Pranto para o homem que não sabia chorar
Carlos Heitor Cony
Havia quitandas naquele tempo. Vendiam verduras, legumes, ovos, algumas chegavam a vender galinhas em pé, quer dizer, vivas, mas eram poucas, pois todas as casas tinham quintal e todos os quintais tinham galinhas. Ia esquecendo: as quitandas mais sortidas tinham à porta, bem visíveis aos passantes, um feixe de varas de marmelo.
Para que
serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os pais comprarem uma delas e
a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível aos filhos. Quem nunca tomou
uma surra de vara de marmelo não pode saber o que é a vida, de que ela é feita,
de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: “Quem nunca passou pela rua tal às
cinco da tarde não sabe o que é a vida”. A frase não é bem essa, mas o sentido
é esse.
Uma surra de
vara de marmelo era o recurso mais eficaz para colocar a prole em bom estado de
moralidade e bom comportamento. Acima dela, só havia o recurso capital de
ameaçar o filho com um colégio interno da época: Caraça! Ir para o Caraça, a
possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de morte, uma condenação ao
inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem futuro.
Houve a tarde
em que o irmão mais velho fez uma lambança com umas tintas que o pai comprara
para pintar a casa de Segredo, o cachorro, que era solto à noite para evitar
que os amigos do alheio pulassem para o quintal e roubassem as galinhas
-repito, todas as casas tinham galinhas.
E “amigos do
alheio” era uma expressão, uma metáfora civilizada que os jornais usavam para
se referirem aos ladrões de qualquer coisa, inclusive de galinhas.
Pois o irmão
foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai então proferiu a sentença que
ele jamais esqueceria:
Homem não chora!
Em surras
seguintes e sucessivas, com a mesma vara de marmelo (ela nunca se quebrava, por
mais violenta que tivesse sido a surra anterior), o irmão tinha o direito de
gritar, de urrar, de grunhir como um leitão na hora em que entra na faca, mas
não de chorar.
Por isso,
mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele sabia que um homem não pode
chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de marmelo. O vizinho do Lins, que
tinha um filho considerado perdido, percebendo que a vara de marmelo era
ineficaz como um remédio com data de validade vencida, adotou uma tira de
borracha que servira de pneu a um velocípede desativado. Tal como a vara de
marmelo, era maleável mas inquebrável, deixava lanhos nas pernas do filho -que
mais tarde chegaria a ser capitão-do-mar-e-guerra, medalhado não em guerra nem
em mar, mas por tempo de serviço.
Homem não
chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem e jamais choraria. O irmão,
sim, era um bezerro desmamado, chorava à toa, nem precisava de vara de marmelo.
Chorou no dia em que Segredo morreu envenenado -um amigo do alheio, antes de
pular no quintal, jogou-lhe um pedaço de carne com arsênico.
Chorou mais
tarde, quase homem feito. Esquecido de que homem não chora, ele chorou quando o
Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do Mundo de 1950. Não era homem.
Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o estádio emudeceu e logo depois
chorava, seguramente o maior pranto coletivo da história da humanidade, 200 mil
pessoas que não eram homens, chorando sem vergonha de não serem homens.
Ele não podia
ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta e meia forçava a barra, lembrava
as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia em que o pai o colocou de castigo,
atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A perda da medalhinha de Nossa Senhora
de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro que, segundo a
madrinha, o livraria de todo o mal, amém. Não chorou nem mesmo quando, naquela
primeira noite após a morte de sua mãe, ele se sentiu sozinho na vida e perdido
no mundo.
Daí lhe veio a
certeza. Poder chorar até que podia. O diabo é que ele não sabia mesmo chorar.
Chorar é como o samba que não se aprende na escola: ou se nasce sabendo, ou
nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou de que os outros chorassem
errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão, que era um Phd na matéria,
quando chorava, fazia um embrulho de coisas e desditas, um mix de quebrações de
cara e obtinha um pranto copioso, sincero, lágrima puxando lágrima, soluço
puxando soluço.
Quando perdeu
uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para o quarto do hotel, bebeu meia
garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou dizendo que, passados 40 e
tantos anos, ainda estava chorando pela morte de Segredo.
Tivera ele
essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de “dom das lágrimas”! José, vendido
por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se poderoso e um dia recebeu os
irmãos que o procuraram para matar a fome. Os irmãos não o reconheceram. José
perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um canto para chorar. Depois, sim,
deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que o venderam.
Jesus chorou
quando soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é um dom, e ele não
mereceu esse dom nem mesmo quando Débora foi embora de seus sonhos e, como nos
tangos, nunca mais voltou.
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