“Bebê Rena” e a ficção
Diferente de um entendimento simplista, a ficção não é uma narração mentirosa. Fala-se até, entre políticos profissionais, que determinadas mentiras são relatos ficcionais.
Urariano Mota*Vermelho
A série Bebê Rena da Netflix começa com um aviso indicando o drama como uma “história real”, Mas o seu criador, Richard Gadd, declarou depois do lançamento que sua intenção era capturar a “verdade emocional” de sua experiência, não um “perfil factual”. Já nesse ponto, podemos ver que ele se resguarda de críticas a pequenas invenções ao longo do relato.
Na série, Gadd interpreta a si mesmo como um personagem chamado Donny Dunn, que desenvolve uma amizade improvável com uma mulher mais velha, chamada “Martha”, interpretada por Jessica Gunning. Martha é retratada como obsessiva e desequilibrada, enviando a Donny mais de 41 mil e-mails e mais de 350 horas de mensagens de voz. A série mostra Donny lutando para se libertar da obsessão de Martha enquanto enfrenta seu próprio trauma, causado por repetidos abusos sexuais nas mãos de um mentor mais velho.
De acordo com a Netflix e o autor roteirista da série, todos os nomes foram trocados e as providências necessárias foram tomadas para proteção das pessoas reais retratadas em Bebê Rena, mas a minissérie repercutiu de tal maneira que os internautas passaram a identificar paralelos entre as batidas do roteiro e as histórias reais.
Agora, uma das supostas envolvidas no caso ameaça processar a Netflix e o criador da produção artística. No dia 9 de maio, a escocesa Fiona Harvey, de 58 anos, foi entrevistada por Piers Morgan em seu programa de entrevistas na internet chamado Piers Morgan Uncensored. Durante a entrevista no YouTube – na qual ela foi ridicularizada aos milhares por espectadores comentando ao vivo –, Harvey afirmou ter sido retratada como a vilã da série contra sua vontade: “Isso já tomou conta da minha vida. Acho isso horrível, misógino. Algumas das ameaças de morte foram realmente terríveis”, contou.
Mas o que é mesmo ficção? Um documentário ou denúncia da “vítima”?
A esta altura, podemos perguntar ainda: o autor da série deveria não relatar a experiência sofrida, para não receber intimações e intimidações? Ou então, se resolvesse contá-la, deveria dar a seu roteiro um retrato absolutamente fiel do que viveu, burocrático à maneira de um escrivão de polícia? E se ele respondesse que apenas criara uma ficção, deveria então se limitar à mentira total? Ou, de modo mais honroso, que deveria ficar no reino da pura fantasia? Notem que essas perguntas traem e trazem uma incompreensão do ato de escrever, de criar ou imaginar.
Pois o que é a ficção? Diferente de um entendimento simplista, a ficção não é uma narração mentirosa. Fala-se até, entre políticos profissionais, que determinadas mentiras são relatos ficcionais. E com isso difamam e ignoram o que é ficção. De modo sucinto, devemos esclarecer que a literatura fala da vida do que apenas desconfiávamos existir. A literatura, a ficção é uma compreensão da realidade. E no escritor, em geral, usar e revelar a memória é a própria compreensão do mundo. Os escritores são melhores quando escrevem sem pretensiosa fantasia. É natural que todos não alcancemos a compreensão da vida que lembramos. Isto é, a maioria não tem consciência da memória que reside no interior do seu ser. Ou até mesmo nem deseja ter essa consciência, que a literatura revela, quando a memória é trauma.
O escritor de ficção, em vez de narrar ideias gerais, narra pessoas, personagens particulares. É da natureza do gênero, é a sua forma de trabalhar. Ainda que estejam escrevendo sobre as coisas mais abstratas, algo como a Constituição Federal atualizada, ainda assim o escritor, o que tem gênese e característica da literatura, falará da Constituição Federal conforme a biografia sentida da própria vida. É como um louco ou doente sem remédio. Em muitos significados, ele é um funcionário permanente do sentimento.
O escritor, por vezes, me lembra um bancário que não conseguia sair do banco. Ia pra casa, o banco o acompanhava. Ia dormir, lá estava o banco. Ia pro bar e, quando no calor da cerveja se discutia sobre a estratégia da França com a Linha Maginot depois da 1ª. Guerra Mundial, o bancário concluía: “Entendo perfeitamente. Eu também faço isso. Eu pego os livros de relatórios e empilho na minha frente, pra ninguém me perturbar. Essa Maginot é como lá no banco”.
Não é que o escritor seja um monstro biográfico, que possua um misterioso talento onde não cresçam e frutifiquem ideias. Pelo contrário, não se conhece um só bom autor que não possua uma concepção do mundo e dos seus desconcertos. Mas é que nele, no escritor, as ideias sofrem uma interpretação particular, que se mostram no que ele escreve. Nele não há lugar para a sobrevivência da tese, que é do ofício de todo ensaio científico ou acadêmico. Na literatura, os personagens não são bonecos de ideias gerais. São gente, de cara e dente, onde as ideias se batem, se violentam e mantêm o conflito. Como na vida fora da escrita.
Agora, imaginem se Primo Levi, por ter escrito É Isto um Homem?, recebesse processo judicial dos assassinos nazistas dos campos de concentração. Imaginem Graciliano Ramos, depois de publicar Memórias do Cárcere, sendo processado pelos carrascos do Estado Novo.
O fato é que, como a ficção em geral deu as costas à realidade, a realidade por sua vez virou ficção. Esse caso daria uma grande discussão, se o nível intelectual e humano do que é ficção não andasse tão baixo. Chegamos enfim aos documentários e autores que podem virar réus em função do que documentam ou criam, do que foi tomado como a realidade.
Se o nível a que chegamos fosse um pouquinho melhor, valeria repetir o genial Eça de Queirós. Ele, ao sofrer a reclamação de uma pessoa que se viu retratada nas páginas de um romance de Eça, falou definitivo. O gênio português assim respondeu ao indivíduo que lhe havia servido de modelo:
– Saia do meu personagem!
*Jornalista, escritor
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