08 junho 2024

Um conto de Cláudio Carraly


Vila Alegria – um conto de terror

Cláudio Carraly*


Foi um ano difícil. Aproveitei o recesso do trabalho para pegar a estrada e fazer um balanço do ano que passara e do que estava por vir. Sabia mais ou menos onde queria chegar, mas o tempo não era importante. Iria parando aqui e pernoitando lá, sem pressa de chegar ao meu destino. A tarde caía pesadamente sobre a estrada poeirenta que serpenteava um local chamado Vila Alegria. Seus raios dourados, em vez de trazerem o calor reconfortante, lançavam uma sombra que bruxuleava sobre o lugar, como se o próprio sol temesse iluminar totalmente os segredos enterrados sob o véu da história e da tradição. Como estava perto do anoitecer, resolvi ficar por ali essa noite.

Ao adentrar os limites da vila, fui recebido por um silêncio que não costumamos conhecer, como se as próprias ruas desertas guardassem segredos proibidos. Os moradores, pareciam pálidas de suas próprias existências, trocavam entre si saudações vazias, seus olhares desprovidos de qualquer brilho. — Bem-vindo à Vila Alegria, murmurou um velho pescador, suas palavras pairando no ar eram desconexas de seu olhar perdido e vazio. Instalei-me na modesta pousada na rua principal da cidade, onde o proprietário, um homem taciturno de semblante cansado, murmurou advertências sombrias sobre cuidados na estadia, deixando-me inquieto com suas meias-palavras e sugestões de prudência. Vários moradores rondavam o lugar com curiosid ade. À medida que a noite caía, uma sensação de inquietação se apossava de mim.

O vento, como um sussurro sibilante, varria as ruas agora vazias, trazendo consigo murmúrios de segredos há muito esquecidos, tentei me concentrar no livro que estava lendo, mas minha cabeça estava tomada por pensamentos que divagavam, como se minha própria mente conspirasse contra mim. Foi então que ouvi um barulho, algo que lembrava um choro distante, parecia um lamento ecoando pelas vielas escuras da pequena cidade. Movido pela curiosidade, segui o som até uma pequena casa bem nos limites da vila.

A porta entreaberta revelou uma jovem mulher sentada no chão, os olhos vazios mirando o horizonte e as lágrimas correndo por suas bochechas pálidas. — O que está acontecendo aqui? Perguntei, com minha voz trêmula ecoando no vazio que nos cercava. Ela ergueu os olhos para me encarar, e, no fundo de seu olhar sem vida, vislumbrei por um pequeno instante uma sombra do horror que a consumia. — Estamos todos presos aqui, murmurou ela com uma voz rouca. — Presos no vazio, na escuridão... até que não reste mais nada. Eu havia contemplado o abismo e tinha medo que ele tivesse percebido minha presença.

Saí correndo imediatamente daquele lugar, tomando o caminho de volta para pousada, mas não sabia que a partir daquela noite mergulharia nas profundezas sombrias do que assombrava a vila, segredos entrelaçados pelo que aparentava ser um passado repleto por muita dor e sofrimento. Porém o que mais me perturbava não eram os possíveis eventos do passado, e sim a maneira como o vazio que observei naquela mulher parecia infectar minha mente, assim entendi o motivo de cada habitante parecer padecer do mesmo mal. Senti aquela imagem que vi de soslaio, percorrendo meu ser, e corroendo minha alma aos poucos, deixando para trás um vazio, nada, nem dor, nem, raiva, nem solidão, apenas o nada.

Procurei conversar com os poucos moradores lúcidos, cada palavra deles carregada de um misto crescente de e resignação. A cada história contada, sentia-me mergulhando mais fundo em uma realidade fantástica e sombria que envolvia aquela pequena vila, era como se o oxigênio local fosse impregnado pelo puro desespero e desesperança. Enquanto lutava para entender o mistério que aprisionava o lugarejo nesse aparente vazio, senti que o mesmo começava a se enraizar ainda mais dentro de mim, minha experiência de confrontar os olhos do desespero sem nenhum preparo, começava a me cobrar a conta. Sentia como se o universo estivesse me consumindo, ameaçando me tomar por completo.

No silêncio sufocante da noite, confrontei meus demônios internos, lutando para manter o que restava da minha sanidade em um mar cada vez mais crescente de desespero. Mas aparentemente quanto mais eu lutava, mais forte o vazio parecia, envolvendo-me e tomando cada parte de mim, esvaziando a vontade de reagir. Foi então que percebi que estava correndo contra o tempo, que se não encontrasse uma maneira de escapar logo, estaria condenado a ser consumido por esse “nada” para sempre. Mas como escapar de algo tão insidioso, tão implacável? E também tão inexplicável?

Na sombra do pior momento tive uma epifania, compreendi que poderia haver uma maneira de derrotar esse crescente vazio. Tentei encontrar o que restava ainda da esperança dentro de mim, precisava buscar uma saída no meu amago, aquela fé que nasce do desespero, mesmo nos piores momentos. Decidi me lançar de cabeça na busca definitiva pela verdade e quem sabe da minha redenção, mesmo entendendo que enfrentaria muitos obstáculos pelo caminho. No entanto, minha determinação era inabalável, sabia que minha missão era mais do que uma busca pessoal, era a chance de trazer esperança e renovação a toda uma comunidade consumida pelo mesmo desespero que eu agora sentia.

À medida que o sol se erguia no horizonte, parti em minha jornada, armado apenas com minha determinação e minha vontade infindável de sobreviver. Na solidão do nada, a única coisa que podia me guiar era a luz da esperança, fraca, mas inquebrável, ainda dentro de mim. No entanto, à medida que avançava, a esperança parecia uma ilusão fugaz, uma chama vacilante diante da vastidão do vazio que nesse momento inundava a vila. A desesperança se tornava mais densa a cada passo, como se estivesse se alimentando de nossas próprias almas, mas minha determinação ainda persistia, e mesmo diante da crescente sensação de desespero que me consumia pedaço por pedaço, eu segui, um passo de cada vez adiante.

E então, quando tudo parecia perdido, quando os passos ficavam cada vez mais lentos, percebi alguns moradores seguindo para uma vereda, e em suas mãos seguravam velas. Essa simples visão me impulsionou e os segui, e depois de vários minutos de caminhada na mata densa que circundava a vila, eles chegaram em um santuário, que aparentava ser antigo, e estava escondido nas profundezas dessa mata. Este lugar ficava recostado em um monte, e na frente deste havia como um caminho de pedras no chão, formando uma espiral.

Nas paredes do monte podíamos ver pinturas rupestres, desenhos de homens e mulheres, animais e também pintadas as imagem de vários símbolos irreconhecíveis. Os moradores, ao chegarem nesse local, começavam a percorrer a longa trilha de pedras seguindo a espiral, e a cada volta viam a luz de suas velas diminuírem até por fim se extinguirem, sem vento, sem nada, apenas parava de brilhar, como que engolidas pelo centro sombrio desse pátio cerimonial. Esse local era como um ponto de encontro cósmico das forças da criação e destruição em uma eterna dança de morte e renascimento.

No coração deste templo ancestral, percebi que os moradores seguiam em fila indiana até chegar ao centro da espiral, e ao chegar ao que deveria ser esse ponto, eu não mais os via, como se também se apagassem como a luz das velas em suas mãos. Assustado e sem saber bem o que fazer, decidi apostar tudo, enfrentando eu mesmo esse cortejo e seguir a espiral até o seu final, chegando perto do núcleo do vazio, a esfera do chão abraçou todo meu corpo e eu já não estava lá, ali, não estava mais hoje, ao menos não no tempo que vivenciamos, eu já estava em outro lugar. Cheguei no passado, entre povos originários, talvez os mesmos que pintaram as paredes daquele local, senti que tinham muita fome, decorrent e de uma seca talvez?

Em seguida, sombras, e já me encontrava em outro momento. Vi homens arrastando outros a ferros, muita dor e sofrimento, açoite e perversão, riquezas nascidas do sangue e exploração do semelhante. Novamente, a esfera do vazio me abraçou, e ao perceber vi que estava em outro tempo, o local da espiral estava totalmente devastado do monte que era o recosto do templo. Agora, nada mais restava, tudo estava árido, as arvores que cercavam tudo haviam morrido, não se via mais sinal de vida, só destruição, e com ela a certeza dentro de mim que ali era o momento do fim da humanidade.

De repente, voltei, estava de novo no meu lugar, no meu tempo, com os moradores que haviam seguido em procissão. Imaginei que era ali que residia o poder que mantinha a vila aprisionada em seu domínio sombrio, alimentando-se do sofrimento dos seus habitantes de ontem e dos que estão por vir, o tempo não é linear, então aquele lugar absorvia de alguma forma, o sofrimento do que contabilizamos como presente, passado e futuro, tudo no mesmo momento. Enquanto observava a cena ainda perplexo, compreendi pela minha experiência ainda vívida, que a verdadeira fonte do mal que assolava a vila não era nenhuma entidade sombria, mas sim algo muito mais insidioso e cada vez mais presente em nossas vidas.  Algo que parece rotineiro e normal, alguns chamaram de tristeza profunda, outros de solidão acompanhada, lá no passado já chamaram de banzo, hoje, denominamos depressão.

A névoa que envolvia a vila e tinha naquele local seu centro de poder não era apenas um símbolo do vazio de cada um de nós, mas a total perda da vontade de viver de cada um que já pisou e que iria ainda pisar naquele chão. Talvez uma representação pequena do que todo nosso mundo poderia se tornar no futuro, caso continuemos nesse nossa trajetória. Ao entender com o que lutava, busquei com todas minhas forças, lutar contra o vazio, e canalizando a luz que havia se extinguido nas velas das mãos daquelas pessoas, sabia que, assim como foram consumidas pelo nada, do nada poderiam ser exortadas, e ordenei que ardessem novamente. Gritei e gritei, e uma a uma foram surgindo pequenos pontos de luz que irromperam a noite. Depois, já n&atil de;o eram mais pequenos pontos de luz, mas uma imensa e irradiante iluminação que ofuscava todos que ousassem olhar diretamente aquela cena.

E dentro de mim, essa chama também ardia, dissipando o vazio que se alimentava de todos naquele lugar. Essa luta entre luz e trevas, esperança e desespero, ordem e caos, ecoou através das dimensões do tempo como um trovão estrondoso, e após a explosão de luz que tomou toda floresta, o nada se esvaiu,  consumindo-se em si, dissipando as sombras e mostrando no horizonte que um novo dia começará a nascer. Os habitantes, agora libertos do jugo sombrio que os aprisionava, olharam para os primeiros raios solares da alvorada com olhos cheios de esperança, prontos para começar de novo em um mundo livre da maldição que os assombrara por tanto tempo, por todo tempo, de ontem, hoje e do amanhã. Com o nada finalmente dissip ado, a Vila Alegria podia viver uma nova chance de prosperar e florescer.

E, à medida que o sol se erguia sobre os telhados da vila, os moradores saíam às ruas, celebrando sua libertação com alegria e gratidão. Quanto a mim, o viajante solitário que havia chegado à vila em busca de renovação, encontrei meu próprio renascimento na esperança que agora brilhava sobre aquele lugar outrora condenado. Pois no fim da espiral da vida, descobri que mesmo as sombras mais densas podem ser dissipadas pela luz da verdade e da determinação, enquanto deixava para trás a cidadezinha, sabia que minha jornada ainda  havia terminado, o monstro da tristeza que habita cada um de nós estava por aí, muitas batalhas ainda por ser travadas para afastar definitivamente esse mal, mas agora, eu seguia em frente com um coração cheio de esperança, pronto para enfrentar o que quer que o futuro reservasse, sabendo que um pequeno ponto de luz, mesmo de uma singela vela, já bastava para confrontar as trevas.

[Ilustração: Helen Sebidi]

*Advogado, ex-secretário-adjunto de Direitos Humanos de Pernambuco

4 comentários:

Anônimo disse...

Carraly, alguma afinidade com Gabriel Garcia Marquez? Enquanto lia seu texto lembrei de “Cem Anos de Solidão” e “Amor em Tempo de Cólera” . Você anda poeta e introspectivo. Gostei. Grande abraço!

Anônimo disse...

É necessário se apegar à qualquer sinal de esperança de luta.

Cláudio Carraly disse...

Amo Gabriel Garcia Marques, e pode sim ter algo haver coma as leituras que fiz na vida, mas ocorreu de forma subconsciente.

Cláudio Carraly disse...

Foi minha forma de exortar a luta interna de cada um.