07 janeiro 2025

Qual "classe média"?

Economia: o Brasil é um país de classe média?
Theófilo Rodrigues/Portal Grabois www.grabois.org.br

“Brasil volta a ter maioria da população nas classes média e alta”. “Com ganho de renda e ascensão social, Brasil volta a ser um país de classe média”. Esse foi o título da matéria que ganhou a capa do jornal O Globo no último domingo (05/01). De acordo com dados da Tendências Consultoria, obtidos pelo Globo, cerca de 50,1% dos domicílios brasileiros estão nas classes C para cima, o que caracterizaria o país como de classe média. Essa pesquisa segmenta a estrutura de classes brasileira a partir do seguinte recorte de renda: as classes D e E (49,4%) são formadas por famílias com rendimento domiciliar menor que R$ 3,5 mil; a classe C (31,2%) está entre R$ 3,5 mil e R$ 8,1 mil; a classe B (15%), entre R$ 8,1 mil e R$ 25 mil; e a classe A (4,4%) está acima de R$ 25 mil.

Imediatamente a notícia tomou conta das redes sociais das principais lideranças do governo federal e do PT. “A ascensão social da maioria dos brasileiros em 2024 é o resultado direto da retomada do emprego e do aumento real dos salários no governo do presidente Lula”, escreveu a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann, em sua conta no Twitter. Ministro da SECOM, Paulo Pimenta exaltou a notícia: “O Brasil ser um país de classe média é um desejo do presidente Lula que agora volta a se concretizar”. Já o presidente Lula, ao divulgar a matéria em suas redes, afirmou que “esse é o país que estamos construindo juntos, onde as famílias têm mais emprego e renda, mais oportunidades e crescimento econômico”.

A polêmica em torno do conceito de classe média

Há cerca de quinze anos sociólogos e economistas promoveram um grande debate na esfera pública brasileira acerca dessa questão. Tudo teve início em 2008 com a publicação de “A nova classe média: o lado brilhante dos pobres” (Rio de Janeiro: CPS/FGV, 2008) e, posteriormente, em 2011, com a publicação de “A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide” (São Paulo: Saraiva, 2011), ambos livros de Marcelo Neri. Economista do Centro de Políticas Sociais da FGV, Neri analisou com dados estatísticos e quantitativos como milhões de brasileiros ingressaram na nova classe média a partir do início do governo Lula em 2003. A novidade de seu trabalho estava em avaliar não o crescimento econômico do país, medido pelo PIB, mas sim o crescimento da renda, do poder de compra dos cidadãos. A inter pretação, claro, caiu como uma luva para o governo federal sedento por apresentar publicamente seus resultados econômicos. O sucesso desses livros no interior do governo foi tão grande que Neri acabou sendo convocado no ano seguinte para assumir a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cargo em que permaneceu até 2014, quando foi efetivado como ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE).

A resposta mais imediata ao trabalho de Neri não veio de um economista, mas sim de um sociólogo. Em livros como “A ralé brasileira: quem é e como vive” (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009) e “Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?” (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010), Jessé Souza criticou a abordagem liberal de Neri, por considerar o deslocamento de classe como uma variável tão somente de renda. Referenciado teoricamente em Pierre Bourdieu, Jessé incorporou outras dimensões simbólicas como capital cultural para a sua interpretação da estrutura de classes no Brasil. Diferentemente da pesquisa estatística e quantitativa de Neri, Jessé preferiu a pesquisa qualitativa para compreender esse mundo social. Curiosamente, foi justamente Jessé quem assumiu a presidência do IPEA em 2015, pouco dep ois da saída de Neri. Seria esse um sinal de que o governo Dilma percebeu que apenas a renda e o consumo não seriam suficientes para a mudança qualitativa do país?

Outra crítica ao conceito de nova classe média de Neri apareceu em 2012 com a publicação do livro “Nova Classe Média? O Trabalho na Base da Pirâmide Social Brasileira” (São Paulo: Boitempo, 2012), e em 2014, com “O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social” (São Paulo: Boitempo, 2014), ambos de Márcio Pochmann. Economista da Unicamp de matriz marxista, Pochmann também acusou o viés liberal da abordagem de Neri. O ponto de Pochmann é que a melhoria na renda da classe trabalhadora ocorrida naqueles anos aconteceu exclusivamente na base da pirâmide social, entre os mais pobres, e não na suposta classe média. Diga-se de passagem, Pochmann havia sido o antecessor de Neri na presidência do Ipea entre 2007 e 2012.

Professor do Departamento de Sociologia da USP de uma linhagem trotsko-gramsciana, Ruy Braga concordou com a tese de Pochmann de que a principal ascensão de renda nesse período ocorreu na base da pirâmide e não na camada média. No entanto, Braga inovou em “A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista” (São Paulo: Boitempo, 2012) ao identificar que esse grupo social que teve aumento de renda foi o precariado, entendido como o proletariado precarizado, ou seja, a parcela da classe trabalhadora que se encontra inserida nas condições mais degradantes de trabalho.

Nesse ínterim, merece destaque ainda a leitura feita por André Singer em 2012 em “Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador” (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), que ele definiu como subproletariado. Para Singer, seria esse subproletariado – as camadas mais pauperizadas da sociedade brasileira – a classe beneficiada pelas políticas do primeiro ciclo progressista (2003-2016) – ciclo político que Singer chama de lulismo.

Nenhum dos críticos do conceito de nova classe média negou a existência de uma ascensão no poder de compra de parte da classe trabalhadora no primeiro ciclo progressista (2003-2016). O que sempre esteve em questão foi a interpretação sobre o significado dessa ascensão em termos de classe. Com efeito, o grande problema é a confusão entre renda média e classe média. Renda é uma categoria econômica, ao passo que classe é uma categoria sociológica.

Ao celebrar o Brasil como um país de classe média, a consequência direta entre os tomadores de decisão é a invisibilização das outras parcelas da população que estão nos estratos D e E e que possuem rendas insuficientes para a própria sobrevivência digna. Um burocrata qualquer entusiasta do ajuste fiscal poderia dizer que, se o Brasil já é um país de classe média, manter a política de valorização do salário-mínimo talvez não seja algo tão importante assim. Ademais, é sempre bom lembrar que, de acordo com o Dieese, o valor do salário-mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria ser de aproximadamente R$ 7.000 em 2024, ou seja, o dobro do que ganha a tal classe média tão celebrada.

Seja como for, o que é certo é que o conceito economicista de classe média, baseado tão somente na renda, confunde mais do que explica. Trata-se apenas de uma segmentação de camadas sociais, não de classes. Classes sociais são mais bem compreendidas quando analisadas pela lógica da posição dos grupos sociais nas relações de produção. Esse caráter relacional que constitui as classes sociais permite ao intérprete compreender melhor os interesses contraditórios entre as classes e o papel de cada uma delas no sistema de exploração. Algo que é invisibilizado pela abordagem economicista e liberal da classe média.

Governo Lula 3: repetição da abordagem economicista?

Os dados mostram que o primeiro ciclo progressista (2003-2016) obteve sucesso, ainda que moderado, em elevar a renda da população mais pobre. Gerar empregos e aumentar salários é certamente uma boa forma de redistribuir renda e reduzir o conflito distributivo. A consequência imediata é o aumento do poder de consumo da população, fazendo girar a roda do desenvolvimento capitalista. Esse segundo ciclo progressista iniciado em 2023 parece querer repetir essa mesma fórmula, não obstante as pressões do mercado financeiro em favor de um ajuste fiscal que vai na contramão desses interesses desenvolvimentistas.

Contudo, não é só o poder de consumo que pode reorganizar o sistema de classes e a hegemonia. Aliás, isso ficou muito claro com a ascensão fascista no período 2016-2022. O primeiro ciclo petista cometeu o erro de, em paralelo à agenda da redistribuição econômica, não ter apostado na agenda da disputa de consciências. Soterrada por uma avalanche de informações que vem das teologias da prosperidade e do domínio, das fake News da extrema-direita, e do monopólio da comunicação neoliberal, a classe trabalhadora se vê constrangida ou mesmo perdida em um labirinto. Nesse contexto, o aumento da renda e do poder de consumo dificilmente será suficiente para reorganizar consciências e disputar hegemonia.

Não há dúvidas de que a hegemonia se constrói na sociedade civil. Mas o Estado também tem um papel pedagógico fundamental nesse processo. No caso de um governo federal dirigido por forças progressistas, as políticas culturais, de comunicação e de educação não deveriam ser vistas como setores menores ou burocráticos, mas sim como espaços estratégicos para a luta de ideias e a organização das classes. Espera-se que o segundo ciclo progressista tenha aprendido com seus acertos do primeiro ciclo para repeti-los. Mas também se espera que tenha aprendido com seus erros para não os repetir.

Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM. É coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois

Leia sobre a inevitável polarização na sociedade brasileira https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_4.html

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