Para o aniversário do Recife e de Olinda
Os olhos que recuperam o passado não se deleitam nele, porque seguem para
a transformação da cidade além do espaço físico, porque atingem os gostos e
costumes do Recife
Urariano Mota*
As cidades do Recife e Olinda têm seu aniversário nesse 12
de março. Tão próximas se encontram, a cerca de 8 quilômetros uma da outra, que
ao escrever o Dicionário Amoroso do Recife, eu sabia que alcançava também
Olinda. São cidades diferentes, mas tão semelhantes, que se tornaram irmãs,
porque seus pais têm uma história comum. Como falar no frevo, como falar do
maracatu, como falar de literatura, sem que as duas se deem as mãos? Como falar
sobre revoluções pernambucanas sem que Olinda e o Recife não estejam lado a
lado?
O Hino de Pernambuco que canta “Salve ó terra dos altos
coqueiros”, que são a paisagem identidade de ambas, bem sabe que “A República é
filha de Olinda”
Eu não conheço pernambucano que não se emocione feito louco ao ouvir esse hino. Em “A mais longa duração da juventude”, o Gordo levantou todo bar A Portuguesa pela madrugada, na ditadura, quando cantou como um recado cívico:
“Agora, refletindo, é que compreendo o motivo do nosso amigo se levantar da mesa onde bebemos, e em posição respeitosa cantar alto o Hino de Pernambuco. “Salve ó terra dos altos coqueiros…”. Foi eletrizante. O bar inteiro se levantou. Foi de embriagar, ao delírio, ver a pequena multidão de bêbados cantando em uma só voz, todos em pé, num coro comovente, toda a Portuguesa sob a regência do Gordo:
‘Coração do Brasil, em teu seio
Corre o sangue de heróis – rubro veio…’
E no fim, o silêncio. Ainda não era moda tudo aplaudir em qualquer ocasião. Pelo contrário, era mais costume o afeto calado, que se manifestava em bomba ou silêncio. Quando acabou aquele instante cívico no álcool, todos nos sentamos. Por que o Gordo cantou o Hino de Pernambuco na madrugada? Cantou para o povo que não traía quem o defende, penso”.
Mas eu queria apenas falar do aniversário das duas cidades e vou em outros caminhos. Por isso, mais sob controle volto às linhas iniciais do Dicionário Amoroso do Recife.
“Escrevo para humanos a humanidade do Recife. A clareza, se felicidade eu tiver, virá daí. A exatidão, se ocorrer, virá da verdade com que o dicionarista ousou imprimir nos verbetes, ou nas definições da alma da cidade que fala à semelhança de verbetes.
Os autores de dicionários falam sempre que, em relação à primeira edição, centenas de milhares de alterações foram introduzidas em todos os elementos componentes (com o perdão da rima, mas dicionarista raro sabe escrever) da edição anterior. Mas neste caso, em que a primeira edição se faz agora, as alterações se registram nas mudanças da cidade. Como no deslocamento do que antes era ‘o centro do Recife’, ou no sentido das translações do carnaval do Recife, que cresceu pela incorporação do carnaval de Olinda. Ou então no sonho do que foi e teria sido o striptease no Teatro Marrocos, lugar de perdição pelo que dele imaginavam os jovens que não tinham 18 anos ou dinheiro para vê-lo. Os olhos que recuperam o passado não se deleitam nele, porque seguem para a transformação da cidade além do espaço físico, porque atingem os gostos e costumes do Recife.
Para sair do analítico: este sotaque, este gosto, este amor pelas coisas pernambucanas, todas as características do que somos, vêm da história, que faz o nosso modo de ser até nas ações de que não nos damos conta. Essa defesa da amizade, esse conversar tocando nas pessoas, essa voz que fala ao telefone como se gritasse para ser ouvida do outro lado do mundo, esse afeto com cara de grossura no que é mais sensível que pétala de flor, esta vergonha ou pudor de falar ‘te amo bem mais que a mim mesmo’, não nasceram com a gente. Nasceram antes, foram construídas antes de Frei Caneca, foram sedimentadas pelos rebeldes que substituíram o vinho pela cachaça, desde o tempo em que Pernambuco era a maior dor de cabeça do império português.
Em resumo, enfim, para o rascunho de explicação deste dicionário amoroso: todos cantam a cidade onde nasceram. Mas eu, que não tenho outra, canto o Recife”.
Assim tem sido.
*Jornalista, escritor
Um comentário:
Grato uma vez mais, Luciano Siqueira!
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