A 'fake health' de Queiroga
Ministro faz mal à Saúde ao atuar
como o paladino da competição empresarial
Ligia Bahia*, Folha de S.Paulo
Deve
ter mesmo uma "caveira de burro" enterrada no Ministério da Saúde. O
ministro Marcelo Queiroga,
em artigo publicado nesta Folha ("‘Open health’ é
questão de tempo, coragem e decisão", 6/3), reenviou um
vale-presente do governo para as empresas de planos de saúde.
Seu
texto anuncia a segunda versão para a implementação do denominado "open
health", uma plataforma para facilitar as transações comerciais
das operadoras. Ao
insistir na mesma ideia, apresentada em meados de janeiro, sempre pela
imprensa, o ministro a justifica pela necessidade de assegurar a concorrência
entre as empresas.
Sinteticamente,
consistiria na reunião de informações para que empresas e clientes possam
superar dificuldades na hora da compra ou troca de planos de saúde. Na versão
anterior, dados sobre saúde seriam acessados para calibrar o preço das
mensalidades. Produtos mais baratos
poderiam ser comercializados para pessoas que potencialmente utilizam menos
serviços. Críticas de pesquisadores e das próprias empresas à
"proposta-opinião" de Queiroga alertaram sobre irregularidades do uso
de dados sensíveis de cidadãos para expandir a venda de planos privados.
Na
tentativa de remendar um "open health" que já era mal-ajambrado,
Queiroga recuou, mas fingindo que dobrou a aposta. Agora, a autoridade máxima
da Saúde do país declara que haverá dois sistemas de informação: um financeiro,
exclusivo para quem tem plano de saúde; e outro com dados pessoais de saúde, epidemiológicos
e assistenciais, para toda a população. Botou no mesmo saco a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS),
instituída em 2020 para registrar e permitir troca de dados individualizados
sobre saúde, orientada pelas diretrizes da Lei Geral de Proteção de
Dados, junto com um cadastro tipo "SPC", contendo
informações sobre o tipo de plano e o perfil do pagador de mensalidades.
Um
sistema de informações de base populacional abrangente e qualificado é mais do
que bem-vindo. Atualmente, vemos nas ruas pessoas carregando sacos de exames
—quem transporta dados e se esforça para relatar atendimentos anteriores são os
pacientes. Frequentemente, quem muda de cidade, médico ou plano de saúde tem
que começar tudo de novo. Unificar informações permite avançar o monitoramento
das tendências de adoecimento e mortalidade e avaliar a efetividade de
diagnósticos e tratamentos. Já o instrumento de controle de bons clientes para
os planos parece inútil.
A
comercialização de planos individuais para os segmentos que trabalham na perene
informalidade, com rendimentos relativamente baixos, é um desejo antigo de
parte das empresas. Mas o conhecimento detalhado sobre trajetórias financeiras
tem baixo interesse para transações baseadas em pré-pagamento.
No início dos anos 1990, o setor suplementar experimentou
vender planos individuais mais baratos e com restrições assistenciais e
carências abusivas. As consequências previsíveis foram rotatividade e
inadimplência. Empresas ganharam a rodo porque retinham o pagamento das
mensalidades dos clientes até quando eles podiam suportar.
Quando falta dinheiro para a comida, o boleto não quitado é o
do plano de saúde. A obsessão pela ampliação da assistência suplementar, mesmo
após a tragédia da pandemia, é mais um erro crasso da série "SUS
esquálido", o mesmo cometido antes e durante a dramática passagem da
Covid-19. Seria pedir demais um ministro da Saúde preocupado com as relações
entre desmatamento, contenção da emissão de gases de efeito estufa e emergência
de viroses com potencial pandêmico. Mas abdicar de assuntos como vacinação e aquisição de novos medicamentos comprovadamente
eficazes, inclusive para Covid e cânceres, para atuar como
o paladino da competição empresarial é em si um maleficio à Saúde.
* Doutora em saúde pública, é professora da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
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