Graciliano Ramos, um escritor comunista
José
Carlos Ruy, no portal Vermelho
Poucos escritores brasileiros merecem, como
Graciliano Ramos - cujo centenário foi comemorado em 27 de outubro de 1992 - a
qualificação de clássico. Existem muitos, com obras de alto nível artístico que
iluminam aspectos parciais dos sentimentos e modo de vida de nosso povo.
Porém
nem todos conseguiram criar situações, tramas e personagens capazes de
sintetizar as contradições típicas do desenvolvimento histórico e social e o
reflexo dessas condições objetivas na subjetividade e na vida mental dos
brasileiros.
Até
que se tenha uma definição melhor, é a dialética do singular, do particular e
do universal que torna uma obra clássica. Clássica porque extrapola os limites
estreitos dessa particularidade e singularidade e se dirige a todos os homens,
distantes no espaço e no tempo. É como se o escritor, ou o artista, descrevesse
tipos humanos únicos, particulares, acrescentando-os ao imenso catálogo com
representantes de todas as épocas e todos os povos, enriquecendo o registro da
experiência histórica concreta da espécie humana em sua multifacética e rica
variedade de manifestações sociais e existenciais.
Graciliano
Ramos conseguiu registrar artisticamente os profundos conflitos humanos, a
desorganização e reorganização da vida provocadas pelo impacto do
desenvolvimento capitalista brasileiro partir da década de 1930, época em que a
modernização da sociedade se acelerou sob a hegemonia conservadora. O modo de
produção capitalista consolidou seu domínio sobre o conjunto da sociedade
redefinindo as relações sociais e subordinando todas elas ao capitalismo, à
lógica da acumulação e reprodução do capital.
Este
é o quadro de transformações aceleradas e perturbadoras em que se movem
personagens como Paulo Honório, Madalena, Luís da Silva, Julião Tavares,
Fabiano, Sinhá Vitória e tantos outros.
Em
seu destino pessoal eles representam também o destino das classes sociais. No
ensaio Graciliano Ramos (1965) Carlos Nelson Coutinho escreveu: “Nesta fusão de
indivíduo e classe reside um dos pontos mais altos do realismo de Graciliano.
Seus personagens são sempre tipos autênticos precisamente na medida em que
expressam em suas ações o máximo de possibilidades contidas nas classes sociais
a que pertencem”. Destino pessoal e destino de classe confundem-se na
trajetória de seus personagens.
Luís
da Silva (Angústia, 1936) e Madalena (São Bernardo, 1934) são pequeno-burgueses
inconformados com sua existência opressiva e alienada, desejosos de subir na
vida, apavorados com a perspectiva de proletarização. Incapazes de compreender
as forças que comandam seus destinos são também incapazes de lutar contra elas.
Seus destinos melancólicos e trágicos são marcados pela impotência e pelo
ressentimento.
Paulo
Honório, o camponês que se tornou latifundiário (São Bernardo) e Fabiano (Vidas
Secas, 1947) parecem encarnar dois destinos antagônicos para personagens de
origem social semelhante.
Astuto,
Paulo Honório consegue dominar as possibilidades de ascensão abertas pelo
capitalismo. Negocia, trapaceia, abre caminho sem medir esforços nem
escrúpulos. Usa o poder do dinheiro para - como um Fausto sertanejo – se impor
à decadente oligarquia rural. Dedica sua vida a se tornar ele próprio um
latifundiário. Consegue colocar-se acima de sua classe, como conclui no final
do romance. Conseguiu tornar-se “um explorador feroz”, brutal e egoísta, como
amargamente reconheceu.
A
saga de Fabiano começa no mesmo ponto de onde Paulo Honório partiu: a estreita,
pobre, mesquinha vida do camponês do Nordeste, massacrado pelo latifúndio e
maltratado pela natureza.
Sua insatisfação - e dos seus -
compara-se à animalidade da cachorra Baleia: querem apenas se manterem vivos e,
depois, se possível, obter alguns modestos luxos, como a cama de couro que
Sinhá Vitória queria.
Ao contrário de Paulo Honório,
Fabiano busca seus meios de vida zanzando de fazenda em fazenda até que o
destino - semelhante ao de multidões nordestinas - o coloca na estrada para a
cidade e os centros industrializados do litoral e, depois, do Sul.
O mais miserável e mais rústico
dos personagens de Graciliano é, contraditoriamente, o portador do futuro: na
cidade ficará completa e acabada sua condição de vendedor da força de trabalho
no mercado capitalista. Ele será um operário; seus filhos serão operários, num
mundo novo com contradições de outra natureza, que só poderão ser superadas
pela luta da classe operária e dos demais trabalhadores pelo socialismo.
Assim o destino de Fabiano
indica o sentido do desenvolvimento da sociedade brasileira, dos trabalhadores
brasileiros, colocando-os - juntamente com a sociedade - num novo patamar onde
as contradições da vida rural e camponesa são superadas e substituídas pelas
contradições próprias da sociedade capitalista.
Escritor comunista, o marxismo
de Graciliano Ramos jamais lhe permitiu a subordinação às imposições normativas
características do zdanovismo e seu realismo “socialista” na construção de suas
obras.
Artesão exigente e minucioso do
idioma, escritor enxuto, da palavra exata, a forma artística se subordinava nas
obras de Graciliano à resolução do conteúdo.
O estilo memorialístico de São
Bernardo, o obsessivo monólogo interior de Angústia, a aparente descontinuidade
e fragmentação de Vidas Secas, subordinam-se rigorosamente às necessidades da
trama, da exposição da psicologia do personagem, da criação do ambiente social
e cultural onde eles se movem e da forma como esse ambiente externo, objetivo,
se reflete em seu espírito condicionando-o e moldando suas ações.
Nas obras de Graciliano o
socialismo emerge dessas contradições, como saída para os conflitos sociais e
humanos retratados. Emerge de forma implícita, necessária, inscrita no
desenvolvimento das situações e contradições descritas. Graciliano não caiu na
tentação do populismo fácil e pseudo democrático praticado por tantos
escritores de sua época, que reproduziram de forma maniqueísta a consciência popular.
Eles não hierarquizaram as formas de manifestação dessa consciência., mas as
abordaram de maneira acrítica e valorizando-as todas igualmente. Ora, a
consciência dos homens reflete de forma muitas vezes alienada e distorcida as
contradições da época em que vivem, enfrentadas no dia a dia. Se todos os
homens tivessem espontaneamente uma consciência clara e precisa das condições
de dominação, as sociedades divididas em classe nunca poderiam ter existido!
Na obra daqueles escritores
populistas o socialismo aparece como um objetivo artificial, que não decorre da
resolução da trama mas da mera vontade do escritor de colocar essa bandeira na
boca dos personagens.
Estas são algumas das características que fazem de
Graciliano Ramos um clássico, no sentido universal. Um escritor que não temia
imposições e enfrentou as contradições colocadas pela vida. Que não buscou
soluções literárias fáceis e artificiais para essas contradições. Que não
tentou, de forma também artificial, resolver essas contradições em suas obras
mas que escreveu pela necessidade de registrar, de forma artística, as
dificuldades, mazelas e esperanças da vida de seu povo. E que, dessa forma,
contribuiu como poucos para uma consciência mais profunda dos problemas da
sociedade brasileira e das possibilidades que seu desenvolvimento promete. E
ajudou a ampliar aquele catálogo de tipos humanos referido acima, de
personagens característicos da vida nesta parte do mundo e num período da
história: o contraditório período em que o modo de produção capitalista se
tornou hegemônico na formação social brasileira. Publicado originalmente em A Classe Operária, 26/10/1992
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