02 junho 2024

França: perda de poder relativo

França: para entender o declínio

A descolonização no pós-guerra, a crescente integração na Europa, o progressivo aumento da influência alemã, a adoção de políticas econômicas neoliberais e a afirmação de novas potências são os fatores que podem explicar o declínio relativo do poder francês 
Wagner Sousa/Le Monde Diplomatique


 

A Segunda Guerra Mundial foi, pode-se dizer, o estertor da primazia europeia nos assuntos mundiais. Os Estados Unidos já eram a maior economia do mundo desde o fim do século XIX, mas, embora crescentemente influentes, não tinham capacidade para se firmar como poder hegemônico global. A destruição da Europa e de outra grande potência militarista e expansiva da época, o Japão, deu aos Estados Unidos a oportunidade de afirmar a sua hegemonia mundial, em contraposição à União Soviética, país que tinha em seu cerne outra velha potência imperial, a Rússia.  

Os impérios coloniais europeus por todo o mundo ruíram, em sua maior parte, e a maioria das colônias se transformou em países independentes. Os movimentos independentistas ganharam força no “Terceiro Mundo”, com a luta legítima de seus povos pela autodeterminação, e também tiveram apoio, da nova potência hegemônica, os Estados Unidos, que tinham interesse em limitar a influência europeia no mundo como parte do processo da afirmação de sua própria influência.   

Portanto, após a Segunda Guerra Mundial, a divisão da Europa e do mundo se estabelece em dois blocos políticos e ideológicos rivais, liderados por Estados Unidos e União Soviética e, é importante destacar, a divisão da derrotada Alemanha em dois países, cada um deles parte de um dos blocos e na “fronteira”, tanto factual como simbólica (representada pela divisão da cidade de Berlim por um muro), entre capitalismo e comunismo.  

A Europa Ocidental, no período da guerra fria, com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar liderada e em sua maior parte mantida pelos Estados Unidos, inicia a sua integração, portanto sob tutela geoestratégica norte-americana, o que segue sendo a realidade até os dias atuais. A França, nesse cenário, dá início a um processo de pacificação com a então Alemanha Ocidental, que se materializaria no processo europeu de integração, que, com o decorrer dos anos, ganharia complexidade. Para a Alemanha, sob a liderança do conservador Konrad Adenauer, era a maneira de se integrar ao Ocidente e ter alguma “margem de manobra” para agir na política externa. Para a França, após o trauma de duas guerras mundiais, era a oportunidade para a paz regional e o exercício de lider ança política, no que passou a ter destaque o poderio nuclear, ausente na Alemanha. A França detém até hoje a vantagem da influência em sua antiga zona colonial, em especial na África, e do fato do francês ser uma língua falada em escala global. 

A descolonização no pós-guerra, a crescente integração da França na Europa e o progressivo aumento da influência alemã, a adoção de políticas econômicas neoliberais e, já no século XXI, a afirmação de novas potências na cena global com destaque para China e Índia e o retorno de uma velha potência, a Rússia, são os fatores que, em síntese, podem explicar o declínio relativo do poder francês tanto em nível regional como global. 

No que diz respeito à descolonização, ao fim, portanto, da maior parte das áreas diretamente subordinadas à Paris, em especial na África, mas também na Ásia, assim como para outros poderes europeus, como o Reino Unido, a independência representou perda de poder e influência. Foram colônias francesas na África: Marrocos, Tunísia, Guiné, Camarões, Togo, Senegal, Madagascar, Benin, Níger, Burkina Faso, Costa do Marfim, Chade, República do Congo, Gabão, Mali, Mauritânia, Argélia, Comores, Djibouti e República Centro Africana. Na Ásia, a colônia francesa era a Indochina, atual Vietnã. Porém, isso não significa que os franceses (e outros europeus) não tenham mantido, a despeito dessa importante mudança, bastante influência, em especial na África. Com isso, têm conseguido manter re lações privilegiadas.  

O caso da relação da França com o Níger é bastante ilustrativo: dois terços do urânio consumido pelas centrais nucleares francesas é proveniente do país africano. O mineral é explorado por empresa com 67% de capital francês e 37% de capital estatal nigerino. A percepção dos africanos é de uma relação bastante desigual. Conforme o site Deutsche Welle (6 set. 2023): “‘Toda a gente no Níger sente que essa parceria é muito desigual’, disse Mahaman Laouan Gaya, ex-ministro nigerino da Energia, que foi secretário-geral da Organização dos Produtores Africanos de Petróleo (APPO) até 2020. Num e-mail enviado à DW, Gaya se refere a ‘inconsistências significativas’. O Níger exportou urânio no valor de 3,5 bilhões de euros para França em 2010, mas recebeu apenas 459 m ilhões de euros em troca, exemplificou. ‘Se o Níger decidir não exportar urânio para França, isso terá consequências dramáticas para a França, mas pouco impacto na economia nigerina’, afirmou o ex-ministro. O responsável acrescentou que cerca de 90% da população do Níger não tem eletricidade e que, com a exploração dos preços, o Níger recebe atualmente muito poucas receitas pelas suas exportações”. 

Essas relações desiguais despertam um “sentimento anti-França” no Níger e em outras ex-colônias na África e vários desses países estão se aproximando da Rússia (que atua na região vendendo armas e com o braço militar mercenário Wagner). Quando do golpe de Estado no Níger, em 2023, que fez a França fechar sua embaixada, a sua aliada europeia Alemanha disse, pelo seu ministro da Defesa Boris Pistorius, estar “interessada em assumir projetos”, pronta, desse modo, para preencher eventual vazio deixado pela França. As “relações privilegiadas” da França com países africanos (que na percepção dos africanos são vistas como relações de exploração) vêm sendo mantidas, como colocado neste texto, até os dias atuais, mas ao mesmo tempo crescentemente contestadas nesses países e, como destacado, disputadas por outras potências. 

A integração europeia é o grande feito político francês do século XX. Em um continente envolto em guerras contínuas há pelo menos um milênio, a iniciativa inicial da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço (CECA), assinada em 1951 entre França, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Itália e que evoluiu para a decisão da criação da União Europeia e da moeda comum, o euro, em 1992, garantiu relações pacíficas e crescente cooperação e articulação política.  

Contudo, mesmo no cenário regional, também se vê a perda de peso relativo da França. Em fins dos anos 1960, a Alemanha propôs a criação de uma moeda europeia, que se daria em 1980, após uma transição de aproximadamente uma década. A ideia dos alemães, mais fracos politicamente à época, era se comprometer com o Ocidente para compensar seu movimento em direção ao Leste, de reaproximação com a Alemanha Oriental. O sucesso dessa reaproximação, com o restabelecimento das relações diplomáticas e o inesperado fim do padrão ouro-dólar e estabelecimento do padrão dólar-flutuante aumentou o grau de autonomia da Alemanha (o marco alemão, moeda forte, se adaptou melhor ao sistema de livre flutuação). O processo de coordenação cambial, que levou ao euro, já nos anos 19 90, teve o marco alemão como moeda referência em todo o período. Tornou-se referência inclusive do próprio euro, uma espécie de moeda alemã europeizada.  

Os Estados nacionais europeus, inclusive a própria Alemanha, perderam margem de manobra com a subordinação à rígida política anti-inflacionista do Bundesbank, que foi copiada pelo Banco Central Europeu. E para Estados de moedas mais fracas como a França adaptar-se à ortodoxia monetária alemã teve elevados custos para o crescimento econômico, ensejando uma política econômica concentradora de renda e com graves efeitos sociais. 

Há uma convergência entre o processo de integração regional e a adoção de políticas neoliberais na Europa e, no caso da França, a partir do fracasso da experiência nacionalista e estatizante dos primeiros anos do governo do socialista François Mitterrand, que presidiu a França entre 1981 e 1995. Esse insucesso está diretamente relacionado à crescente liberdade do movimento de capitais na então Comunidade Econômica Europeia e à descoordenação entre a política monetária alemã contracionista e o expansionismo fiscal francês. Num ambiente de liberdade de movimento de capitais, a França se viu prejudicada na capacidade de gerir sua política monetária. O franco se desvalorizou e a inflação aumentou, embora o país tenha tido desempenho melhor do que a Alemanha em termos de crescimento. Contudo, o am biente internacional, da citada abertura aos movimentos de capitais e também de políticas monetárias ortodoxas anti-inflacionárias adotadas pelos Estados Unidos e Reino Unido, impunha um elevado custo àqueles, como a França, que buscassem uma política de viés keynesiano. Havia também uma grande resistência a qualquer iniciativa europeizante e a tendência de adoção de políticas que reforçassem a autonomia do Estado nacional.  

A França de Mitterrand “capitulou” em 1984, com a adoção da política do franco forte e a proposta de aprofundar a integração europeia. O Ato Único Europeu, em 1986, pactuou as medidas liberalizantes para a preparação para o Mercado Único, que se constituiu em 1992. A reunificação alemã, em 1990 tem como contrapartida exigida pela França a criação da moeda europeia, o euro. A França ganha assento no Banco Central Europeu, mas se compromete com política monetária de rígido controle inflacionário e austeridade fiscal. Não há, até os dias atuais, políticas europeias fiscais, na escala suficiente, para “compensar” uma moeda europeia que serve melhor às economias mais desenvolvidas do norte da Europa. A integração europeia como mola propulsora de políticas neolibe rais favorece amplamente a indústria alemã em detrimento dos europeus do sul, menos desenvolvidos, e também prejudica a economia da França. A partir da adoção do euro se consolida a hegemonia econômica alemã na Europa.  

O cenário mudou consideravelmente. A guerra entre Rússia e Ucrânia deu um novo “sentido existencial” à Otan e reafirmou a liderança norte-americana no continente. A Europa se volta aos preparativos para a guerra e a Alemanha se coloca, no nível regional, como o país com capacidade de liderar esse esforço de rearmamento. A proposta francesa de “autonomia estratégica” europeia se vê inviabilizada pela realidade geopolítica de reafirmação da dependência da Europa em relação aos Estados Unidos para a sua segurança, ao menos no horizonte visível, embora tenha aumentado o número dos dirigentes europeus que defendam essa capacidade em prazo mais longo. A China passou a ser percebida pelos europeus não mais como mercado e investidor, mas como concorrente nas áreas de maior conteúdo tecnológico e comprador inde sejado de empresas europeias importantes e estratégicas, além de ameaça política, pelo seu sistema de governo autoritário.  

E nesta conjuntura a França se vê internamente com grande insatisfação social pelo empobrecimento de grande parte da população, pelo fracasso das políticas relativas aos imigrantes e seus descendentes, falta de perspectivas aos jovens e crescimento da xenofobia e da extrema direita. O país tem menos influência nos assuntos globais e também europeus. A “solução” futura para a crise pode ser um governo de extrema direita ultranacionalista, que pode, eventualmente, provocar uma ruptura na União Europeia.  

É a dinâmica do declínio relativo da França que deve seguir, e, provavelmente, se aprofundar, a despeito das bravatas do presidente Emmanuel Macron sobre o envio de soldados da Otan para defender a Ucrânia e das escolhas políticas que sua população fizer no futuro. 

Wagner Sousa é doutor em Economia Política Interacional pelo Instituto de Economia da UFRJ. Atualmente é pós-doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ, com pesquisa sobre a Alemanha e suas relações com grandes potências (Estados Unidos, Rússia e China). É também colaborador do Observatório Internacional do Século XXI. 

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