12 janeiro 2023

Extremismo importado dos EUA

Como os EUA passaram a exportar 'extremismo antigoverno'

Dois anos depois de uma multidão de apoiadores do então presidente Donald Trump ter invadido o Capitólio, sede do Congresso americano, para tentar impedir a certificação do novo eleito, Joe Biden, analistas que estudam extremismo dizem que o movimento antigoverno que ganhou força nos Estados Unidos continua servindo de inspiração ao redor do mundo, e citam o Brasil como exemplo.
Alessandra Corrêa, BBC Brasil

Apesar das várias diferenças entre os dois países e de aspectos históricos e políticos que são únicos do Brasil, muitos observadores veem semelhanças profundas entre a violência que abalou Washington em 6 de janeiro de 2021 e a invasão e depredação das sedes dos três poderes em Brasília por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro no último domingo (8/1).

"Os Estados Unidos se tornaram um exportador de extremismo antigoverno e antiautoridade, inspirando e motivando simpatizantes em muitos países ao redor do mundo", disse o Soufan Center, centro de pesquisas que monitora ameaças extremistas, em um documento publicado na semana passada para marcar o segundo aniversário do ataque ao Capitólio.

"Da América Latina à Europa, (esses simpatizantes) têm buscado uma causa comum com os extremistas baseados nos Estados Unidos, apegando-se a uma ladainha de queixas de extrema-direita em um esforço para promover posições antigoverno em seus países de origem."

Em entrevista à BBC News Brasil, o autor do documento, Colin Clarke, pesquisador sênior do Soufan Center, afirma que, nos últimos dois anos, os eventos de 6 de janeiro de 2021 se transformaram em um símbolo e um modelo para extremistas em outros países.

"Isso se tornou uma espécie de protótipo para outros extremistas antigoverno invadirem o Congresso (em outros países)", diz Clarke à BBC News Brasil. "E muito disso é baseado em desinformação, negacionismo eleitoral e teorias da conspiração."

Clarke diz que é possível ver a inspiração do movimento extremista americano em ações recentes em diferentes países, desde o Canadá, onde caminhoneiros bloquearam estradas em protestos que duraram semanas, até a Alemanha, onde mais de 20 pessoas foram presas em dezembro por suspeita de planejar invadir o prédio do Parlamento e derrubar o governo. E, agora, também o Brasil.

"O 6 de janeiro de 2021 pode ter sido uma insurreição fracassada na perspectiva dos envolvidos em combate ao terrorismo, já que conseguiram evitar que as coisas fossem ainda piores", observa Clarke.

"Mas, posso dizer, com base no monitoramento de chats no (aplicativo de mensagem) Telegram de vários indivíduos que apoiaram a insurreição, que eles não consideram um fracasso. Eles na verdade veem totalmente como uma vitória. Porque o símbolo que dá a esta rede global de extremistas antigoverno é palpável."

A diretora de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, Avril Haines, disse recentemente que, apesar de não haver, até o momento, evidências de um "nexo operacional" entre os extremistas domésticos americanos e atores no exterior, existe "uma espécie de nexo ideológico de redes sociais".

Clarke também ressalta que não há no momento evidências de coordenação prática entre os invasores brasileiros e membros de grupos americanos.

"Não é como se tivéssemos evidências de que eles estão coordenando ou se comunicando com os Oath Keepers ou os Three Percenters", afirma, citando dois grupos extremistas de extrema-direita dos Estados Unidos.
"Acredito que (o 6 de janeiro) é uma inspiração, antes de mais nada", salienta. "Mas vimos comunicação entre figuras como Steve Bannon (que foi estrategista de Donald Trump), seja lá como você queira rotulá-lo, e pessoas no Brasil. Então há uma conexão política aí."

Segundo Clarke, o monitoramento de chats no Telegram revela que extremistas de extrema-direita nos Estados Unidos estão "vibrando" com o que aconteceu em Brasília no último domingo.

"Porque isso gera solidariedade com pessoas na América Latina. E, quando coisas assim acontecem no exterior, unem essas várias redes (extremistas) e fazem com que pareçam um movimento maior do que na verdade são", observa.

Semelhanças e diferenças

O professor de relações internacionais Carlos Gustavo Poggio, do Berea College, no Estado do Kentucky, observa que a invasão ao Congresso americano é um problema que não se resume aos Estados Unidos, diante do papel de liderança desempenhado pelo país no cenário global.

"No momento em que a democracia americana começa a se deteriorar, a gente começa a ver uma série de outras consequências, são ondas que vão contaminando", diz Poggio à BBC News Brasil.

"Sem dúvida o sujeito olha e fala 'se invadiram o Congresso americano, por que eu não posso invadir o Congresso do Brasil?'. Isso é um elemento que me parece evidente", afirma Poggio, que é especialista em relações entre Brasil e Estados Unidos.

O professor ressalta que, no caso brasileiro, ainda é preciso descobrir quem financiou e quem está por trás da invasão. "Isso precisa ser descoberto, quem são esses grupos, como operam, qual sua origem", salienta.

Poggio ressalta entre as semelhanças entre os dois episódios "o fato de as redes sociais e a internet servirem como uma ferramenta importante de articulação desses grupos mais radicais".

O professor conta que, em um artigo recente, analisou como "o Brasil virou uma espécie de multiverso americano com dois anos de atraso".

"Desde que Bolsonaro foi eleito, dois anos depois de Trump, no Brasil tudo foi acontecendo igual (aos Estados Unidos), só que com dois anos de atraso", compara.

Mas Poggio cita diferenças importantes entre as invasões nos Estados Unidos e no Brasil, entre elas o papel de Trump e Bolsonaro e os objetivos dos manifestantes.

A invasão ao Capitólio ocorreu em uma quarta-feira, quando o Congresso se reunia para contar os votos do Colégio Eleitoral e confirmar a vitória de Biden sobre Trump na eleição, realizada dois meses antes. Trump já havia sido derrotado nas urnas, mas ainda estava no cargo.

No episódio brasileiro, as invasões, em um domingo, tiveram alvo mais amplo, ocupando o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro, derrotado na eleição de outubro por Luiz Inácio Lula da Silva, já havia deixado o cargo e estava fora do país, no Estado americano da Flórida.

"A diferença central é que o presidente não era o Bolsonaro, era o Lula. O Bolsonaro estava na Flórida", salienta Poggio.

"A agenda das pessoas que invadiram o Congresso americano era bastante clara, eles queriam impedir a certificação de Joe Biden. Mais do que isso, foram pessoas diretamente estimuladas e lideradas por Donald Trump", diz o professor.

No mês passado, depois de quase dois anos de trabalho, uma comissão especial da Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) que investigava o papel de Trump no episódio acusou o ex-presidente de incitar uma insurreição e de obstruir procedimentos do Congresso, entre outros crimes federais relacionados ao ataque.

Segundo essa comissão, formada por sete democratas e dois republicanos, desde o dia da eleição Trump disseminou "alegações falsas de fraude", que "provocaram seus apoiadores a cometer violência em 6 de janeiro (de 2021)". Os deputados concluíram que o então presidente acompanhou a invasão do Capitólio por horas, pela TV, antes de tentar acalmar a situação.

"No caso brasileiro, Bolsonaro se tornou alguém que não teve um processo de liderança direta (no dia da invasão), serviu como inspiração mais do que uma liderança direta", avalia Poggio. "O que é preocupante por um lado, porque demonstra que o bolsonarismo talvez esteja se descolando do Bolsonaro."

Poggio destaca que o objetivo dos invasores em Brasília era "criar caos para poder chamar uma intervenção militar" e compara o papel dos militares nos dois países.

"Os Estados Unidos são uma democracia estável, a mais antiga do mundo. O Brasil é uma democracia jovem com histórico de golpes militares. Então, temos os dois (episódios) com inspiração golpista em certa medida, mas com objetivos distintos."

Futuro

Clarke, do Soufan Center, descreve o 6 de janeiro de 2021 como "um grito de guerra para extremistas em todo o mundo", e diz que o Brasil não deve ser o último país a ver eventos do tipo.

O pesquisador compara as estratégias dos grupos extremistas domésticos americanos às dos jihadistas que promovem a chamada "guerra santa" muçulmana.

"Eles (os jihadistas) não fizeram (de foco de sua mensagem) o que estava acontecendo no Egito, na Síria, ou no Afeganistão. Era sobre o que estava acontecendo com a comunidade muçulmana global, ao redor do mundo. Eles foram muito bons em tornar sua retórica transnacional, e é isso que esses extremistas antigoverno estão tentando replicar de várias maneiras", diz Clarke.
Clarke considera a ameaça representada pelo extremismo de extrema-direita "muito séria". "E, em muitos casos, o que torna esses grupos tão perigosos é que têm ligações com partidos políticos que estão em diferentes governos ou parlamentos", afirma.

Para o pesquisador, cada novo episódio de violência, como o visto no Brasil, pode servir de incentivo para outros extremistas. "Eles dizem, 'se eles podem fazer, nós também podemos'", destaca.

No caso específico do Brasil, Clarke diz que será crucial ver como os invasores serão tratados.

"Se houver consequências sérias pelo que ocorreu, é geralmente algo positivo, porque vai dissuadir outros de seguir o exemplo", afirma.

"Mas se as penas forem muito brandas, isso pode encorajar comportamento semelhante não apenas no Brasil, mas em outros lugares."

Verso e reverso do que acontece https://bit.ly/3Ye45TD

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