Brasil
made in USA: o que é mau lá aqui faz o mesmo estrago
Risco a que Bolsonaro e seguidores
submetem a eleição reproduz o que levou à insegurança americana
Janio de Freitas, Folha de S.
Paulo
Os americanos
estão vivendo um sadomasoquismo nacional com fins imprevisíveis: experimentam
as aflições latino-americanas incutidas pelos Estados Unidos por mais de um
século. Sem interrupção, sem que um só dos países independentes na região, ou
em vias de sê-lo, passasse à história como virgem na violação em massa do
direito de conduzir-se.
O suspense dos
Estados Unidos entre a salvação do seu sistema legal e a vitória da
irracionalidade despertada por Trump é,
na essência, um sentimento latino-americano, lá vivido com características
locais.
A
passividade dos latino-americanos ante sua expectativa é, nos americanos, uma
queda livre desde as alturas de sua autoimagem até ao estranhamento da própria
identidade. A pessoal e a do país. Perplexidade diferente, mas não ausente no
lado insurreto, cuja fúria não tem fins definidos, nem nos incapazes de defesa
eficaz.
Nesse estado
confuso, os poderes políticos, da imprensa/TV e dos demais setores influentes
nem sequer foram capazes de ir além da expressão "ameaça à democracia
americana", para rotular sua percepção temerosa. O como, o porquê e o para
quê não atravessam o choque de realidade ou a incredulidade forçada.
À margem,
cresce o uso da expressão "ameaça de guerra civil", impossível saber
se por exagero ou lucidez no país belicoso e de população armada. Mas tanto os
reprimidos como os avançados buscam socorro, em vão, na pergunta a que muitos
nem quereriam responder: como foi possível os Estados Unidos chegarem a isso?
Os inumeráveis
fatores não se opõem a uma resposta algo simplória e, no entanto, sintetizadora
e real: por interesse ou covardia, as forças influentes deixaram que Trump e a
extrema-direita ambiciosa derrubassem sucessivos limites do regime democrático.
A reação foi apenas palavrosa e contida, de parte da imprensa e de tevês;
reação quase zero das instituições civis tão fortes nos Estados Unidos, e até
adesão proveitosa ao trumpismo no empresariado e seu poder incontrastável.
Se o que é bom
para os Estados Unidos é bom para o Brasil, como rezava a ditadura militar
aqui, o que lá é mau faz aqui o mesmo estrago. Nessa linha, o alto risco a que Bolsonaro e
seus seguidores submetem a eleição, em outubro, é uma visão que reproduz
bastante o que levou à insegurança do regime americano e se passa na sua
dificuldade de resposta à altura.
Bolsonaro
retoma a pregação contra o sistema eleitoral, volta a acusar
fraudes na eleição presidencial passada, ataca o Supremo e o
Tribunal Superior Eleitoral, entrega a liberação das verbas orçamentárias a um
líder (no mínimo) suspeito do centrão. Mas há notícia de que o poder
empresarial se movimenta, com propósitos de fato eleitorais, como a busca de um
nome viável contra Lula e Bolsonaro. Exceto meia dúzia, porém, esses
empresários se encolhem no anonimato. "Por medo de represália."
Outro
indicador a respeito, também publicado
na Folha por Cynthia Rosenburg:
"O articulador de um grupo afirma que não houve conversas apenas com
Bolsonaro, porque entende que não há diálogo possível com o presidente, e nem
com Luiz Inácio Lula da Silva —nesse caso a justificativa é a recusa em dar
palco ao petista". Como tal decisão não foi reconsiderada, houve
concordância do grupo.
Trata-se de um
estreitamento do horizonte mental, o predomínio do pré-conceito sobre o
encontro com a possibilidade do questionamento, do convencimento, da
compreensão cancelada pelo interesse e a covardia. É o anticidadão em sua
plenitude. Sua busca não é a do melhor candidato, é a do eleito que lhe seja
pessoalmente proveitoso.
A notícia
alvissareira —uma palavra bem velha para um velho fracasso da nossa
democracia—, de movimentos empresariais pró-eleição, contém uma advertência:
apesar do retrocesso de que o Brasil ou se recupera em poucos anos ou não se
recupera mais, ainda é incerta a posição do poder empresarial caso ocorra o que
se teme no processo eleitoral deste ano. E incerteza, no caso, não significa
equilíbrio das probabilidades.
Assim como militares se
vacinarem, seguindo seus inspiradores desenvolvidos, não é
afastamento na relação com Bolsonaro. É afastamento da Covid, e olhe lá.
.
A mentira o desgasta e enfraquece; mas o mantém conectado à sua base https://t.co/Dp8f13AzZ4
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