Políticos como criaturas e não criadores do
humor
O deputado Nikolas Ferreira
deturpou seu instrumento de fala para uma tentativa fracassada e patética de
manifestar seus preconceitos usando de um suposto humor.
Thiago Modenesi*
O recente episódio do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) trouxe à baila vários debates. Um parece não ter sido tão percebido pelo grande público. A tentativa de alguns políticos, em particular aqueles oriundos das redes sociais e canais de YouTube, de dialogar com a população através do humor e do escracho não é o que se espera de um parlamentar numa sociedade democrática.
Explico: alguns argumentam que a narrativa cômica e debochada foi marca das críticas feitas historicamente pelos setores em tese “progressistas”, contestadores dos sistemas e governos vigentes, ledo engano. Esse papel foi cumprido por humoristas, chargistas, caricaturistas e jornalistas, eles é que desempenharam e desempenham até o presente magistralmente a função de retratar o político ou o fato político e fazer chacota dele, buscando uma reflexão sobre o mesmo, expondo algo em geral grave de maneira bem humorada à população.
É assim há séculos. Na Europa os jornais sempre ostentaram nas suas charges críticas aos governos, aqui no Brasil também, desde que há imprensa no nosso país os chargistas figuram nas páginas de nossas publicações. No geral, a crítica sempre é feroz, mordaz, algumas vezes considerada excessiva, há os que falam isso do humor francês, por exemplo, que tem como um dos seus porta-vozes marcantes o Charlie Hebdo, mas, mesmo nessa publicação, ela é feita por humoristas, chargistas e jornalistas.
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Já o humor de péssimo gosto, construído na lacração, preconceito e tentativa de ridicularizar e dar tom pejorativo a setores minoritários da sociedade que já sofrem recorrentemente com discriminação, é criminoso, tira o político de sua função, viola o seu lugar de fala, fere a Lei e o Código de Ética da Câmara dos Deputados. Não se trata de liberdade de expressão, pois o parlamentar não expressou uma opinião, mas deturpou seu instrumento de fala para uma tentativa fracassada e patética de manifestar seus preconceitos usando de um suposto humor, tendo como público-alvo os que o seguem e admiram, ali não estava um parlamentar, mas sim um pretenso humorista ou stand-up.
As coisas tem seu lugar numa democracia, tudo tem seu papel, isso não é estanque, as pessoas não estão presas a esses papéis, mas espera-se que honrem e respeitem os votos que tiveram. Deputado legisla, humorista faz charge e cartuns criticando políticos, assim é a vida numa sociedade democrática. É célebre a frase de Millôr Fernandes de que “não há humor a favor”, no caso aqui se refere aos políticos e aos governos, mas o humor proferido por parlamentar, contra uma parcela da sociedade que a Constituição obriga a ele e a todos nós respeitarmos, é crime, simples assim, e é passível sim de cassação do mandato.
E quanto a tão propalada liberdade de expressão? Nenhum de nós é plenamente livre, abrimos mão de parte de nossa liberdade quando decidimos viver sob a égide do Estado, com governo, instituições e tudo mais, trocamos isso por segurança e estabilidade, e isso é uma invenção que antecede o capitalismo, mas que tem tudo a ver com ele. A ideia em qualquer Estado democrático é que precisamos nos colocar no lugar dos outros, respeitar e entender que somos parte de um conjunto profundamente diversificado, miscigenado, que reúne milhões de singularidades formando pluralidade.
Ao deputado Nicolas resta cumprir a função que os seus votos o delegaram de maneira altiva, respeitosa e dentro da Lei, se não conseguir pode ser cassado ou renunciar e optar por trabalhar de palhaço em algum circo de seu estado de origem… [Ilustração: Henfil]
*Doutor em História, professor
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