Duas bandas antagônicas nos mesmos fardamentos
Enio Lins*
Forças armadas fazem parte da história, e estão presentes em quaisquer sociedades desde tempos imemoriais. Até os índios recepcionaram os europeus aqui chegantes com seus guerreiros pintados em gestual marcial.
Por falar em povos originários deste nosso Brasil, o guerreiro nativo era valorizado a ponto de ser literalmente comido em rituais de absorção da valentia, e de outras qualidades, da pessoa armada – assim retratou Hans Staden.
Em 1557, retornado à Alemanha, Hans Staden publicou “História verdadeira ....” contando suas aventuras num Brasil recém-descoberto. Esse livro virou best seller na Europa ao descrever o ritual tupinambá de antropofagia.
MILICOS E A CIVILIDADE
Militares, dependendo do caso, podem ser um mal desnecessário ou um bem utilitário. Na tentativa de golpe em 8 de janeiro, entre fardados, uns participaram da subversão e da desordem, outros garantiram a ordem.
Só para ficarmos do Século XX pra cá, temos exemplos notáveis como Marechal Rondon, Marechal Lott, capitão Sérgio “Macaco”, brigadeiro Othon Correia, Almirante Aragão – a querida Major Elza Cansanção – pessoas do bem e de coragem.
Reconhecendo méritos até em oficiais golpistas de 1964, é-se indispensável ressaltar a capacidade estratégica e firmeza de milicos (de direita) como o general Golbery, general Geisel, coronel Jarbas Passarinho, major Heitor Ferreira...
Não listei nesse rol nenhum nome que tenha tido militância à esquerda, como o capitão Lamarca ou o tenente R2 Osvaldão, muito menos o capitão Luiz Carlos Prestes. Não se trata de puxar a brasa pra sardinha canhota.
Não pretendo sujar essas linhas mais do que o necessário com nomes abomináveis como Ustra, torturador covarde que os próprios comandantes de 64 evitaram, a todo custo, que alcançasse o generalato ainda na ativa.
CONTEMPORANEIDADE DÚBIA
Desde que a maioria do comando militar decidiu distender (como diria Geisel e Golbery) numa “meia-volta volver” ao Estado Democrático de Direito, a direita extremada na caserna pratica a subversão aberta e ofensiva.
Essa dubiedade pode ser aferida nas atitudes dos generais Geisel e Figueiredo, condutores do processo de abertura. Em relação à extrema-direita, Geisel foi duro e disciplinador. Figueiredo foi dúctil e conivente.
Geisel não hesitou em afastar o comandante do II Exército, general Ednardo d’Ávila, em 1976, quando da repetição do desrespeito à ordem de pôr fim aos assassinatos políticos, na sequência das mortes de Vladmir Herzog e Manuel Fiel Filho.
Geisel demitiu sumariamente seu ministro do Exército, general Sílvio Frota, em 1977, quando percebeu a articulação desse poderoso oficial no sentido de manter o poder para a banda podre das Forças Armadas.
LENIÊNCIA E CUMPLICIDADE
Figueiredo, na presidência, cumpriu o compromisso de devolver o poder aos civis, mas conciliou com a escalada de terrorismo orquestrada pela banda podre remanescente dos “porões da ditadura”.
Sob a omissão (ou cumplicidade) do general-presidente Figueiredo, os atentados às bancas de jornais evoluíram até a bomba que matou a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil, Dona Lyda Monteiro, em 27 de agosto de 1980.
Figueiredo foi conivente com o ato terrorista-militar no Dia do Trabalho, em 1981, quando ao manipular uma bomba, o sargento Guilherme do Rosário a explodiu no colo, o matando e ferindo seu cúmplice, capitão Wilson Machado.
Nenhum desses criminosos, afastados ou não de seus postos, foi responsabilizado, muito menos punido de acordo com a Lei. Apesar de desmoralizados, seguiram suas carreiras, poucos optaram pela Reserva.
CONSEQUÊNCIAS DESASTROSAS
No alvorecer da Redemocratização, a banda podre passou a afrontar a banda disciplinada das Forças Armadas. O general Leônidas Pires Gonçalves, fiador do processo democrático e defensor do profissionalismo, virou alvo.
Ministro do Exército do primeiro governo civil depois de 1964, o general Leônidas foi fundamental, inclusive, na garantia da posse de José Sarney, em 15 de março de 1985, frente à impossibilidade de Tancredo Neves assumir o cargo.
Grupelhos fardados passaram a afrontar o ministro do Exército e, naquele quadro de quebra de hierarquia se destacou um oficial carioca, dito “treinado para matar”, que achou melhor jair se contrapondo a seus superiores.
Preso, entre outros delitos disciplinares, por ter ameaçado explodir alvos civis e militares, Jair desdisse o dito e choramingou para não ser punido. Livrou-se, numa sentença não-unânime e seguiu, livre, civil e solto em sua pregação antidemocrática.
Essa conciliação abjeta com um oficial covarde, indisciplinado e com ideias terroristas está dando no que estamos vendo nos dias em curso: militares traficando cocaína em aviões da FAB, oficiais receptando joias, e mais...
Mais, muito mais: oficiais envolvidos em tentativas de fraudar as eleições e em golpes contra o Democracia, oficiais defendendo um ex-militar confessadamente delituoso, acintosamente miliciano, e o saudando como “mito”.
A BANDA SAUDÁVEL
Por outro lado, não foram vistos todos os rostos da maioria de militares que recusaram o convite golpista e se posicionaram ao lado da Constituição, da Democracia, da disciplina e do profissionalismo. Mas estão em maioria, óbvio.
Essa banda saudável das Forças Armadas, porém, não é a questão fundamental para o futuro. Essencial mesmo é enfrentar e extirpar a banda podre. Como metástases espalhadas a partir do grande tumor ditatorial do passado recente, seguem ameaçando a civilidade, corroendo a disciplina e o profissionalismo militar. Este é o risco, o perigo latente.
*Arquiteto, jornalista, cartunista e ilustrador
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