Recomeço
“Fim de ano não apaga problemas, nem faz ignorar adversidades. Com certeza, pode dar uma nova perspectiva, um novo modo de ver as coisas com mais afeto e solidariedade.”
Abram B. Sicsú/Vermelho
A rotina se repete. Todo ano, mesmo local. Filhos, netos, Dona Teresa, cachorro, genros e noras, se juntam aos idosos. Uma algazarra para um casal que mora sozinho, que tem uma vida bem menos movimentada. Casa de Erick, Tamandaré. Dez dias que dão sentido ao novo ano que está chegando.
Antes das cinco da manhã, uma boa caminhada. O aguardar do nascer do sol que desponta dali a poucos minutos. Quietos, admiradores vão se sentando na areia com esperanças renovadas. O nascer do sol é símbolo do recomeço imaginado.
Se não há nuvens, um presente, o sol chegará na sua plenitude, o vermelho e o amarelo fortes se farão notar. Muitas fotos, muitos desejos. Namorados se abraçam e o calor humano tenta competir com o dia tórrido que se prenuncia.
Se há nuvens, não tem problema. Alguns raios conseguirão se apresentar por entre elas, o espetáculo, diferente, ainda é muito cativante. A platéia não deixa escapar e com sussurros e delírios comemora.
O primeiro banho. Águas tépidas com ondas não muito fortes. Parece um banheirão térmico. Relaxa qualquer um, faz bem ao corpo e ao coração. Pena que não possa durar a manhã toda. Aproveita-se o banho ao amanhecer sem muita pressa, mas com muito querer de um belo dia.
O café da manhã reforçado. O cuscuz, a macaxeira, a tapioca, o queijo assado, os ovos mexidos, não podem faltar. Um suquinho de manga retirada do pomar sempre vai bem. O pão assado e o arábica especial de Minas trazem muita satisfação.
Um breve descanso. A leitura é boa companheira. Meu filho e companheira criaram um costume. Levam os bons exemplares que leram durante o ano. Tem para todos os gostos. Consegui me aprofundar em três fenomenais, um policial, um sobre história da ciência e um sobre a guerra do Paraguai.
O quintal está apinhado de mangas. São deliciosas. Todos os dias pegamos uma boa safra. Chegou dia a ter mais de trinta bem apetitosas. As que não iremos usar deixamos na porta de entrada para que os transeuntes possam também se deliciar.
Onze horas se tem compromisso. Inadiável, deve ser cumprido. Bar Riobaldo, em frente à praia. A mesa da varanda está sempre reservada para nós. Uma brisa agradável, sem o calor da areia, com Artur e irmão nos atendendo.
Caipirinha tradicional com um reforço na Pitú. Duas ou várias cervejas Duplo malte. Caldinhos de polvo e de camarão. A agulhinha bem fritinha, se come espinha e cabeça. A posta de peixe com um torresmo do couro. Boa hora de conversas e trocas de idéias. Resolvemos todos os problemas da humanidade.
O almoço é uma história à parte. Temos uma grande cozinheira. A cada ano se supera. O feijãozinho caseiro, a galinha guisada, a torta de camarão. Tudo no maior capricho. No dia de churrasco não faltem a farofa, o arroz e a vinagrete bem cortadinha. As sobremesas, de mouse de manga até bolo e brigadeiro. Bom para preparar a siesta.
Na siesta, os velhos dão cochiladas. Os jovens jogam vídeo games. Não consigo entender a lógica, mas, pela vibração, deve ser emocionante. Ganhar da máquina o objetivo.
O banho da tarde tem peculiaridades. O neto que acompanha a maré para saber seu ápice. Quer pegar algumas ondas. A neta, pequenininha, um ano e sete meses, que leva seus moldes para brincar na areia. Depois das quatro horas, muita gente, mas sem atropelo. Dá para todos se divertirem.
Vem chegando a noite e o centro da cidade é, quase sempre, nosso destino.
A pizzaria bem boazinha, mas sempre alguém reclama de algo. A Portuguesa tem que ter mais cebola, seria bom ter uma borda, a de lombo é horrível.
O Submarino Amarelo com músicas dos Beatles a som ensurdecedor, mas com bom hamburguês é outro destino. Tem até peixe e fritas de tira-gosto, a La moda inglesa.
Gosto da praça dos hippies. O artesanato, as jovens fazendo tereré. As barracas de alimentação. Destaque para o cachorro quente da praça e os brinquedos do parque das crianças, além do sorvete na chapa. Tem, também, tiro ao alvo e o bozó para tentar a sorte.
Dois lugares não deixam de ser freqüentados, quase todo dia, tem um apelo especial. O Rei da Coxinha, vício de todo viajante pernambucano, e a sorveteria para espantar o calor. Tem o velho e mais que gostoso Esquibom.
A cidade está em festa. Espetáculo de circo tem também. O do Palhaço Futuca. Bem montado com duas sessões diárias nos fins de semana. Malabares, equilibristas, personagens de vídeo game conhecidos pelos jovens, número de mágica e um número especial do Globo da Morte com dois motociclistas. Pena que a segurança não inclua redes para evitar acidentes. Mas, vocês sabem, gostamos de circo e nos tornamos crianças nessas ocasiões.
Voltando à casa de Erick, os jogos da noite. Cartas, tabuleiros, jogos de salão. Agora uma novidade. Como todos têm celulares, o compartilhamento se dá por aplicativos, principalmente os jogos de conhecimento geral e os de adivinhação. Coisas da modernidade.
Não sou muito de jogos. No sofá dou minhas cochiladas e me retiro um pouco mais cedo. Afinal, meu dia começa às quatro da manhã e tudo se repetirá.
Dias de um recomeço. Fim de ano não apaga problemas, nem faz ignorar adversidades. Com certeza, pode dar uma nova perspectiva, um novo modo de ver as coisas com mais afeto e solidariedade. Podemos viver aproveitando pequenos momentos e risos dos que nos são tão queridos. Esses são votos que desejo a todos.
[Ilustração: Cláudio Tozzi]
Leia um poema de António Cícero https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/12/palavra-de-poeta-antonio-cicero.html
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