O
irmão húngaro
Por
que Bolsonaro admira tanto Viktor Orbán
João
Gabriel de Lima, revista piauí
A sala de conferências do Palácio Karmelita, antigo monastério onde fica o gabinete do primeiro-ministro da Hungria, estava quase pronta. Um funcionário do cerimonial colocava sobre as cadeiras plaquinhas de papel-cartão com os nomes dos convidados de honra. Cada um dos conferencistas – o premiê Viktor Orbán e seu convidado, o presidente Jair Bolsonaro – teria direito a uma comitiva de doze integrantes. Pelo lado de Bolsonaro, no entanto, entraram treze. Havia ministros de Estado, diplomatas e militares, todos de terno ou farda de gala. O décimo terceiro integrante estava de calça jeans, jaqueta vintage e barba por fazer. Quando constatou que não havia plaquinha com seu nome, um dos diplomatas apressou-se em ceder seu lugar. Com ar blasé, Carlos Bolsonaro, o filho Zero Dois, sentou-se.
Orbán e Bolsonaro entraram logo depois, trocando olhares e sorrisos. Vinham prestar contas da conversa que haviam tido momentos antes, em particular. O anfitrião falou primeiro. Disse que os dois chefes de Estado tinham várias visões em comum. “Temos uma abordagem idêntica quanto ao tema da migração”, apontou Orbán. “Junto com os brasileiros queremos impedir tratados internacionais a favor da imigração. Formamos a liga dos sóbrios, dos sensatos.” Orbán se referia ao fato de que o Brasil, na estreia do governo Bolsonaro, retirou-se do Pacto Global para a Migração da ONU, um fórum em que as nações compartilham experiências para humanizar as migrações. “Estamos também de acordo em relação ao ataque que a família vem sofrendo.” Em seguida, deu sua definição de família: “Um pai e uma mãe, em que o pai é homem e a mãe é mulher, como está na Constituição húngara.”
Em sua vez de falar, Bolsonaro aproveitou a deixa sobre família. “Uma família bem estruturada, ela faz com que a sua respectiva sociedade seja sadia”, disse. Também afirmou que Brasil e Hungria compartilhavam valores que poderiam ser resumidos em quatro palavras. Três delas remetem ao velho slogan dos integralistas, a versão abrasileirada do fascismo italiano: “Deus, pátria e família.” A quarta era “liberdade” – algo que, definitivamente, não define a Hungria de hoje. Repetiu a frase que virou piada nas redes sociais. Disse que estava voando para a Rússia quando, “por coincidência ou não, parte das tropas [russas] deixaram a fronteira [com a Ucrânia]”. Bolsonaro terminou sua fala dizendo que, pela afinidade de pensamento, via Orbán como “um irmão”.
O Palácio Karmelita fica em Buda, a metade da cidade situada à margem ocidental do Rio Danúbio. Depois da conferência, Bolsonaro pegou o carro oficial em direção a Pest, a metade que fica à margem oriental, rumo a um compromisso no Parlamento húngaro. Passou por uma ponte decorada na véspera com bandeirinhas da Hungria e do Brasil, que tremulavam com a ventania fortíssima. Havia uns dez dias que reluzia sobre a cidade um sol de primavera antecipada, lotando os charmosos cafés de Budapeste com mesas nas calçadas. Na quinta-feira, 17 de fevereiro, dia da chegada de Bolsonaro, o tempo virou. Frio e muita chuva. A comitiva partiu à noite, depois de ficar pouco mais de doze horas no país.
A participação de Carlos Bolsonaro na viagem – integrantes da comitiva tiveram que ceder lugar a ele também na escala anterior, em Moscou – foi tema nas redes sociais, com a hashtag #CarluxoMamateiro. O filho Zero Dois respondeu às críticas com mais um tuíte da série destinada a desafiar os exegetas do futuro: “Por que os oxiúros estão se debatendo tanto? Estariam mexendo em sua fonte de alimentação?”
No dia 3 de abril, o irmão húngaro de Bolsonaro enfrenta a eleição mais difícil desde que chegou ao poder em 2010, mas sua história oferece ensinamentos que interessam muito ao presidente brasileiro, a ponto de levá-lo a fazer a primeira visita da história de um chefe de Estado brasileiro à Hungria. Contra Orbán, está uma frente democrática que, reunindo seis partidos de múltiplas correntes ideológicas, lançou Péter Márki-Zay, de centro-direita. Nas pesquisas, a oposição vem fustigando Orbán, que está na liderança, mas com uma margem estreitíssima.
Dias antes da chegada de Bolsonaro, caminhei pela Ponte da Liberdade para cruzar o Danúbio na direção oposta da que ele seguiria, de Pest para Buda. O objetivo era conversar com o escritor e jornalista inglês Nick Thorpe, correspondente da BBC na Hungria há mais de trinta anos e profundo conhecedor do atual líder do país. “Orbán é um especialista em criar inimigos. Em eleições anteriores, foram os imigrantes, os refugiados ou o multimilionário George Soros. Agora, ao que tudo indica, é o público LGBTQIA+”, disse-me Thorpe no café Kelet, onde se toma um esplêndido chocolate quente em meio a estantes de livros. Na visita de Bolsonaro, não se assinou nenhum acordo substancial, mas Orbán aproveitou para propagandear sua agenda eleitoral contra o público LGBTQIA+
Quando forem às urnas – que ainda não são eletrônicas na Hungria – os eleitores receberão duas cédulas. Numa, decidirão se Orbán merece um quarto mandato consecutivo. Em outra, responderão ao seguinte questionário:
“Você apoia que crianças em escolas públicas participem de aulas de educação sexual sem consentimento dos pais?”
“Você apoia que informações sobre tratamentos de mudança de gênero sejam dadas a crianças?”
“Você apoia que conteúdo de natureza sexual que afeta o desenvolvimento das crianças seja apresentado a elas sem restrições?”
“Você apoia que conteúdo sobre mudança de gênero seja apresentado a crianças?”
O questionário, devidamente calibrado para açular a emoção dos ultraconservadores e induzir respostas negativas, não tem validade jurídica. Serve
apenas aos interesses de Orbán de colocar os eleitores num estado de espírito belicoso e de provocar a União Europeia, que se opõe abertamente às manipulações que o governo vem fazendo sobre questões LGBTQIA+.
Na prática, ao responder ao questionário, os húngaros dirão se estão ou não de acordo com a chamada Lei de Proteção à Criança, aprovada no ano passado com uma penca de jabutis, como a política brasileira se refere aos enxertos que deformam o espírito original de uma lei. Na ocasião, os parlamentares húngaros discutiam um projeto de lei destinado a aumentar as penas para o crime de pedofilia. Esse era o tema. Na última hora, os deputados do Fidesz, o partido de Orbán, incluíram vários adendos cujo efeito prático é proibir que pessoas LGBTQIA+ apareçam na televisão em horário nobre, que questões de gênero constem do currículo escolar e que, indo ainda mais adiante, livros sobre o assunto sejam expostos nas livrarias. Com o pretexto de combater a pedofilia, criou-se uma legislação anti-LGBTQIA+.
A Lei de Proteção à Criança, com seus jabutis discriminatórios, foi duramente criticada na Europa. “É uma discriminação clara baseada na orientação sexual das pessoas e fere todos os valores fundamentais da União Europeia, onde você é livre para amar quem quiser”, reagiu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, filiada à União Democrata Cristã, partido alemão de centro-direita. “Essa lei é uma vergonha”, completou ela. Em seguida, a Comissão Europeia mandou uma carta ao governo húngaro em que reafirma o protesto em termos duros. (O governo respondeu que “vergonha” era o protesto, porque estava “baseado em alegações falsas”.)
Ao escolher o inimigo eleitoral deste ano, Orbán recorreu a uma estratégia que a extrema direita usou em outros lugares. Em 2020, o presidente Andrzej Duda, da Polônia, fez com que as questões de gênero monopolizassem o debate eleitoral – e, mesmo raspando, conseguiu se reeleger. Antes disso, o próprio Bolsonaro demonizou uma cartilha contra a homofobia nas escolas, dizendo que se tratava de um “kit gay” que ensinava as crianças sobre práticas homossexuais. Como se sabe, encantou boa parte do eleitorado mais conservador, sobretudo o evangélico. (Em círculos políticos de Budapeste, comenta-se que o eixo ultraconservador do mundo hoje é formado pela troica Polônia-Hungria-Brasil, e que uma derrota de Orbán agora, seguida de uma derrota de Bolsonaro em outubro, seria um golpe fatal para a ultradireita.)
O “kit gay” tem seus equivalentes na Hungria. São dois livros inclusivos que tratam de questões LGBTQIA+. Micsoda Család! (Que família!) traz histórias de duas crianças, uma com duas mães, outra com dois pais. O outro, Meseország Mindenkié (País das Maravilhas para todos), faz uma releitura de histórias infantis tradicionais, nas quais Branca de Neve tem pele escura e Cinderela é cigana – a minoria abertamente discriminada pelo Fidesz. Orbán repudiou as duas obras em discursos. Uma ex-porta-voz do partido Mi Hazánk (Minha terra natal), que está à direita do Fidesz, rasgou Micsoda Család! em público e classificou a obra de “propaganda homossexual”. A Lei de Proteção à Criança já mostrou sua serventia. Com base nela, os editores de Micsoda Család! foram multados. Procurei as obras em livrarias de Budapeste. Numa, fui informado de que os livros não podiam ser expostos. Em outra, disseram-me que os livros estavam fora de estoque. Numa terceira, na região boêmia da cidade, ouvi uma explicação alternativa para o sumiço dos livros: “Eles se tornaram best-sellers desde que o governo… você sabe.” Segundo a vendedora, Meseország Mindenkié está esgotado.
Bolsonaro arrumava as malas em Moscou para embarcar para a Hungria quando Orbán sofreu uma dura derrota no Tribunal de Justiça da União Europeia. No dia 16 de fevereiro, véspera da visita do presidente brasileiro, a corte cONGelou o repasse da União Europeia a países cujos governantes malversam as verbas. Com isso, Ursula von der Leyen ganhou uma ferramenta jurídica para punir países onde falta transparência ou os recursos não são usados em benefício de políticas públicas que comprovadamente melhoram a situação da população – e a Hungria se encaixa em ambos os casos. Orbán já suspeitava da decisão. Dias antes, fez um discurso à nação no Pavilhão dos Jardins do Castelo (Várkert Bazár), à beira do Danúbio, dizendo que a União Europeia trava uma jihad contra ele e contra os húngaros.
Orbán e a Hungria dançam uma valsa com Ursula von der Leyen e a União Europeia. Ou melhor, uma “dança do pavão”, como o próprio Orbán caracterizou a situação para o jornalista húngaro Paul Lendvai no livro Orbán, Europe’s New StrONGman (Orbán, o novo homem forte da Europa). É uma coreografia com avanços e recuos. A União Europeia é um clube de democracias, e Orbán é um “irmão” para Bolsonaro porque vem seguindo à risca o manual da construção de uma autocracia de extrema direita: retalhou a Constituição, subjugou o Legislativo, aparelhou o Judiciário e destruiu a imprensa independente. Ele energiza sua base ao demonizar os “burocratas de Bruxelas”, onde fica a sede da União Europeia. Mas precisa de seus recursos, bem como do comércio com os outros países do continente – 80% do que a Hungria produz se destina à exportação. Com muita habilidade, construiu em seu país um híbrido de democracia e autoritarismo, que lhe permite um discurso duplo. Diz uma coisa em casa, em húngaro, e outra em Bruxelas, no excelente inglês que aprendeu quando estudou no Reino Unido.
Nos fóruns europeus, Orbán alardeia que seu país é um exemplo de democracia. Promove eleições regulares a cada quatro anos e, ao contrário da Turquia e da Rússia, não tem presos políticos, nem censura no sentido tradicional. Nos treze dias que passei na cidade, presenciei duas manifestações – ambas de extrema direita. Uma delas era organizada pelo partido Mi Hazánk, cujos integrantes usavam uniformes de corte militar e portavam estandartes com a cruz de Santo Estêvão, o padroeiro da Hungria. A outra era de militantes antivacina, que prestavam solidariedade aos caminhoneiros canadenses, em greve contra a obrigatoriedade do passaporte de vacina para entrar no país. Havia centenas de bandeiras da Hungria e algumas do Canadá, agitadas ao som de rock and roll clássico – incluindo uma versão em húngaro de Blowin’ in the Wind, de Bob Dylan.
Quando a acintosa Lei de Proteção à Criança foi aprovada, a comunidade LGBTQIA+ saiu em protesto pelas ruas de Budapeste, e não houve repressão policial. “Orbán é a estrela da extrema direita porque é mais habilidoso que Bolsonaro”, diz o advogado brasileiro Thiago Amparo,[1] que morou em Budapeste entre 2010 e 2016 e, dois anos depois, voltou à cidade para defender seu doutorado. “Ele usa ferramentas constitucionais, administrativas e orçamentárias para expandir o próprio poder. Muitos populistas só têm a retórica, mas Orbán fala e age”, completa Amparo. Se a lei não lhe permite fazer determinadas coisas, muda-se a lei. Se não é possível censurar, sufocam-se os veículos de comunicação financeiramente.
Para András Bozóki, um dos mais respeitados cientistas políticos húngaros, estas três ferramentas – mudança constitucional, asfixia financeira e guerra cultural – vêm sendo usadas de forma tão metódica que viraram caso de interesse da extrema direita em outros países. “No mandato de 2010 a 2014, Orbán se dedicou a reformar as instituições, aprovando uma Constituição que facilita, entre outras coisas, que ele se eleja e conquiste maioria no Parlamento”, diz Bozóki. “No segundo mandato, investiu contra a imigração, dizendo que os muçulmanos destruiriam a civilização cristã, com o detalhe de que praticamente não há muçulmanos na Hungria.”
O terceiro mandato, a fase atual, é o estágio da guerra cultural, contra os LGBTQIA+ e os intelectuais, que, segundo os propagandistas do Fidesz, representam a “esquerda globalista”. Conversei com Bozóki por videoconferência. Ele próprio é vítima da guerra cultural. A Universidade da Europa Central (CEU, na sigla em inglês), em que lecionava, a mesma em que estudou Thiago Amparo, foi quase integralmente expulsa da Hungria por ser financiada pelo inimigo número 1 de Orbán: o investidor e filantropo húngaro George Soros, apontado como apóstolo-mor do que a extrema direita chama de “globalismo".
Ates de se encontrar com Viktor Orbán no Palácio Karmelita, Bolsonaro cumpriu um ritual comum aos chefes de Estado que visitam a Hungria. Depositou flores no Memorial do Milênio, na Praça dos Heróis, que homenageia vultos da história local. Budapeste é uma cidade obcecada por monumentos. A praça apresenta uma enorme concentração de estátuas de reis húngaros. Entre eles, Matthias Corvinus (1443-90), famoso pelo talento militar e pela promoção das artes e da cultura, tendo inaugurado na cidade uma das maiores bibliotecas da Idade Média. Ele também empresta o nome a um centro de estudos, o Colégio Matthias Corvinus. Na véspera da chegada de Bolsonaro, assisti ali ao primeiro dia do ciclo de debates: O Que Queremos Ensinar a Nossos Filhos? – um título meticulosamente pinçado da guerra cultural.
A maneira com que Orbán quer dominar o meio artístico e intelectual de seu país é insidiosa e se dá, fundamentalmente, à base de dinheiro. O melhor exemplo é a sua “reforma universitária”. Pela proposta, todas as universidades públicas passariam – voluntariamente – a ser administradas por conselhos, que teriam autonomia para deliberar sobre o orçamento e buscar recursos. Na aparência, a ideia é ampliar a autonomia universitária. No fundo, é o oposto, pois os conselhos – e seus presidentes – são nomeados pelo governo. Nem todas as universidades ou centros de estudos aderiram ao plano. Alguns ainda resistem. Os que aderiram, no entanto, já foram beneficiados com verbas oficiais. É o caso do Colégio Corvinus, que recebeu fundos governamentais na casa do bilhão de dólares.
Nesse centro de estudos, pode-se testemunhar o que seria o ensino acadêmico dos sonhos de Orbán. A instituição cONGrega pensadores conservadores do mundo inteiro – muitos deles se mudaram para Budapeste em busca do que seria o bastião da resistência contra a predominância liberal na academia. O presidente do conselho é Balázs Orbán, que não é parente do primeiro-ministro, mas é um integrante de destaque do Fidesz. Ele foi encarregado de abrir o simpósio O Que Queremos Ensinar a Nossos Filhos? e demarcou o terreno logo de saída. “Vivemos no passado numa ditadura comunista, hoje estamos na ditadura do gênero”, disse. “Antes, combatíamos a bandeira vermelha. Agora, é a hora de combater a bandeira do arco-íris.”
O discurso, que dialoga harmonicamente com a propaganda de campanha de Orbán, foi aplaudido com entusiasmo. Ao longo do simpósio, falou-se ainda de “racismo contra os brancos” e da progressiva destituição da autoridade dos pais, que vem sendo tomada de assalto por educadores comprometidos com “ideologias de gênero”. A bandeira do arco-íris, além de símbolo do público LGBTQIA+, também é vista como emblema do “globalismo”, cuja missão seria triturar as identidades nacionais. Entre os participantes do colóquio, havia professores de universidades norte-americanas e britânicas de prestígio, como Princeton.
A reforma universitária aconteceu de forma tão repentina que alunos e professores, pegos de surpresa, não tiveram tempo nem de organizar protestos. Houve uma exceção: a orgulhosa Universidade de Teatro e Artes Cinematográficas, onde se desenvolveu a rica tradição cultural da Hungria no ramo. Fundada em 1865, ela foi berço de vários dos nomes que fizeram do cinema húngaro um dos melhores do mundo, como os diretores István Szabó e Béla Tarr. No final de agosto passado, os alunos ocuparam a universidade por meses. Em outubro, quando se comemora a revolução de 1956, que se insurgiu contra a ditadura soviética, os estudantes saíram da instituição, que fica em Buda, e marcharam pela Ponte da Liberdade em direção a Pest. Foi um dos maiores protestos contra Orbán.
Novamente, não houve repressão. Novamente, o governo ignorou os protestos. Vários alunos deixaram a universidade. Vários professores pediram demissão e acabaram substituídos por nomes alinhados com o Fidesz. Pouco antes da visita de Bolsonaro, Orbán deu o golpe de misericórdia. O conselho da universidade, nomeado por seu partido, escolheu o ator Zóltan Rátóti para dirigir a instituição. Rátóti é uma versão húngara da atriz Regina Duarte. Em entrevista a um jornal local, falou do seu compromisso com “valores nacionais e cristãos” e do combate ao “pensamento único” de matriz progressista. (“Coincidência ou não”, como diria Bolsonaro, uma semana depois, em Brasília, o secretário de Cultura, Mario Frias, foi mais longe: consolidou a alteração nas regras da Lei Rouanet, que financia a cultura. Além de reduzir o valor dos patrocínios, o governo passou a ter a palavra final sobre as ações culturais que poderão, ou não, ser produzidas.)
Com a expulsão quase total da CEU de George Soros, apenas um pedaço dela continua funcionando em Budapeste. É o Instituto da Democracia, que estuda, entre outras coisas, os processos pelos quais os países democráticos involuem e se tornam autocracias. Para Renáta Uitz, uma das diretoras do instituto, talvez as amarras criadas pela reforma universitária tenham vida longa. “Quando alguém fica muito tempo no governo, acaba nomeando pessoas em postos-chave com mandatos que, às vezes, extrapolam os do governo”, diz Uitz. “Isso significa que, mesmo que Orbán perca as eleições, um novo primeiro-ministro terá muito trabalho para desmontar o que foi montado.”
Conversei com Uitz numa sala de reuniões do que restou da universidade de Soros, na Rua József Nádor, perto do Parlamento, um dos endereços mais nobres de Budapeste. O prédio, desenhado por um escritório irlandês de arquitetura, é belíssimo e tem consumo eficiente de energia. Na entrada, gravada em pedra, lê-se uma citação de Soros: “O pensamento nunca pode acompanhar a realidade; a realidade é sempre mais rica que nossa compreensão. A realidade tem o poder de surpreender o pensamento, e o pensamento tem o poder de criar realidade. Mas nós devemos lembrar das consequências inesperadas – os resultados sempre diferem de nossas expectativas.” O prédio, com sua beleza e eficiência, está praticamente às moscas.
Nos anos 1980, Viktor Orbán era um jovem líder estudantil que sonhava em estudar em Oxford. Como não tinha recursos, acabou recebendo patrocínio financeiro justamente daquele que, anos depois, ele elegeria como seu principal inimigo: o bilionário George Soros, acusado por ele de operar “uma extensa rede mafiosa” que ameaça a Europa. Pouco antes de embarcar para a Inglaterra, Orbán havia fundado o Fidesz, a União Cívica Húngara. Na origem, era um partido moderado. Em 1998, aos 35 anos, ele elegeu-se primeiro-ministro como um político de centro-direita, capaz de dialogar sem dificuldades com políticos do outro lado, como o então presidente norte-americano Bill Clinton.
Em 2002, Orbán perdeu a eleição para Péter Medgyessy, que renunciou e foi sucedido por Ferenc Gyurcsány, então do Partido Socialista Húngaro. Quatro anos mais tarde, tendo feito um governo que apresentou realizações, Gyurcsány se reelegeu. Durante os anos de oposição, no entanto, Orbán trabalhou duro. Empenhou-se em multiplicar os “círculos cívicos”, grupos que professavam um “nacionalismo cristão” e tornaram-se especialmente fortes no interior da Hungria. Entre 2002 e 2006, segundo um estudo do cientista político Béla Greskovits, os círculos cívicos organizaram mais de 4,8 mil eventos. “Há duas Hungrias, a de Budapeste, moderna e cosmopolita, e a do interior, extremamente conservadora”, diz o cientista político András Bozóki. No interior, os círculos cívicos estimularam o culto a heróis nacionais e se aproximaram das teorias conspiratórias que a extrema direita promovia no Leste Europeu, sobretudo na Polônia.
Em 2006, no início do seu segundo mandato, Gyurcsány exaltou-se ao exortar seus correligionários a dizer toda a verdade à população sobre a péssima situação fiscal do país, escondida da população durante a campanha eleitoral – e sua frase foi gravada. Dizia: “Nós mentimos de manhã, mentimos de tarde e mentimos de noite. Não podemos fazer mais isso.” A declaração causou comoção nacional e protestos irromperam pelo país, mas Gyurcsány, apesar da dura repressão às manifestações, conseguiu manter-se no cargo. Só foi abatido pela crise financeira mundial em 2008. Na eleição de 2010, aproveitando o desgaste de Gyurcsány, Orbán chegou ao poder – de onde nunca mais saiu. Até hoje a oposição responsabiliza Gyur-csány – que deixou o Partido Socialista e fundou a Coligação Democrática (DK) – pela ascensão de Orbán.
Com a vitória em 2010, Orbán conseguiu formar uma supermaioria no parlamento e não perdeu tempo. Criou uma nova versão da Constituição do país, cujo principal efeito foi tirar poderes do Judiciário. Entre outras coisas, o Tribunal Constitucional – equivalente ao nosso STF – passou a ter quinze juízes, em vez de onze, e nomeá-los virou função do Parlamento, em que o Fidesz reinava soberano. Com isso, Orbán foi, aos poucos, compondo o Tribunal com aliados – alguns deles sem nenhuma experiência jurídica. A estrutura das demais cortes também foi alterada, perdendo independência.
As normas eleitorais foram igualmente alteradas. “As novas regras acabaram com o segundo turno na eleição de deputados distritais e também instituíram um bônus maior para os partidos mais votados”, explicou-me, em seu escritório, o cientista político Zsolt Boda, diretor do Centro de Ciências Sociais, instituição de excelência na Hungria. O bônus já existia na transição do comunismo para a democracia – quando os húngaros decidiram facilitar a formação de maiorias, temendo que a fragmentação tornasse o país ingovernável –, mas Orbán aprofundou o bônus. Desde então, seu Fidesz ganha controle absoluto do Parlamento em todas as eleições.
Aproveitando a impopularidade de Gyurcsány, a propaganda eleitoral de Orbán tenta vender para o eleitor a ideia de que o candidato de oposição, Péter Márki-Zay, não passa de um fantoche do ex-socialista. A peça de campanha de maior sucesso de Orbán mostra a famosa cena de Austin Powers, série cômica que parodiava filmes de 007, na qual o maléfico Dr. Evil é apresentado para seu clone em miniatura, o Mini-Me. Na peça eleitoral, um efeito especial primário, que remete à linguagem do meme, recorta a cabeça de Dr. Evil para colocar, no lugar dela, o rosto de Gyurcsány. Já a cabeça de Mini-Me é substituída pela de Márki-Zay. A mensagem da paródia está pronta: o candidato de centro-direita é mero laranja do ex-socialista.
Agora, prestes a completar doze anos no Palácio Karmelita, Orbán ocupa o posto do autocrata mais admirado da extrema direita. Ele é muito mais sofisticado do que seu colega brasileiro. Habilidoso, consegue operar com desenvoltura nos dois registros: no popular, em que explora os preconceitos mais rudimentares do eleitor e os instrumentaliza a seu favor, e no acadêmico, em que formula suas ideias com fluência e embasamento teórico. Diz Nick Thorpe, o jornalista da BBC: “Orbán se destaca por ser um virtuose da política. É como um maestro que é capaz de usar diversos instrumentos: das ferramentas constitucionais e econômicas à guerra cultural.”
"A Hungria se tornou uma espécie de livro-texto em controle de mídia”, diz o pesquisador húngaro Marius Dragomir, diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade, mantido por várias universidades internacionais, inclusive o CEU. “Porque a Hungria é talvez o único país do mundo que conseguiu cumprir os quatro passos desse dispositivo autoritário.” Sem fechar ou censurar nenhum veículo, Orbán foi avançando aos poucos sobre a imprensa. Primeiro, introduziu mudanças na Constituição, que facilitaram o controle do governo sobre os canais de comunicação. Em seguida, colocou todos os canais públicos de televisão e rádio nas mãos de um integrante do Fidesz. Hoje a programação das tevês públicas – Danúbio, M1 e M2, sendo que o “M” vem de Magyarorszag, o nome do país em húngaro – praticamente não abrem espaço para políticos de oposição. Ao contrário das democracias sólidas, onde as emissoras públicas não são porta-vozes do governo, na Hungria elas se tornaram canais oficiais.
Depois, Orbán estimulou que amigos empresários comprassem emissoras regionais ou canais estrangeiros que lhe faziam oposição, recompensando-os, em alguns casos, com facilidades empresariais em outras áreas. Em certas situações, os amigos compraram os veículos apenas para fechá-los em seguida. Por fim, Orbán recorreu à prática clássica de destinar verbas publicitárias apenas para emissoras amigas. Em seu livro sobre o novo homem forte da Europa, o jornalista Paul Lendvai estima que 80% dos húngaros têm como fonte principal de informações veículos sob controle, direto ou indireto, do governo.
Para Dragomir, Orbán vem inspirando líderes autoritários em diferentes países. “O caso polonês, em que ocorreu algo semelhante pouco depois, foi claramente inspirado no caso húngaro”, diz. No entanto, ele frisa, ninguém conseguiu implantar os “quatro passos” de asfixia da imprensa. “Na República Tcheca, o sistema estatal de comunicação, muito bem estabelecido, não se submeteu. Na Polônia, o controle de várias empresas de comunicação está na mão de estrangeiros, que também não se sujeitaram.”
Uma das poucas emissoras de tevê na Hungria que não rezam inteiramente pela cartilha do governo – até agora, pelo menos – é a rtl alemã. Mas não tem sido fácil. Com sua maioria folgada no Parlamento, Orbán aprovou uma lei que aumentava enormemente os impostos pagos por empresas que tivessem determinadas condições – e a única penalizada foi a rtl. Era uma lei sob medida, como a que empurrou o CEU para fora da Hungria. “Desde que sofreu um enorme prejuízo financeiro, a rtl, orientada pelos donos alemães, passou a moderar as críticas contra o governo”, diz Dragomir.
Nos últimos tempos, um sufoco semelhante começa a se abater sobre escritores e cineastas. Recentemente, o escritor Imre Bartók – autor de A Patkány Éve (O ano do rato), um sucesso de crítica na Hungria em cujo enredo Karl Marx, Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein cometem atos terroristas em Nova York – esteve no centro de uma polêmica envolvendo um prêmio literário. Conversei com ele no café Kisuzem, reduto de escritores e cineastas no Sétimo Distrito – também conhecido por Bairro Judeu, por causa das sinagogas imponentes, e por Party District, pela presença de turistas ingleses que se divertem na animada vida noturna da região. O vencedor do prêmio, criado pelo governo, levaria 60 mil euros (360 mil reais), uma enormidade num país onde láureas literárias não passam de 10 mil euros. Ao receber a notícia de que fora um dos contemplados, Bartók estranhou: ele não havia se inscrito e, além disso, soube que havia uma “contrapartida” – sair pelo país dando conferências, o que também é incomum.
Como achou tudo esquisito, Bartók resolveu investigar. Descobriu que a lista original dos selecionados era formada por trinta escritores, quase todos alinhados com o regime de Orbán, mas acabara estendida para 45. Desconfiou que o aumento, que incluiu escritores sem qualquer identificação com o governo, era uma forma de legitimar a premiação, afastando críticas de favorecimento ideológico. “Acho que acabei entrando nessa segunda lista, feita para legitimar a primeira”, diz Bartók. Ele rejeitou publicamente o prêmio. “Foi uma atitude corajosa, que levou outros escritores a fazer o mesmo”, diz Urbán Bálint, professor de Literatura na Universidade Eötvös Loránd, uma das mais tradicionais de Budapeste e que não aderiu à reforma universitária.
Até recentemente, a autoridade máxima do cinema húngaro era o produtor Andrew Vajna. Depois de uma carreira de sucesso em Hollywood, ele voltou para a Hungria no ano seguinte à eleição de Orbán para comandar o órgão governamental que cuida da área cinematográfica. Entre os cineastas húngaros, Vajna era visto com um misto de ojeriza e simpatia. Ojeriza por sua proximidade com Orbán. Simpatia porque, apesar de tudo, protegia a liberdade criativa dos cineastas. Durante seu domínio, produziram-se filmes como Filho de Saul, de László Nemes, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016, e a comédia Brasileiros, sobre um time de ciganos que é finalmente aceito no campeonato de futebol de uma cidadezinha húngara. Admiradores do centroavante Ronaldo, os ciganos – a minoria hostilizada pelo Fidesz – usam camisa amarela. “Filmes sobre minorias ficam restritos ao circuito liberal de festivais. Por isso, não incomodam o governo. E, para se dizer que o país vive numa democracia, tem que haver alguma liberdade artística”, diz o cineasta Benedek Fliegauf, cujo filme Apenas o Vento, sobre crimes em comunidades de ciganos, ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim, em 2012.
Vajna morreu em 2019. Desde então, com sua ausência, começou a se espalhar o temor de que os novos filmes húngaros passem a ser produções ufanistas, de cunho patriótico, destinadas a edulcorar a nacionalidade – e o governo. A primeira, aliás, já desponta no horizonte. É Most Vagy Soha! (Agora ou nunca!), que conta a vida do poeta e revolucionário Sándor Petőfi, cuja lírica exaltava o amor e a liberdade. Morreu aos 26 anos, em 1849, no campo de batalha, durante a guerra da independência. É o filme mais caro da história da Hungria. Seu produtor, Philip Rákay, faz parte do grupo de artistas que orbitam em torno de Orbán.
O controle do governo já é um sintoma visível. Procurei diversos diretores, atores e produtores para conversar sobre a opressão no setor, mas apenas Fliegauf concordou em responder algumas perguntas por e-mail. Não é difícil entender os motivos. Na Hungria, como na maior parte dos países que não têm uma indústria cinematográfica vigorosa – quase todos, fora Estados Unidos e Índia –, os filmes ainda são extremamente dependentes de patrocínio estatal.
As manifestações culturais ou artísticas, porém, não são os únicos alvos. O governo de Orbán tem se empenhado com zelo para restringir também o trabalho das ONGs, outro bicho-papão para todos os extremistas de direita. Conversei com Veronika Móra, que dirige a Ökotárs Alapítvány, responsável por arrecadar fundos, em geral privados e internacionais, para financiar outras organizações. É uma espécie de ONG das ONGs – e, portanto, inimiga preferencial do governo. Ela própria chegou a ser acusada pelas autoridades húngaras de desviar dinheiro em 2014, o que nunca foi provado. Móra diz que existem ainda cerca de 55 mil ONGs na Hungria, metade delas envolvidas em questões de direitos humanos. Elas competem, afirma, com os círculos cívicos de Orbán, que tentam neutralizar o trabalho das ONGs. “Para se contrapor à sociedade civil progressista, Viktor criou sua própria sociedade civil”, conclui.
Budapeste é uma cidade vibrante que não combina com um país em que o primeiro-ministro promove uma escalada autoritária. Encontrei o pesquisador brasileiro Vinicius Gorczeski no Szimpla Kert, o mais famoso “bar de ruínas” da noite de Budapeste. “Bares de ruínas” são imóveis abandonados transformados em casas noturnas. Neles, é possível criar diversos ambientes – na sala, na cozinha, nos quartos, nos quintais ao ar livre, o que é especialmente conveniente em tempos de Covid. “É uma cidade agradável, com excelente transporte público e uma vida noturna animada. Não gostaria de morar em nenhum outro lugar da Europa atualmente”, diz Gorczeski, que atua no Demos, projeto financiado pela União Europeia que estuda populismo e democracia. “Budapeste sempre foi uma capital acadêmica, com muitos estudantes, e hoje está se tornando um hub digital do Leste Europeu. Essa imagem de um lugar liberal e movimentado é importante para atrair cérebros e turistas”, diz Gorczeski.
Os números apertados das pesquisas eleitorais mostram que a guerra cultural conservadora, desta vez, corre o risco de não funcionar numa sociedade que, apesar de tudo, está cada vez mais aberta. “Viktor está nos olhando da janela”, diz Viktória Sulyok, que, como muitos húngaros, refere-se a Orbán pelo primeiro nome. Conversamos num café, o Madal, perto do Parlamento húngaro, um belíssimo edifício neogótico. Sulyok é líder de uma ONG que congrega várias associações de defesa dos direitos LGBTQIA+. Conosco estava Ákos Modolo, coordenador de um movimento de voluntários cujo objetivo é reduzir o preconceito em escolas secundárias. Modolo foi diretamente afetado pela Lei de Proteção à Criança. As escolas, com receio de multas e retaliação na mídia governista, deixaram de procurá-lo para fazer o debate sobre preconceitos com os alunos. É a versão húngara do “escola sem partido”.
Modolo é católico e vem de uma família conservadora do interior da Hungria, onde Orbán é mais popular que em Budapeste. “Quando o primeiro-ministro falava em imigrantes e apontava o perigo de terroristas muçulmanos, depois do atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, era algo meio absurdo, pois praticamente não existem muçulmanos na Hungria”, diz ele. “Mas logo em seguida veio a crise dos refugiados. A perseguição a eles e a construção de um muro na fronteira com a Sérvia são coisas totalmente condenáveis, mas se tratava de uma questão concreta, e muitos húngaros – principalmente na minha terra – se sentiram ameaçados.” Viktória Sulyok concorda: “Claro que há os preconceitos e estereótipos, mas os LGBTQIA+, a rigor, não ameaçam ninguém, e todo mundo sabe disso.”
Há também uma questão social. Refugiados são por definição vulneráveis, e não têm quem os defenda além de ONGs como o Helsinki Group. “Os gays na Hungria conseguem se defender melhor”, diz Modolo. Depois da Lei de Proteção à Criança, a parada LGBTQIA+ de Budapeste bateu recorde de comparecimento, com mais de 30 mil pessoas em 2021. “Existe também uma valorização da questão da privacidade dentro da Hungria”, diz Sulyok. “Por isso, Viktor mudou o discurso e veio com essa história de falar de operação de mudança de sexo no jardim da infância, algo que foi parar na cédula eleitoral.” Sulyok e Modolo acreditam que, dessa vez, Viktor talvez tenha errado na escolha do inimigo.
Vários dos entrevistados desta reportagem destacaram um traço cultural húngaro: escrever e reescrever a história em termos de heróis e inimigos. Pode-se entender melhor essa característica numa visita ao Museu Casa do Terror. Fica no mesmo endereço – Avenida Andrássy, nº 60, perto da Praça dos Heróis – onde funcionava o Q.G. dos nazistas na Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, a polícia secreta, durante os anos de dominação soviética. Na sala de entrada do museu está um tanque de guerra usado para reprimir os revoltosos de 1956. No interior do prédio, há cartazes de propaganda soviética, filmes raros e a reprodução das dependências onde ficavam presos políticos. Em destaque, uma sala com uma enorme cruz no chão mostra como os dois totalitarismos perseguiam os religiosos.
A ideia da Hungria como vítima de invasões estrangeiras, uma da Alemanha nazista, outra da Rússia soviética, foi apropriada e magnificada por Orbán. Na Praça da Liberdade, perto do Parlamento e do prédio onde funcionava o campus central da universidade de Soros, existe um monumento que mostra o arcanjo Gabriel sendo atacado por uma águia. Passei por lá várias vezes, e várias vezes vi protestos contra o que seria uma “falsificação histórica”. As manifestações ali são recorrentes desde 2014, quando Orbán inaugurou o monumento. O arcanjo Gabriel representa o povo húngaro, e a águia representa a Alemanha – dando a entender que a Hungria foi vítima dos nazistas. Para muitos habitantes de Budapeste, principalmente da comunidade judaica, o movimento deturpa a história porque não reconhece que a perseguição a judeus na Segunda Guerra – e também a ciganos – antecedeu a invasão alemã em 1944.
Mais até que os horrores do nazismo, o passado comunista ainda é um fantasma que assombra a Hungria. Durante a dominação soviética, estátuas do realismo socialista foram espalhadas pela cidade. Quando a Hungria se redemocratizou, todas foram recolhidas – mas não destruídas. As estátuas estão reunidas no Parque Memento. Cruzei a Ponte da Liberdade pela última vez, agora de táxi, para vê-las. A viagem é longa. Elas estão num subúrbio afastado de Buda. Logo na entrada há esculturas gigantes de Marx e Engels com um requinte de acabamento que lembra a famosa estátua do Borba Gato na Zona Sul de São Paulo. Há Lênin, há Stálin, há líderes soviéticos discursando para multidões de operários em bronze já enferrujado pelo tempo. Eu era o único a visitar o lugar numa tarde fria de fevereiro, e levei tempo para conseguir voltar ao hotel. O Parque Memento fica num lugar tão ermo que é impossível encontrar táxis na volta, mesmo recorrendo a aplicativos.
Em janeiro de 2019, Viktor Orbán foi um dos dois únicos chefes de governo europeus a ir à posse de Bolsonaro em Brasília – o outro, por razões históricas, foi o português Marcelo Rebelo de Sousa. De volta da posse, já na Hungria, Orbán disse que Bolsonaro era “a mais apta definição de democracia cristã moderna”. A visita de Bolsonaro à Hungria foi uma retribuição. No final de sua fala no Palácio Karmelita, Orbán convidou Bolsonaro a ir a sua posse, observando com modéstia: “caso o povo húngaro decida que eu devo continuar.” Os próximos anos dirão se, no futuro, a estátua de Orbán estará na Praça dos Heróis, ou ficará enferrujando em algum canto do Parque Memento. Por enquanto, ele pode até ser chamado de “irmão” por outros autocratas, mas o certo é que tem sido mesmo é um professor.
.
Veja: Fato novo nas eleições de outubro https://bit.ly/3MCkYl9
Nenhum comentário:
Postar um comentário