito próprio.
Quando vi a tal “Lista” percebi que dos últimos cinco Governadores
do Estado apenas dois, eu e Olívio Dutra, do “maldito PT”, não estávamos na
“Lista” de investigados, o que não nos impede -feitas as devidas simulações e
montagens que estão sendo processadas com tais delações- de estarmos
eventualmente nas próximas. Surpreendi-me, mesmo assim, imaginando qual seria a
manchete do referido jornal ZH, que já havia noticiado a presença, na “Lista”,
de dois Governadores investigados e imaginei-a assim: EM VINTE ANOS SÓ OS
GOVERNADORES DO PT NÃO RECEBERAM PROPINA.
Rapidamente reagi, ao sentir que eu também estava sendo impregnado
pelo mesmo espírito fascista que empesta hoje -através da grande mídia- o ambiente
político do país. Eu estava inconscientemente desejando aos os meus
adversários, o mesmo tratamento que vinha sendo dado exclusivamente ao PT, e
que hoje se destina -de forma indistinta- a todos os partidos e lideranças
políticas. Sejam elas criminosas ou não, com ou sem provas, com “Listas” que
misturam doações irregulares de campanha -que devem ser apuradas na forma lei-
com roubos de dinheiro público e apropriação de recursos fraudulentos de
empresas, para fortuna própria.
Fui ler os despachos do Ministro Fachin, que são simples
encaminhamentos para verificar -em relação a todos os listados- da pertinência
de instauração de inquéritos para apuração de determinados fatos, sobre os
quais estarão em disputa a palavra dos delatores, que confessaram crimes e
pretendem reduzir suas penas, de um lado, e de outro, a palavra dos
“políticos”, apontados como beneficiados em processos eleitorais. É claro
que dentre os listados devem estar pessoas que cometeram delitos, mas
seguramente colocar numa só lista pessoas com graus de responsabilidade
diversa (ou sem nenhuma responsabilidade) é um crime que o Estado comete contra
a política e a democracia, característico de um período de “exceção”.
Como se verificará mais tarde -talvez em relação à maioria- o
Estado aqui é que comete um crime contra as reputações de delatados sem
culpa. Não posso falar de todos, aqui do Rio Grande, porque não acompanho de
maneira suficiente a sua militância, mas tenho absoluta convicção que -estes
posso dizer porque os conheço bem- Germano Rigotto, Estilac Xavier, Maria do
Rosário e Manuela D’Ávila, por exemplo, são pessoas que estão ou estiveram na
política por seus ideais, não em busca de dinheiro ou vantagens pessoais. Basta
ver o despacho de Fachin, para se chegar à conclusão sobre a leviandade das
delações em relação a eles, submetidos a uma execração pública odiosa e
construída de forma arbitrária.
Apenas um exemplo da grotesca situação a que estamos submetidos,
neste processo sem controle legal, que caracteriza os momentos de “exceção”,
que dissolvem os fundamentos da ética republicana num jogo barroco de
informações que só favorece os grandes criminosos: a investigação pedida sobre
Estilac Xavier é sobre recursos “não contabilizados” da sua campanha a Deputado
Estadual em 2O10! Repito, 2010! Nesta eleição, Estilac Xavier não
concorreu a Deputado Estadual! A investigação, portanto, deverá ser arquivada
liminarmente pelo STJ, se este tiver um mínimo de isenção e seriedade no trato
das questões que lhe são aferidas pela Constituição Federal. Mas o prejuízo já
está feito.
O vídeo de delação que foi “liberado” por Fachin, refere-se à
negativa de Estilac para receber recursos “não contabilizados”, a serem
utilizados para a minha campanha a Governador, em 2010, cumprindo fielmente nossa
orientação a respeito deste tema. A partir desta negativa de Estilac, o delator
alega que encaminhou uma doação ao PCdoB, por sugestão de Estilac, visivelmente
pasmado pela postura irredutível do Tesoureiro da campanha do PT, contra o
“caixa 2”. Se o PCdoB disser que não recebeu esta doação “não contabilizada”,
vale a palavra do delator que quer “ajudar” a Justiça para não cumprir uma pena
ou do PCdoB, com o Partido político? Não é possível concluir que estes recursos
ficaram no “meio do caminho”, com alguém que os detinha em depósito, e não
foram devolvidos para empresa?
Os pequenos, médios, micro-empresários, que apostam no
neoliberalismo e apostam no nosso João Berlusconi Dória para o futuro, estão
cavando seu próprio túmulo. A sociedade que está sendo construída pelas grandes
corporações empresariais globais, industriais, financeiras e de serviços, é uma
sociedade onde o Estado não será um Estado de combate à corrupção nem será
reduzido. Ele simplesmente será absorvido e aparelhado por estas grande
corporações, que sempre serviram dele, Estado, para a sua acumulação infinita.
A premissa-chave, para que isto ocorra num regime de democracia formal, é a
extinção da política e dos partidos, em cujo limite está o fascismo, que é o
super Estado da violência irrestrita. Ou está o neoliberalismo absoluto, no
qual o Estado -dissolvido nas grandes corporações financeiros- é um gigantesco
aparato de acumulação sem trabalho vivo, mantido pelos gastos públicos da
guerra e da morte sem limites, espalhada pelo globo.
(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro
das Relações Institucionais do Brasil.
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