A QUEDA DO CÉREBRO
Como
o coronavírus conseguiu transpor a última linha de defesa humana
Camille Lichotti, revista piauí
Isadora Martini gostava
de ler poemas. Separava os mais bonitos para declamar nos eventos do Centro de
Tradição Gaúcha na cidade de Chapecó, em Santa Catarina, onde mora com o
marido. Dona de uma memória fotográfica afiada, decorava todos versos em poucos
minutos. Também era fã dos romances de Paulo Coelho, lia livros de aventura,
crônicas, literatura espírita e, para a faculdade de medicina veterinária,
artigos científicos e textos sobre fisiologia e bioquímica. Mas há um ano o
prazer da leitura desapareceu. Martini, uma jovem de 28
anos, desenvolveu problemas de concentração e
memória – e acompanhar as frases de um texto de repente se tornou impossível.
Nos picos de confusão mental, cada vez mais frequentes, ela olha para as letras
espalhadas no papel e não consegue juntá-las em palavras que façam sentido.
Quando, com sorte, Martini forma palavras, simplesmente não consegue entender o
significado delas. “Não posso mais confiar no meu cérebro”, lamenta. “Se
estiver escrito ‘vassoura’, minha cabeça vai dizer que é ‘tesoura’, ‘cenoura’,
ou qualquer coisa parecida. É muito angustiante ver a palavra e não conseguir
entender”, diz ela.
Ela sente que sua mente
está sempre lhe pregando peças, tentando enganá-la e confundi-la. Agora ela
troca os nomes de objetos, se perde nos dias da semana, tem dificuldade de
entender e absorver o que as outras pessoas falam, como se alguma coisa se
perdesse no caminho entre os ouvidos e o cérebro. “Uma vez eu estava no meu
quarto e fiquei desorientada, esqueci onde eu estava. Olhava para os lados e
não reconhecia nada”, diz, com a voz embargada e os olhos marejados. “Às vezes
eu acho que estou com Alzheimer ou demência, e eu só tenho 28 anos. E se esses
sintomas piorarem, como eu vou viver? Quem vai cuidar de mim?” Todos esses problemas
neurológicos apareceram depois que Martini teve Covid e ficou doze dias
internada, em março de 2021.
A
ação do vírus no cérebro ainda é um mistério. Mas os cientistas estão cada vez
mais perto de desvendá-lo. Um estudo publicado em janeiro por pesquisadores da
Universidade de São Paulo mostrou que o Sars-CoV-2 consegue entrar no cérebro
humano. A análise foi feita a partir de imagens de altíssima resolução, com
ultrassom, ressonância magnética e
tomografia, aliadas à autópsia minimamente invasiva do tecido cerebral de seis
vítimas que desenvolveram a forma grave da Covid e precisaram de internação em
UTI. Até então, o consenso na comunidade científica era de que o cérebro apenas
era afetado por uma inflamação em resposta à presença do vírus no corpo. Os
pesquisadores brasileiros mostraram que o buraco é mais embaixo. “Fazendo uma
biópsia, é possível identificar o vírus nas células microgliais e endoteliais,
que revestem a superfície interna dos vasos”, diz o patologista Paulo Saldiva,
professor da USP e responsável pelas autópsias do estudo. A análise do tecido
cerebral mostrou resquícios da presença do vírus até em cérebros que, nas
imagens, pareciam incólumes. “Posso garantir que não é boa ideia pegar Covid,
especialmente sem estar vacinado. Eu não gostaria de ter um vírus andando no
meu cérebro.” Mesmo que seja de forma assintomática ou leve, este é um vírus
para não se ter.
Aideia de que o
coronavírus é capaz de se infiltrar no cérebro está apenas começando a se
consolidar. Poucos pesquisadores no mundo foram capazes de analisar o tecido
cerebral de pessoas que tiveram Covid. Isso porque só a investigação post
mortem pode levar o cérebro para as mãos dos cientistas – e a autópsia é uma técnica cada vez mais
rara nos laboratórios. O cérebro está
localizado na região mais protegida do corpo humano: além do crânio, que
reveste o encéfalo na parte exterior, a meninge forma uma espécie de capa
protetora na parte interna, filtrando praticamente todo invasor que chega à
região cerebral. É como um cofre superprotegido – mas, de alguma forma, o
coronavírus encontrou a chave para transpor essa barreira.
Outros vírus, como o do
HIV, conseguem atingir o cérebro, e eles próprios desencadeiam uma série de
inflamações. Mas esse é um movimento atípico para vírus respiratórios. A
influenza, por exemplo, é uma doença restrita ao sistema respiratório, e seu
foco central é o pulmão. “Foi uma surpresa porque imaginávamos que a Covid seria
uma doença do sistema respiratório. Mas me parece que a habilidade do
Sars-CoV-2 é justamente ter uma chave que abre as portas de praticamente todos
os órgãos”, explica Saldiva. No meio científico, a Covid já é chamada de
“doença sistêmica”. É possível encontrar partículas virais em praticamente todo
o corpo humano.
No estudo da USP, os
pesquisadores identificaram pequenos infartos agudos, hemorragias e lesões
visíveis na substância branca – a parte mais interna do cérebro, formada por
prolongamentos neurais que fazem a conexão entre diferentes partes do órgão. Na
região posterior, aparecem edemas cerebrais e sinais de sangramento. Ou seja,
pelo menos nos pacientes graves – que foram o foco da pesquisa – existem
alterações estruturais detectáveis. Para as pessoas que sobreviveram à
internação, como Isadora Martini, essas lesões podem permanecer no cérebro – e
não se sabe exatamente quais são as consequências. Mas ainda é possível que
pacientes com essas sequelas se recuperem: como as alterações são pequenas, os
neurônios talvez consigam se regenerar. “Eu espero que isso tenha pouco impacto
para quem sobrevive”, diz Saldiva. “Mas toda inflamação cerebral é um desgaste
e acelera o envelhecimento do cérebro. Qual vai ser o risco de acelerar a
incidência de Alzheimer, por exemplo? A gente não sabe ainda.”
Os mecanismos que o
coronavírus usa para atingir a região cerebral – e o que exatamente ele faz
quando chega lá – ainda não estão totalmente descritos na literatura
científica. O que dá para saber é que ele chega até lá através dos vasos
sanguíneos e do nervo olfatório, o que nos permite sentir odores. Tanto que uma
das manifestações mais comuns da Covid é a perda do olfato. Existe uma ligação
direta entre o nariz e o sistema nervoso central. E como o vírus está ali, nas
terminações do nervo e dentro do epitélio olfativo, ele pode simplesmente pegar
o elevador e chegar à cabeça.
Isadora Martini, aquela
que agora tem dificuldade para entender as palavras, perdeu o olfato nos
primeiros dias de infecção. Depois teve febre, tosse e dificuldade para
respirar. A obesidade era um fator de risco, e ela ficou doze dias internada no
hospital de campanha de Chapecó, em março de 2021. Não chegou a ser intubada,
mas precisou de suporte de oxigênio. Martini viu sete pessoas de sua ala
morrerem pela doença e ficou aliviada quando finalmente teve alta. “Achei que
eu tivesse vencido a batalha”, lembra ela. Depois de fazer fisioterapia, ele
conseguiu se recuperar rapidamente das sequelas físicas. As mentais ficaram e,
às vezes, Martini sente que passou por um tipo de lavagem cerebral. “Eu
preferia que minha cabeça estivesse 100% e meu corpo mais ou menos. Se eu
pudesse escolher, gostaria de ter as outras sequelas.”
Por causa dos problemas
cognitivos que adquiriu no pós-Covid, Martini precisou trancar a faculdade de
medicina veterinária porque não conseguiu dar prosseguimento aos estudos. Ela
agora trabalha em uma loja de estética animal, no estilo pet shop. Se antes ela
era capaz de decorar até a roupa que alguém vestia, hoje tem dificuldade para
se lembrar dos clientes que passam pela loja. “Tudo que eu queria era voltar a
estudar, mas não consigo”, lamenta. Enquanto conversava com a piauí nesta
semana, por videochamada, com frequência perdia a linha de raciocínio e
esquecia sobre o que estava falando. Vez ou outra, a jovem é tomada por uma
sensação estranha, que ela define como uma “tristeza inexplicável e profunda”.
“Parece que a pessoa que eu era no passado foi tirada do meu corpo e colocaram
uma outra no lugar”, ela explica. “Eu não me reconheço mais.” Martini tentou
suicídio duas vezes no último ano e foi salva pelo marido.
Em um estudo publicado
no ano passado, pesquisadores norte-americanos e britânicos descreveram, ao
todo, 203 sintomas de Covid longa em diversas áreas (dermatológica, pulmonar,
gastrointestinal, neuropsiquiátrica etc). Foram coletadas respostas de 3762
pacientes de 56 países. Quase metade dos participantes apresentaram dificuldade
para encontrar as palavras corretas e problemas de comunicação, como os de
Martini. Mais de 70% tiveram problemas de memória. Pouco mais de 60%
apresentaram dificuldade para pensar. “Disfunção cognitiva e de memória, junto
com outros sintomas neuropsiquiátricos comumente reportados, podem indicar
maiores problemas neurológicos envolvendo o sistema nervoso central e
periférico”, afirma o artigo.
Alguns participantes
reportaram alucinações visuais e auditivas. Depressão, ansiedade e irritabilidade
foram as maiores sequelas no subgrupo de “emoções e comportamento”. Os
pesquisadores também relataram a ocorrência de apatia, despersonalização e
agressividade. Na Califórnia, ficou famoso o caso de um menino de 14 anos que
desenvolveu psicose depois de ter Covid. Cerca de 10% dos participantes do
estudo apresentaram tendências suicidas. “O tamanho da encrenca nós só vamos
saber depois”, reconhece o patologista Paulo Saldiva. “Já temos muita gente
incapaz no país por acidente de trânsito e violência. Vamos ter uma carga
grande de pessoas incapazes por causa da Covid – pelo menos é o que se espera.”
São pessoas que vão precisar de assistência domiciliar, hospitalar, financeira
e psicológica. Por enquanto, é impossível avaliar a dimensão do problema e quais
serão as consequências no médio e longo prazo. Mas os pesquisadores têm cada
vez mais certeza de que a Covid, essa caixinha de surpresas, é diferente de
tudo que a ciência já viu.
Os pesquisadores da USP,
que analisaram o cérebro de pacientes graves, agora se dedicam a um estudo com
pacientes com Covid que não precisaram de internação em UTI – incluindo os
infectados com a variante Ômicron. Isso porque parte das lesões identificadas
no estudo recém-publicado poderiam estar relacionadas ao tempo de internação e
às estratégias de prolongamento da vida na UTI, que podem ser prejudiciais ao
corpo. O foco agora são os pacientes que não estavam com a forma grave da
doença, que se recuperavam casa e morreram de repente. “Já temos dois casos,
que a gente ainda não estudou a fundo, que desenvolveram cefaleia e o quadro
principal da Covid foi cerebral”, conta o patologista Paulo Saldiva. “Isso
acontece mais com jovens, crianças e adolescentes, que têm uma formação
cerebral mais primária.” São aqueles que não passaram pela catástrofe da UTI,
não ficaram dias sedados, não fizeram diálise e morreram exatamente por
complicações cerebrais. Essas vítimas vão dar uma pista do tamanho do estrago
que o coronavírus pode fazer num cérebro saudável. “Com esse estudo a gente vai
poder ver que a inflamação da UTI não foi o principal causador dessas lesões”,
diz Saldiva.
Um outro estudo publicado esta
semana na revista Nature mostrou que a Covid pode
causar perda de substância cinza – a parte mais externa do cérebro, formada
pelos neurônios e responsável pelo processamento de informação. Os
pesquisadores compararam tomografias (antes e depois da infecção) de pacientes
de 51 a 81 anos que tiveram a doença e pessoas que não se infectaram. Algumas
áreas do cérebro foram simplesmente reduzidas em pacientes que tiveram Covid –
inclusive a forma leve da doença. Os cientistas alertaram que as implicações
dessas mudanças cerebrais ainda são incertas: ou seja, não é possível concluir
que as alterações identificadas afetam a memória, o pensamento e outras funções
cerebrais. E não se pode afirmar também se os danos são duradouros. O principal
achado desse estudo, que envolveu a análise de mais de setecentos exames, foi a
confirmação de que a doença de fato altera a anatomia cerebral. Mas o que isso
significa, na prática, ainda é um mistério. “A gente está estudando a mesma
doença há dois anos – e estamos levando um baile dela”, lamenta o patologista
Paulo Saldiva.
“As pessoas falam ‘para
de ficar assim, você deveria estar feliz porque sobreviveu, muita gente não
teve essa oportunidade’. Mas é desesperador não conseguir recuperar a vida que
eu tinha antes”, diz Martini. A médica que a acompanhou no pós-Covid, num posto
de saúde de Chapecó, disse que as sequelas poderiam passar com o tempo. Agora
só resta esperar. Isadora Martini já está há um ano com os sintomas e não dá
para garantir quando – ou se – a vida voltará ao normal. Como o tratamento é
feito pelo SUS, é preciso que a médica solicite formalmente uma consulta com um
neurologista. Até agora, relata Martini, a clínica geral não viu necessidade de
encaminhá-la a um especialista. “Se eu tivesse dinheiro para uma consulta
particular, com certeza eu já teria ido para investigar, porque agora eu estou
no escuro”, ela diz.
Mas os neurologistas
também estão de mãos atadas. A estudante Nicoli de Matos, de 22 anos, procurou
um especialista em Porto Alegre depois que começou a sentir dificuldade para se
lembrar das palavras. Ela sequer foi internada quando teve Covid, no começo de
2021, desenvolveu apenas a forma leve da doença. Mesmo assim, as sequelas
neurológicas vieram com tudo. “Eu não consigo mais fazer os trabalhos da
faculdade, nem falar em público seguindo uma linha de raciocínio”, diz ela.
Alguns meses depois da doença, Matos começou a perceber que esquecia as
palavras com uma frequência preocupante e se embaralhava na hora de falar.
Antes da doença, ela tinha diagnóstico de depressão e fobia social, mas os
sintomas pioraram significativamente no pós-Covid. A ponto de ela começar a
ficar com vergonha de participar das aulas da faculdade de Jornalismo. “Deixei
de cursar várias disciplinas e já pensei até em desistir”, conta.
Depois da tomografia, em
fevereiro deste ano, o neurologista foi direto: ele simplesmente não sabia o
que fazer para melhorar o quadro da estudante gaúcha. Os exames de imagem não
mostraram alterações no cérebro. Os sintomas neurológicos podem ficar por
poucos meses ou muitos anos, ninguém sabe dizer. Não era a primeira vez que ele
atendia pacientes com sequelas neurológicas da Covid, e a resposta era a mesma
para todos. “Nesse momento eu fiquei com medo. Quando o neurologista diz que
ele não tem noção do que pode ser feito, é de apavorar”, diz ela. “Na época eu
fiquei feliz porque foi um caso leve. Eu não imaginava que ia ficar assim,
agora tenho medo do futuro.” Nicoli de Matos decidiu fazer novos exames e
insiste em voltar ao neurologista em busca de respostas. Além dela, a mãe e a
tia também ficaram com sequelas neurológicas e hoje têm problemas de memória.
Isadora Martini não
encontra apoio na família. Muitos tentam diminuir a gravidade dos sintomas
relatados por ela. “Meu marido fala que é coisa da minha cabeça. Eu digo: ‘sim,
é literalmente coisa da minha cabeça’”, conta, rindo. A jovem encontrou
conforto num grupo de Facebook dedicado a pessoas que sofrem com as mesmas
sequelas. Um desses grupos tem quase 40 mil membros, que desabafam sobre sua
condição. “Alguém de vcs está com dificuldades para reconhecer as coisas?”,
questionou Martini em um desses fóruns. A postagem teve 71 comentários. “Às
vezes eu sinto como se não fosse mais eu”, respondeu uma mulher. “A pessoa me
fala uma coisa e se pedir pra repetir eu não consigo formular a frase toda”,
comentou outra. “É uma coisa que me conforta, sabe?”, diz Martini sobre o grupo
online. “É como se fosse um alcoólicos anônimos. As pessoas desabafam. Eu já
sei o que eu tenho, mas é confortante saber que eu não estou sozinha, que está
todo mundo assim.” Como se trata de uma doença relativamente recente, é incerto
o futuro do batalhão de sequelados que a Covid deixou. Até esta semana, o
Brasil somou 654 mil vítimas da doença. Ao todo, foram 30 milhões de
infectados. Em relação aos sobreviventes, não se sabe quantos carregam sequelas.
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Veja: Por que Sérgio Moro não decola? https://bit.ly/3Ip1ywJ
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