O inferno dentro dos galpões do e-commerce
Um clique no aplicativo, e pronto. Mas, nos bastidores das plataformas
como o Mercado Livre, Shopee e Magalu, o tempo é comprimido e as metas são
desumanas. E assim avança a “subjetividade logística” em tempos de consumo
urgente
Gabriel Teles/Le Monde Diplomatique Brasil/Outras Palavras
“O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é, no máximo, a carcaça do
tempo.”
Karl Marx, A miséria da filosofia, 1847
No dia 8 de abril de 2025, o presidente Lula visitou o centro de distribuição
do Mercado Livre em Cajamar (SP) e celebrou, com entusiasmo, os investimentos
da empresa, símbolo, segundo ele, da vitalidade econômica do país. No entanto,
a cena real não era de festa: naquele mesmo espaço, pouco mais de um ano antes,
Luiz Felipe – jovem trabalhador terceirizado – tirou a própria vida minutos
após ser demitido. O corpo, segundo colegas, permaneceu ali, encoberto por uma
lona enquanto os demais eram forçados a continuar a jornada como se nada
houvesse acontecido. A empresa negou. Os relatos dizem o contrário. O trabalho
não parou. O lucro, tampouco.
Enquanto o governo comemora os R$ 34 bilhões em investimentos da
plataforma, trabalhadores denunciam metas desumanas – até 120 entregas por hora
–, calor sufocante, assédio moral e o esgotamento físico e psíquico como
rotina. O Mercado Livre, segunda empresa mais valiosa da América Latina, dobra
seu lucro. Já seus funcionários, muitos nem recebem um salário mínimo. Lula
disse ter visto “alegria” nos rostos. Contudo, o que ali se vê é a face limpa
da máquina suja da exploração: a estética da eficiência encobrindo o suor, o
medo e o luto.
A visita presidencial ao centro logístico do Mercado Livre não é apenas
um evento midiático – é um símbolo revelador da naturalização da precarização e
da estetização da exploração. Aproveitando esse episódio emblemático, lançamos
luz sobre aquilo que costuma permanecer nas sombras: as condições concretas de
trabalho nos galpões logísticos das plataformas de e-commerce.
Entre o clique e o cansaço, este ensaio busca expor as engrenagens ocultas do
capitalismo digital e os novos rostos da exploração que movem, silenciosamente,
a “economia da velocidade”.
***
Vivemos a era da mercadoria veloz. Um clique no aplicativo, e uma cadeia
invisível de armazenagem, triagem, deslocamento e entrega se colocam em
movimento. Tudo parece simples. Tudo parece leve. Mas essa leveza é enganosa:
ela repousa sobre a intensificação brutal do trabalho em galpões logísticos que
cercam nossas cidades como fortalezas do capital digital.
A estética da instantaneidade – do rastreamento em tempo real, da
entrega no mesmo dia, da vitrine virtual permanentemente abastecida – exige uma
infraestrutura oculta. Essa infraestrutura não é feita apenas de inteligência
artificial, robôs e softwares. É feita, sobretudo, de braços, pernas e espinhas
tensionadas: trabalhadores e trabalhadoras que movem, embalam, separam e
etiquetam, dia e noite, em jornadas marcadas pela vigilância e pela aceleração.
O processo logístico dentro desses galpões segue etapas rigorosas e interligadas:
recebimento, triagem, armazenagem, separação (picking), embalagem (packing)
e expedição. Quando as mercadorias chegam ao centro de distribuição, passam por
conferência e triagem – onde são checadas, escaneadas e redirecionadas para o
armazenamento. No momento do pedido, o sistema automatizado aciona um
trabalhador para localizar o produto no galpão. A tarefa é guiada por um
coletor de dados portátil que indica, em tempo real, onde está o item, qual o
trajeto mais curto e em quanto tempo ele deve ser apanhado. Após a coleta, o
produto é levado para a área de embalagem, onde outro trabalhador o acondiciona
segundo padrões rígidos de proteção e eficiência. Por fim, a mercadoria é
separada por rota e destino e enviada &agrav e; expedição, onde veículos
aguardam para cumprir as entregas em ritmos cada vez mais estreitos. Todo esse
processo é cronometrado, metrificado e constantemente recalibrado por
algoritmos.
Nos bastidores das grandes plataformas de e-commerce, como
Mercado Livre, Shopee, Magalu, Aliexpress, Amazon e tantas outras, opera-se uma
reinvenção das formas de exploração do trabalho. Galpões logísticos funcionam
como fábricas sem chão de fábrica – espaços onde o tempo do capital se sobrepõe
a qualquer noção de tempo humano. A cada nova encomenda, o trabalhador é
convocado a correr mais rápido, render mais, falhar menos. Não há linha de
montagem, mas há sensores, metas, escâneres e algoritmos. O corpo se curva à
lógica da precisão.
A logística, nesse contexto, não é um detalhe técnico: é um dos aspectos
indispensáveis do capitalismo contemporâneo. É por ela que o
capital se move, se realiza, se valoriza. A rotação contínua de mercadorias,
comandada por softwares e plataformas, acelera a circulação e comprime o tempo
entre produção e consumo. Como afirmaria Marx: a lógica da acumulação exige que
o capital jamais repouse: ele precisa circular sem cessar, como o sangue de um
corpo hiperativo, incapaz de dormir.
Essa aceleração da circulação impõe, como contrapartida, a aceleração da
vida. Nossa experiência cotidiana é moldada por essa exigência de prontidão
permanente. Queremos tudo agora, em tempo real, com rastreamento em segundos –
e, com isso, reconfiguramos também nossa forma de existir. A espera vira
defeito. O cansaço, uma falha moral. A lógica logística penetra nossas
subjetividades, transformando nossa própria vida em operação contínua.
A promessa de fluidez exterior exige um corpo interior permanentemente
mobilizado. A logística, ao reorganizar o espaço e o tempo em função da
entrega, também reorganiza o desejo: nos tornamos sujeitos da urgência, da
impaciência, da performance. A “subjetividade logística” não é apenas aquela
que consome rápido; é aquela que se consome no ritmo do capital.
O que se convencionou chamar de “taylorismo digital” ou “novo toyotismo”
é a oportunidade de leitura para compreender essa fusão do arcaico com o hiperconectado.
Trata-se da reatualização do velho projeto de Frederick Taylor, que via o
trabalhador como um apêndice da máquina, a ser controlado, ritmado,
cronometrado. Mas, agora, essa lógica se vê potencializada por sensores,
algoritmos, inteligência artificial e big data. O operário não apenas executa
tarefas repetitivas: ele é rastreado em tempo real, com cada movimento
traduzido em métricas de desempenho.
O velho cronômetro da fábrica foi substituído por painéis digitais
e dashboards gerenciais. A linha de montagem, por corredores
de prateleiras onde o corpo caminha quilômetros por dia sob ordens silenciosas
transmitidas por aplicativos. A vigilância direta do supervisor foi deslocada
para a vigilância automatizada da nuvem. O resultado, no entanto, é o mesmo:
extração máxima de energia humana, compressão do tempo, esvaziamento da
subjetividade.
O taylorismo digital não é ruptura – é atualização. Uma atualização que
leva adiante o princípio fundamental da racionalidade capitalista: controlar o
tempo do trabalhador para maximizar a produção de valor. Se antes o corpo era
disciplinado pela repetição mecânica, hoje é pela adaptabilidade contínua a
metas variáveis, ajustadas segundo cálculos em tempo real. A figura do
trabalhador multitarefa e “resiliente” não é mais uma virtude – é uma imposição
estrutural.
Se Marx atravessasse o século XXI, veria nestes galpões a continuidade
ampliada da alienação do trabalho. Veria que, longe de termos superado as
contradições do capital, as aprofundamos sob novos disfarces. A mercadoria
continua encantada, mas agora com sensores e QR codes; o
trabalhador segue expropriado de seu tempo e de sua subjetividade, mas agora
algoritmicamente compelido à autoexploração. O que antes era o relógio fabril,
hoje é o sistema de rastreamento de performance; o que era o capataz, hoje é o
software de produtividade em tempo real.
Para Marx, o capitalismo não apenas explora: ele oculta as relações
sociais sob a forma-coisa. No e-commerce, essa ocultação é radical.
A mercadoria chega “sozinha” ao consumidor, como se não passasse pelas mãos de
ninguém. A tecnologia aqui não liberta: vela. O que vemos é o ápice da
reificação – o apagamento do trabalho vivo por trás da aparência objetiva de
eficiência tecnológica.
Esses galpões não são apenas locais de trabalho: são espaços de
disciplinamento. A tecnologia, longe de emancipar o trabalho, funciona como sua
coleira. Ela torna visível cada movimento do corpo, convertendo gestos em
dados, corpos em gráficos, fadiga em falha de desempenho. A produção não termina
com a embalagem da mercadoria: ela se estende até o último nervo do
trabalhador, até sua capacidade de seguir funcionando sem descanso.
Entretanto, esse cenário não é novo. O que há de novo é sua velocidade,
sua escala, sua aparência de normalidade. A exploração se atualiza, mas não se
transforma em outra coisa. O velho capital, agora de tênis e nuvem, ainda suga
trabalho vivo para animar a mercadoria morta. A lógica do mais-valor permanece
intacta, apenas mais veloz, mais conectada, mais automatizada.
No Brasil, o avanço desse modelo se acentuou após a pandemia de
Covid-19. Sob o pretexto da eficiência e da retomada econômica, expandiram-se
os centros logísticos, multiplicaram-se os contratos temporários e se
naturalizou o ritmo insustentável da entrega expressa. O que não se vê – ou não
se quer ver – é o corpo adoecido, o adoecimento mental, as lombalgias crônicas,
o sofrimento silenciado entre as prateleiras.
A crítica marxista nos ensina que a mercadoria oculta a relação social
que a produziu. No caso do e-commerce, essa ocultação atinge o
paroxismo: a experiência de consumo se apresenta como mágica, enquanto o
sofrimento do trabalho é apagado do imaginário social. O desafio está em romper
esse feitiço. Mostrar que o clique não é leve, que o rastreamento tem cheiro de
suor, que a entrega tem um custo que não está na etiqueta do produto – mas na
carne de quem o movimenta.
Não é contra a tecnologia que devemos lutar. É contra sua colonização
pelo capital. Contra seu uso como instrumento de extração, vigilância e
esvaziamento da vida. O que está em disputa não é apenas o controle dos meios
de produção, mas o controle do tempo, do espaço, da experiência sensível. O que
está em disputa é o que pode um corpo – um corpo que não seja apenas vetor de
produtividade, mas de imaginação, de pausa, de recusa.
O taylorismo digital mostra que o capital não esquece. Ele reaproveita
suas engrenagens mais brutais sob as tintas brilhantes da inovação. Porém,
também revela sua fragilidade: depende da disciplina dos corpos, da cooperação
forçada, da ausência de alternativas visíveis. Por isso, resistir é antes de
tudo tornar visível. Tornar legível o cansaço. Reivindicar o tempo. Devolver ao
gesto humano a densidade que o algoritmo tenta suprimir.
A luta começa quando os trabalhadores dizem não ao ritmo que os esgota.
Porque entre o clique e o cansaço existe um campo de conflito – e nele,
trabalhadores seguem inventando formas de resistência. Seja na recusa ao ritmo
imposto, na construção de solidariedades ou na denúncia das violências
cotidianas, pulsa a possibilidade de outra organização do trabalho. Uma em que
a técnica não sirva ao capital, mas à liberdade. Em que o tempo não seja
capturado pela mercadoria, mas devolvido à vida.
Gabriel Teles é sociólogo.
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Leia: Quem defende o quê? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_27.html
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