Mais
uma crise da democracia liberal burguesa: análise estrutural, perspectivas e o futuro
Cláudio Carraly*
A democracia liberal burguesa atravessa uma das fases mais
profundas de crise estrutural em sua história contemporânea, sua legitimidade,
outrora ancorada na promessa de liberdades civis, sufrágio universal e Estado
de Direito, hoje se vê minada por contradições internas agudas, transformações
econômicas desestabilizadoras e a emergência de alternativas, tanto as
regressivas e autoritárias quanto as progressistas e emancipatórias. A análise
desta crise exige um olhar abrangente, que não apenas descreva fenômenos
visíveis como a ascensão de populismos de extrema-direita (que historicamente
surge como um “coringa” do capitalismo em épocas de profunda crise interna),
bem como a corrosão profunda de instituições multilaterais. Precisamos voltar a
analisar o caráter de classe intrínseco à democracia liberal, suas limitações
históricas e seu papel funcional na reprodução das desigualdades sociais.Desde uma perspectiva histórico-materialista, a democracia liberal burguesa é compreendida como uma forma específica e historicamente determinada de dominação de classe. Lênin, em sua análise sobre o Estado e a Revolução, foi incisivo ao apontar que a democracia sob a égide do capitalismo opera de maneira fundamentalmente distinta para as diferentes classes sociais, funcionando como uma liberdade mais plena para a burguesia e, simultaneamente, como um sistema de restrições veladas para o restante da sociedade. As conquistas formais, como o voto universal, a liberdade de imprensa e as garantias jurídicas, embora importantes, n& atilde;o alteram a estrutura basilar de poder assentada na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do trabalho, a riqueza continua concentrada nas mãos de poucos, os avanços emancipatórios são raros e demorados.
Georg Lukács, em História e Consciência de Classe, aprofunda essa crítica ao
analisar como a sociedade capitalista estrutura todas as relações sociais em
torno da forma-mercadoria, gerando um processo de alienação e reificação que
afeta não apenas o trabalhador em sua atividade produtiva, mas também o cidadão
em sua participação política. A democracia liberal, nesse contexto, torna-se
permeada por esse nivelamento forçado, as relações humanas e políticas são
coisificadas, e o indivíduo sente-se impotente diante do tamanho aparentemente
inexpugnável das estruturas sociais, como o mercado e o próprio Estado, que
parecem operar com uma lógica autônoma e incontrolável, expressões concretas
dessa dinâmica incluem o financiamento bilionário de campanhas, o poder
desmedido do lobby corpo rativo e a influência do grande capital no controle
dos conglomerados de mídia, sempre com vistas à manutenção da narrativa dos
acontecimentos e alienação dos fundamentos reais da crise perante a opinião
pública.
Esta análise ajuda a compreender por que o aprofundamento da
desigualdade econômica, exacerbado pelas políticas neoliberais implementadas a
partir dos anos 1980, corrói inevitavelmente a substância da igualdade política
formal, tanto decantada no que os comunistas chamavam de democracias burguesas.
A neutralidade do Estado liberal é crescentemente percebida como uma fachada
que mascara sua cumplicidade com os processos de acumulação profunda de
riquezas pela elite, enquanto os instrumentos democráticos formais que
subsistem internamente nelas, demonstram-se frequentemente incapazes de
reverter ou mesmo refrear essa concentração extrem a e contínua de dinheiro e
poder.
A fragilização das instituições democráticas liberais e a
crise de representatividade abriram espaço para a emergência e consolidação de
lideranças autoritárias e movimentos populistas de direita em escala global.
Fenômenos como o retorno de Donald Trump nos EUA, o fortalecimento de figuras
como Viktor Orbán na Hungria, Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros, ilustram
essa tendência preocupante, embora as causas sejam multifatoriais, envolvendo
desde elementos culturais, identitários e comunicacionais, até a falta de uma
pauta mínima unificadora da esquerda mundial, uma análise estrutural n&ati
lde;o pode ignorar o terreno fértil criado pela crise socioeconômica, nascida
no âmago do próprio sistema capitalista.
Diante da possibilidade do crescimento e triunfo global de
movimentos socialistas, a superestrutura capitalista lança sem pudor sua
derradeira cartada, que é o apelo ao nacionalismo exacerbado, ao discurso
anti-establishment (ainda que defendam interesses das elites políticas,
religiosas e econômicas), ao culto da força e à deslegitimação sistemática dos
mecanismos de controle democrático, como o judiciário independente, a imprensa
livre e as organizações da sociedade civil. Antonio Gramsci, em seus Cadernos
do Cárcere, oferece ferramentas conceituais precisas para interpretar esse
cenário, o conceito de "cr ise orgânica" descreve momentos em que as
classes dominantes perdem o consenso e não conseguem mais manter sua hegemonia
através da direção político-cultural, recorrendo crescentemente à coerção e ao
"domínio puro".
Gramsci também identifica o "cesarismo" como uma
solução política que pode emergir em tais crises de autoridade e hegemonia,
onde uma figura carismática, amparada pelo ou através do aparato repressivo
estatal, intervém para arbitrar os conflitos sociais agudos, geralmente
restaurando a ordem em favor dos mesmos grupos dominantes, ainda que sob uma
nova roupagem política, mudando para nada mudar. Esses líderes frequentemente
canalizam ressentimentos e frustrações legítimas de setores da população
precarizados ou marginalizados pelas transformações econômicas,
direcionando-os, contudo, contr a bodes expiatórios, normalmente a “minoria da
vez”, imigrantes, elites culturais, estado laico, assim por diante, e não
contra as raízes estruturais causadoras da desigualdade.
A arquitetura de governança global construída após a Segunda
Guerra Mundial, com instituições como a ONU, o FMI, o Banco Mundial e,
posteriormente, a OMC, foi um pilar da ordem liberal internacional liderada
pelo Ocidente, com o objetivo declarado de promover a paz, a cooperação e a
estabilidade econômica. No entanto, particularmente após a crise financeira de
2008 e com as mudanças no equilíbrio de poder global, essas instituições
enfrentam um total descrédito, Noam Chomsky, em obras como “Quem Manda no
Mundo?”, argumenta consistentemente que essas instituições foram, desde sua
origem, moldada s para servir aos interesses geopolíticos e econômicos das
potências hegemônicas, notadamente os EUA.
A aplicação seletiva das normas internacionais, o abandono de
acordos quando estes têm seus interesses contrariados, o uso unilateral de
sanções econômicas e intervenções militares à margem do direito internacional,
são evidências dessa dinâmica, confirmando que, a grosso modo, essas
instituições que poderiam ser importantes para um processo multilateral
decisório, são ao final apenas instrumento ideológico de manipulação
internacional de interesses das elites nacionais. A desconfiança em relação ao
multilateralismo no atual mundo das democracias liberais reflete n&at
ilde;o apenas a percepção de sua instrumentalização pelas grandes potências,
mas também, para muitas nações do chamado Sul Global, a sensação de que essas
estruturas perpetuam relações neocoloniais e assimétricas. A crise do
multilateralismo, portanto, não é apenas um sintoma da decadência da hegemonia
ocidental, mas também um fator que aprofunda a instabilidade e a fragmentação
da ordem internacional, dificultando respostas coordenadas a desafios globais
urgentes como pandemias e mudanças climáticas.
Diante desse cenário complexo, emergem movimentos sociais,
propostas políticas e reflexões teóricas que buscam caminhos para superar os
limites da democracia liberal burguesa, iniciativas como o DiEM25 (Movimento
Democracia na Europa 2025), co-fundado por Yanis Varoufakis, tentam articular
uma resposta transnacional à crise, propondo a democratização radical das
instituições europeias, a implementação de políticas de redistribuição de renda
e uma transição ecológica e socialmente justa. Ainda está distante da
necessidade da transformação disruptiva necessária para o mund o, mas sem
dúvida é um avanço. No campo teórico-político, diversas correntes da esquerda
contemporânea retomam e atualizam a ideia de uma "radicalidade
democrática” ou "democracia popular", que transcenda a esfera meramente
representativa e se estenda ao controle social e democrático da economia e das
principais decisões que afetam a vida coletiva. Essa perspectiva dialoga com as
propostas históricas de autogoverno dos trabalhadores, como os conselhos
operários defendidos por Rosa Luxemburgo como expressão de uma “democracia
proletária direta e participativa”.
Mesmo pensadores situados fora da tradição marxista mais
ortodoxa, como Norberto Bobbio, contribuíram para o diagnóstico da crise. Em O
Futuro da Democracia, ele alertava para as promessas não cumpridas da
democracia, apontando o fosso crescente entre os ideais democráticos de
participação e igualdade e a realidade da apatia política, do poder de grupos
ocultos e da persistência e crescimento das desigualdades. Para Bobbio, a
vitalidade da democracia dependeria não apenas da manutenção das regras formais
do jogo, mas da expansão dos direitos sociais e da capacidade de democratizar
esferas para além do Estado, com o as empresas e a administração pública,
portanto, é como construir formas de organização política e social que avancem
para uma participação popular substantiva e efetiva e com resultados reais na
vida das pessoas.
A história do capitalismo demonstra que os períodos de crise
estrutural profunda foram frequentemente seguidos por ondas de reação
autoritária, nacionalismos, extremismo e conflitos interimperialistas. A
análise de Lenin sobre o imperialismo, fase superior do capitalismo, já
apontava a tendência inerente ao capital monopolista de buscar a expansão, a
dominação de mercados e o controle de territórios, gerando rivalidades que
culminaram nas grandes guerras do século XX.
Essa
linha de análise histórica encontra ecos em críticas mais radicais à
socialdemocracia e às vias puramente reformistas. Autores como Harpal Brar, por
exemplo, argumentam que, em momentos críticos de confronto de classes, setores
da socialdemocracia, ao priorizarem a estabilidade do sistema capitalista e
abdicarem de uma transformação revolucionária do status quo, podem
acabar, na prática, por facilitar ou legitimar medidas autoritárias que visam
conter a mobilização popular e preservar a ordem burguesa.
Essas formas de leitura são logicamente controversas, mas
levantam questões importantes sobre os limites do reformismo dentro do modo de
produção capitalista, principalmente em contextos de crise aguda. Essas
análises históricas sugerem que a defesa acrítica da democracia liberal
existente, sem um questionamento de suas bases econômicas e de classe, pode
paradoxalmente pavimentar o caminho para sua própria negação, seja através do
fortalecimento de aparatos repressivos estatais, seja pela ascensão de regimes
abertamente ditatoriais em nome de preservar o mal já conhecido. E sob o signo
do medo ao novo, acaba exortando o fantasma do porvir, abraçando sem pudores ou
escrúpulos as soluções que garantem no final a sobrevivência do capital, mesmo
que esta seja uma solução final pelo fascismo.
A crise atual da democracia liberal burguesa não aponta para
um destino histórico inevitável, mas abre um campo de disputas e
possibilidades, como Gramsci nos ensinou, a história é feita de lutas pela
hegemonia, e não de fatalismos econômicos. A questão crucial não é apenas se a
forma atual da democracia liberal persistirá, mas quais novas configurações de
poder, dominação ou, alternativamente, de emancipação surgirão das suas ruínas
ou da sua transformação. De um lado, o risco da consolidação de novos
autoritarismos é real, potencializado por tecnolo gias digitais e algoritmos
comandados por uma nova elite que potencializa (impulsiona artificialmente) o
pensamento extremista de direita e logicamente inviabiliza as tentativas de
mobilização do campo oposto, e esse controle e manipulação da informação em
massa não está presente em um país apenas, mas em escala global, como nunca
experimentamos na história da humanidade.
Estes mecanismos de controle podem assumir formas diversas,
desde regimes abertamente ditatoriais até democracias iliberais dóceis, que
mantêm uma fachada de normalidade democrática enquanto corroem direitos e
liberdades fundamentais do seu povo como se fossem decisões soberanas de seus
executivos, parlamentos e judiciário. De outro lado, contudo, persistem e se
renovam as lutas por alternativas emancipatórias, ancoradas em práticas de
democracia direta e participativa, na busca por uma nova sociedade, se for
disruptiva, que seja, mas buscando uma justiça social, econômica radical,
humanista e internacionalista.
A análise informada por pensadores como Lukács, Gramsci, Chomsky e Bobbio,
entre outros, converge ao indicar que uma superação progressista da crise
dificilmente ocorrerá dentro dos marcos conceituais e das estruturas de poder
do capitalismo liberal, neoliberal, ou quaisquer de seus novos engendros para
se reinventar. Exigirá, provavelmente, um rompimento com a lógica da
mercantilização de todas as esferas da vida, a democratização profunda das
estruturas econômicas e políticas, e a reconstrução da cooperação internacional
sobre bases mais justas e igualitárias, rompendo sem olhar para tr&aac
ute;s, se não com tudo, mas com muito do que aí está, essa roupa nunca nos serviu
e não há de ser agora que servirá. O dilema histórico formulado por Rosa
Luxemburgo ecoa com força nos dias atuais: "Socialismo ou Barbárie!".
Cláudio Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de
Pernambuco.
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Leia também: Quem ressuscitou o fascismo? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/neofascismo.html
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