A pobreza como caso de polícia
Retirar barracas das ruas,
sem ouvir as pessoas, não é trabalho humanizado
Padre
Julio Lancellotti
Vigário
episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo
Paulo
Escobar
Sociólogo,
é coordenador do Observatório de Aporofobia Dom Pedro Casaldáliga
Folha de S. Paulo
Escrevemos esta réplica ao artigo "Rua não é endereço, e
barraca não é lar" (26/2), assinado nesta Folha pelo
prefeito Ricardo Nunes (MDB),
como pessoas que há décadas e diariamente convivem com a população de rua na
cidade de São Paulo.
O prefeito começa o texto dizendo que "o objetivo não é recolher barracas,
mas reconstruir vidas de parte de uma população empurrada para as ruas".
Nós vemos que, infelizmente, o objetivo tem sido, sim,
recolher barracas de quem nada possui, pois, em uma metrópole
que não dispõe de uma política habitacional que seja acessível aos mais pobres,
qual é então a casa disponível para aqueles que perdem suas barracas?
Acreditamos que alternativas de moradia, ou a casa primeiro, são
sinônimos de autonomia e
dignidade, sem uma ONG tutelando (pois o prefeito afirma no artigo que há
"trabalho sério, sem maquiagem, com foco na autonomia").
Reconstruir vidas a partir de que lugar?
A reconstrução tem que levar em consideração o que essa população precisa,
escutando as vozes nas ruas, a médio e longo prazo —e não somente quando as
eleições se aproximam.
Conforme os números do prefeito, os dados gerados pela sua
gestão dizem que há 20 mil vagas em albergues. Segundo a Comissão
Extraordinária de Direitos Humanos da Câmara Municipal, em agosto de 2022 eram
17.107 leitos na capital. No fim de setembro de 2022, os albergues emergenciais
de inverno fecharam.
O último
censo da prefeitura, de janeiro de 2022, apontava
que eram 31.884 pessoas morando nas ruas —sem entrar na série de problemas
metodológicos do levantamento, pois a UFMG apontou em janeiro deste ano que, de
acordo com o CadÚnico, são 48 mil nessa situação.
Se há 20 mil leitos e, no dia de hoje, todas as pessoas
decidissem seguir para essas vagas (que o prefeito afirma dispor), onde
ficariam as outras 11.884 que sobrariam?
O prefeito cita no artigo que "o direito de aceitar acolhimento ou
não tem de ser respeitado, assim como o direito de ir e vir de todos que vivem
ou transitam na nossa cidade". Mas há também o direito de recusar o
acolhimento de uma rede de albergues, tutelada por ONGs e seus interesses, além
da precariedade de muitos desses locais —geralmente, quem não aceita é
reprimido.
Ao falar em "direito de ir e vir", o prefeito
incentiva a aporofobia [aversão
aos pobres] no restante da população. Fica a sensação de que as pessoas estão
na rua porque querem, como se o problema central da capital paulista fossem as
barracas. As mesas de bares nas calçadas, festas fechando as vias e grades em
frente à prefeitura também não interrompem esse direito de ir e vir?
"(...) parte de uma população empurrada para as ruas", diz no artigo.
Empurradas por quem ou pelo quê? Um cenário sistêmico de descarte, de pobreza contínua,
de uma estrutura que empobrece milhões em detrimento da riqueza de uns poucos.
Esses cidadãos não brotaram de um dia para o outro nas ruas de São Paulo; são
histórias variadas e diversos tipos de violências sofridas.
Infelizmente, as alternativas citadas pelo prefeito são mais do
mesmo. São de tutelas, únicas e não variadas, pois seguem uma mesma lógica,
pensada sem levar em consideração a pluralidade que há nas ruas, a diversidade
de pessoas que moram nas calçadas, sem a autonomia que todos desejamos para
nossas vidas.
O prefeito fecha com "não podemos ser míopes nem tapar o
sol com a peneira para os problemas. Por isso, de cara limpa e alma tranquila,
sei que estamos caminhando na direção certa (...) junto com uma grande
equipe". Se não conhecemos a realidade, aí sim corremos o risco de sermos
míopes ou de tapar o sol com a peneira. Não é possível ter a alma tranquila
quando milhares são destinados a morar em barracas ou reprimidos todos os dias
pela atual gestão. Quase não vemos sua "grande equipe" nas ruas. A
cabeça pensa onde pés pisam.
Mesmo pensando com a lógica da administração municipal, o número
não fecha. Lógica vertical e cheia de contradições, numa cidade que não tem
alternativas reais de habitação e autonomia. O que sobra para os que ficam do
lado de fora? Não é o respeito que o prefeito aponta; os que ficam de fora
sofrem repressão e violência.
A pobreza como caso de polícia —isso não é trabalhar de forma
humanizada nem respeitosa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário