10 agosto 2023

Controle do dinheiro

Para onde vai nosso dinheiro

As finanças não constituem um “setor”; são uma dimensão de tudo o que fazemos. Mas por meio de seu controle é que se decide se vamos financiar saúde e educação ou fortunas de especuladores. O controle do dinheiro constitui o centro da política
Ladislau Dowbor/Le Monde Diplomatique


 

Somos invadidos por números sobre a economia, previsões detalhadas, o humor dos mercados, os últimos dados da inflação. Contudo, não nos oferecem o pano de fundo, o quadro geral no qual se dão variações. Dados fragmentados do cotidiano não permitem a compreensão de nossos desafios. Porém, o que podemos chamar de marco estrutural da economia não é complexo nem exige estudos de economia para sua compreensão. O fio condutor é até clássico: follow the money, siga o dinheiro.

Uma deformação estrutural

O primeiro ponto, que tenho enfatizado em vários textos, é que o mundo não é pobre. O que produzimos de bens e serviços por ano, o PIB mundial, equivale a US$ 100 trilhões, o que, dividido por 8 bilhões de habitantes, nos dá o equivalente a US$ 4.200 por mês por família de quatro pessoas. Ou seja, mais de R$ 20 mil. O Brasil não está longe desse nível: os R$ 10 trilhões de nosso PIB equivalem a R$ 16 mil no mesmo critério – o suficiente para todas as famílias viverem de maneira digna e confortável. E em particular para podermos liquidar o imenso sofrimento de pessoas que passam fome, que dormem nas ruas ou em campos de refugiados pelo mundo. É tão simples assim: com tantos avanços científico-tecnológicos, entramos na era da suficiência. 

O problema central se desloca para o nível da organização política e social que preside as decisões sobre o que produzimos, para quem e com que impactos ambientais. Pois é de maneira tecnologicamente eficiente que avançamos na chamada catástrofe em câmara lenta, ao destruirmos a natureza, ao agravarmos a desigualdade, ao manejarmos nossos recursos por meio do caótico sistema financeiro. Sabemos o que deve ser feito, objetivo resumido no tripé de uma sociedade economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Temos inclusive o detalhamento nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Temos os recursos, as tecnologias e o acordo sobre o que deveria ser feito. Porém, seguimos avançando para o desastre. A questão central é de governança, do processo decisório da sociedade.

O Brasil oferece nesse sentido uma compreensão dos mecanismos de deformação, até pelo exagero dos absurdos. Vamos aqui ver passo a passo como se dá o dreno improdutivo. No centro, está a dinâmica do dinheiro. As finanças não constituem um “setor”, são uma dimensão de tudo o que fazemos. Mas por meio de seu controle é que se decide se vamos financiar saúde e educação ou fortunas de especuladores. O controle do dinheiro constitui o centro da política. A alma do negócio, dizem alguns.

O dreno financeiro 

Podemos começar com a taxa Selic, instituída em 1995 e que paga hoje 13,75% aos que investiram em títulos da dívida pública. No mundo, essa taxa é negativa ou em torno de 1% ou 2%, descontada a inflação. No Brasil, descontada a alta de preços, é da ordem de 8,5%. Em 2023, o governo vai pagar em torno de R$ 740 bilhões aos detentores dos títulos, essencialmente o 1% mais rico, bancos e aplicadores financeiros institucionais. Isso é equivalente a cerca de cinco anos de Bolsa Família, mas, em vez de sustentar mais de 50 milhões de pessoas, é para a elite financeira. É um dreno líquido de recursos de nossos impostos equivalente a cerca de 7% do PIB. 

Um segundo dreno resulta dos juros cobrados sobre dívidas das famílias – 59,9% em maio.1 Esse nível de juros sobre um estoque de crédito livre de R$ 1,8 bilhão representa um dreno da ordem de R$ 1,1 trilhão, cerca de 10% do PIB. Lembremos que o nível da inflação é da ordem de 5% e que a taxa de juros equivalente na Europa é da ordem de 4% a 5% ao ano. O impacto é desastroso, com 79% das famílias atoladas em dívida, e 71 milhões de adultos inadimplentes. O endividamento generalizado paralisa a demanda por produtos de consumo de massa, ainda que sustente o consumo de luxo no topo da pirâmide social.

No caso das empresas, com um estoque de crédito de R$ 1,3 bilhão e uma taxa de juros de 23,8%, o dreno é da ordem de R$ 310 bilhões, 3% do PIB. Os juros equivalentes entre os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) são da ordem de 2% a 3% ao ano. O impacto é muito forte e explica grande parte da desindustrialização do país. O endividamento das famílias reduziu a demanda, e as empresas não têm para quem vender. A taxa de juros para investimento é proibitiva. E os empresários que dispõem de capital próprio têm a opção de comprar títulos públicos, com risco zero e alta remuneração. É um contexto que desestimula qualquer investimento produtivo. 

Lembremos que o último ano de crescimento significativo do PIB foi 2013, 3%. As razões são evidentes, pois a capacidade de investimento do Estado é drenada em cerca de 7% do PIB, a demanda das famílias em 10% e o investimento empresarial em 3%. Não há política econômica que resista a esse nível de dreno improdutivo. Lembremos também que todas essas taxas de juros constituiriam crime de usura, não fossem os bancos ter conseguido tirar o artigo 192 da Constituição, no início de 2003. 

A deformação tributária

Em segundo plano temos os recursos financeiros que não são drenados, mas que deixam de entrar. Trata-se da evasão fiscal, que atingiu entre R$ 460 bilhões e R$ 600 bilhões em 2020, representando como ordem de grandeza 6% a 8% do PIB.2 A facilidade das multinacionais em definir sua sede fiscal, a amplitude do setor informal e a fragilidade do controle do comércio externo explicam a dimensão, provavelmente subestimada, mas é mais uma fragilização da capacidade do Estado de promover políticas sociais, financiar infraestruturas e dinamizar a economia.

Aos recursos que deixam de entrar no Tesouro temos de acrescentar as renúncias fiscais, da ordem de R$ 525 bilhões em 2022, segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco). São mais 5% do PIB que poderiam ser mais bem direcionados, ainda que aqui se trate de opção dos governos, legal, mas dependente em boa parte de favores e de equilíbrios políticos, em vez de alocação racional de recursos. Entre evasão fiscal e renúncias fiscais, temos aqui mais de 10% do PIB que fragilizam a economia. 

Em terceiro plano temos a irracionalidade do sistema tributário. Um monstro de grande complexidade foi sendo construído a partir de momentos de poder de interesses variados, sem nunca ter sido possível juntar suficiente força para racionalizar o conjunto. A aprovação da reforma tributária de 2023 constitui sem dúvida um avanço em termos de simplificação, mas não tocou senão marginalmente no fato principal: em vez de corrigir a desigualdade, com impostos progressivos, mantém o caráter regressivo, o que é catastrófico num país em que a desigualdade é o entrave principal ao desenvolvimento. Enquanto se sedimentam as implicações da presente reforma, as principais deformações permanecem. 

Talvez a mais gritante deformação seja a isenção de lucros e dividendos distribuídos. Desde 1995, os bilionários e a alta classe média simplesmente não pagam impostos, a pretexto de que suas empresas já pagam. Por outro lado, cerca de metade da carga tributária é sobre o consumo: como a massa da população consome quase tudo o que ganha, termina pagando proporcionalmente muito mais. Desde 1996, com a Lei Kandir, as atividades destinadas à exportação de bens primários e semiprimários são isentas de impostos. Isso reforçou radicalmente a reprimarização da economia, ao favorecer a exportação bruta de soja e outros produtos do agronegócio, de minério da Vale privatizada, de madeira da Amazônia, ao mesmo tempo que o país se desindustrializa. 

O Imposto Territorial Rural (ITR) simplesmente não é cobrado. Isso tem particular importância, pois o Brasil possui hoje a maior reserva mundial de terra agrícola subutilizada. Dos 353 milhões de hectares de estabelecimentos agrícolas (Censo 2017), cultivamos apenas 63 milhões, somando agricultura temporária e permanente. Terra parada, ou radicalmente subutilizada com pecuária extensiva, constitui hoje rentismo imobiliário, pois a terra se valoriza. O MST ter de batalhar para quem queira produzir ter acesso à terra é absurdo. A cobrança efetiva de imposto sobre terra parada levaria os rentistas a produzir ou vender para quem produza. Essa dimensão é importante, pois o sistema tributário não só deveria buscar impacto positivo em termos de justiça, como também estimular o uso produtivo dos recursos. 

A deformação estrutural

Com a reforma, iates e aviões de luxo devem passar a pagar impostos, e o imposto baixíssimo sobre herança deve se tornar progressivo. A simplificação do conjunto ajudará sem dúvida, mas permanece a principal característica: o sistema tributário reforça a desigualdade em vez de corrigi-la e não estimula a atividade produtiva, a não ser no dreno de recursos naturais e na especulação financeira. No caso das exportações primárias, o impacto é o dreno de recursos naturais, cuja exportação em bruto só se justificaria se os lucros gerados fossem utilizados para financiar setores mais avançados, como vários países árabes que usam os recursos do petróleo para financiar o pós-petróleo e setores tecnologicamente avançados. Os impactos ambientais, em termos de perda de cobertura florestal (na Amazônia, mas também no Agreste), de contaminação dos rios e aquíferos, e de esterilização de solo por excesso de química, constituem um retrocesso. São setores de alta tecnologia e pouco emprego, que geram dividendos para os gigantes da intermediação de commodities

Quanto ao setor financeiro, tornou-se essencialmente um dreno. Em vez de lucrar ao fomentar a economia, financiando empresas e consumo, tende a drenar o investimento produtivo em proveito da extração de dividendos. Central nesse processo é a produtividade dos recursos. A tendência é internacional. David Gelles apresenta dados para os Estados Unidos, onde as corporações agora “canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos. Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década esse número subiu (soared) para 93%”. Ou seja, dividendos para os acionistas, esterilização de capital.3

Esses dois setores, a exportação de bens primários e a atividade financeira, estão ligados diretamente ao sistema internacional de gestão de fundos (BlackRock e semelhantes), aos gigantes de intermediação de commodities (ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, por exemplo, para grãos) ou aos grandes bancos (Sifis – Systemically Important Financial Institutions). Drenam o país antes de enriquecê-lo, mas suas atividades são registradas como “produto” na forma atual de cálculo do PIB, disfarçando a paralisia econômica em que nos encontramos. A fome de 33 milhões de pessoas e a insegurança alimentar de 125 milhões nos dão o retrato de uma economia que não só está travada desde 2014, quando se rompeu a fase distributiva, como também deformou o que se produz. 

Atualizar as contas

O presente artigo, mais uma nota técnica que um artigo, visa aproximar números normalmente apresentados separadamente, com fontes dispersas, mas que, no entanto, se referem a uma dinâmica comum: o fluxo financeiro integrado. Em outras palavras, para onde vai o dinheiro. A diversidade das fontes representa uma fragilidade, por empregarem metodologias diversificadas. E temos de levar em conta que alguma parte desse dreno se transforma, sim, em consumo e investimento na economia real. Não tenho esse dado para o Brasil, mas podemos usar como referência o Roosevelt Institute, que calcula que apenas 10% dos lucros financeiros retornam para a economia real. Podemos também nos referir ao trabalho de Mariana Mazzucato, O valor de tudo, que estima que 15% desses lucros (na realidade, rentismo financeiro) voltam para a produção. Mas o que buscamos aqui são ordens de grandeza, e a soma dos diversos drenos não deix a dúvida de que se trata de mais de 20% do PIB esterilizado. É um sistema disfuncional. 

E a análise deveria ser estendida: por exemplo, as perdas causadas pela não cobrança de imposto sobre lucros e dividendos distribuídos poderiam ser estimadas, tomando como referência a média cobrada nos países da OCDE. É o caso também da não cobrança do ITR, que deveria ser estimada ao confrontar alíquotas e a imensidão das terras paradas ou subutilizadas. A Lei Kandir, que isenta exportações primárias, também gera perdas que deveriam ser quantificadas. Os desvios para paraísos fiscais, montantes canalizados por nossos grandes bancos, poderiam ser avaliadas. Os custos de utilizar o dólar, e não as moedas dos países parceiros, no comércio internacional, deveriam fazer parte também do que chamamos aqui de metodologia de avaliação do fluxo financeiro integrado. De certo modo, trata-se de acoplar, às contas nacionais tradicionais, formas atualizadas de avaliação, acompanhando a nova fluidez dos fluxos, que resulta do fato de a moeda constituir hoje essencialmente uma notação virtual nos computadores, no quadro do high-frequency-trading, sem que os mecanismos de regulação tenham sido atualizados. De toda maneira, o volume de desvios evidenciado quando se somam os diferentes drenos já comprova uma deformação sistêmica da arquitetura financeira do país, que se tornou sistemicamente disfuncional.

Para os pouco familiarizados com os mecanismos financeiros que se expandiram nos últimos anos, imagino que fica a dúvida: será realmente tão simples assim que estão se apropriando dos recursos da sociedade por meio da manipulação da taxa Selic, da agiotagem no sistema privado de crédito, da evasão fiscal e da deformação do sistema tributário? A verdade é que o dreno financeiro se tornou descontrolado. E é igualmente verdade que esse sistema é simplesmente imoral. Mas é difícil fazer uma pessoa entender algo quando seus interesses consistem em não entender.     

*Ladislau Dowbor é economista, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de numerosos livros e estudos técnicos, disponíveis no site https://dowbor.org, em regime Creative Commons (acesso gratuito). Uma visão mais detalhada do processo aqui apresentado pode ser encontrada no livro Resgatar a função social da economia (Elefante, 2022).

1 Banco Central do Brasil, “Estatísticas monetárias e de crédito”, 28 jun. 2023.

2 Hamilton Ferrari, “Evasão fiscal no país somou até R$ 600 bilhões em 2020, diz IDV”, Poder360, 11 nov. 2021. O Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional estimou a evasão de 2022 em R$ 626 bilhões. Ver Sinprofaz, “Sonegômetro fecha ano com valor superior a R$ 626 bilhões”, 27 dez. 2022.

3 David Gelles, The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy [O homem que quebrou o capitalismo: como Jack Welch devastou o coração do país e esmagou a alma da América corporativa – e como desfazer seu legado], Simon and Schuster, Nova York, 2022. Ver mais em: https://dowbor.org/2023/06/the-man-who-broke-capitalism.html.

O significado da nota da Fitch Ratings sobre a economia brasileira https://tinyurl.com/224pe2ha
 

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