22 outubro 2022

Multinacionais privilegiadas

Patentes: a nova ameaça de Bolsonaro à Saúde do Brasil

GTPI denuncia: em conluio com a Big Pharma, governo prepara retrocessos em série – inclusive reconhecer “propriedade” de corporações sobre seres vivos. Medidas podem ser grande retrocesso no acesso a medicamentos – e turbinar os lucros das transnacionais
Gabriela Leite, OutraSaúde

 

A indústria farmacêutica, em especial as empresas transnacionais, contam com espaço privilegiado nos locais de tomadas de decisão do governo Bolsonaro. É o que perceberam os membros do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) e da Associação Nacional dos Pesquisadores em Propriedade Intelectual (Anpespi), que participaram dos chamados Diálogos Técnicos, promovidos pelo ministério da Economia para debater patentes. As entidades decidiram deixar de fazer parte do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual ao perceberem que se tratava de uma farsa conduzida para dar ares democráticos a decisões em favor de corporações da Big Pharma. E pior: enxergaram que o caminho está aberto para enormes passos atrás no que diz respeito ao acesso a medicamentos.

É o que transparece na Nota de Desligamento do GTPI, publicada ontem: “Ficou claro que, com essas reuniões, o objetivo do ministério da Economia era utilizar a participação da sociedade civil organizada e de outros atores para legitimar e promover uma das piores reformas do sistema nacional de propriedade intelectual — a qual tem o potencial de trazer consequências extremamente negativas para a concretização do direito à saúde e de outros direitos fundamentais”. A Anpespi também redigiu nota com seu depoimento sobre as reuniões.

Segundo Alan Silva, advogado do GTPI, a sociedade civil tem representação ínfima nos Diálogos Técnicos, em relação à intensa ação de advogados de grandes empresas da indústria farmacêutica. Desde o início, os membros do grupo perceberam que a sua participação era só de fachada. E houve diversos indícios de que as empresas tinham prioridade – o que fez o GTPI enxergar de fato uma “coalizão” entre elas e o governo. Prazos ínfimos para apresentação de contribuições para a discussão de tópicos importantes, redação de relatórios que claramente ignoram as contribuições do grupo e a escolha por fazer votação em um quórum desproporcionalmente representado pela indústria estão entre os problemas enxergados pelo GTPI. Segundo o advogado, “o nosso sistema de propriedade intelectual já é extremamente nocivo para o interesse público, já beneficia de maneira extremamente desproporcional os interesses privados”.


“Foi na verdade um grande teatro. Os diálogos não eram técnicos coisa nenhuma: eles já tinham um lado e já tinham ‘soluções’ a que gostariam de chegar”, lamenta Alan. Os representantes da indústria transnacional, segundo ele, agem de forma muito agressiva nas reuniões, escancarando sua pressa. A prioridade número um, ficou claro, é a de extensão do prazo de vigência das patentes – algo que já foi declarado inconstitucional pelo STF em 2021, mas que o lobby busca contornar por meio do poder executivo. A coalizão indústria transnacional-governo Bolsonaro busca elaborar uma grande proposta de reforma administrativa que deve mudar diversos pontos em relação à propriedade intelectual, diminuindo o domínio público e beneficiando grandes empresas. E alguns deles são tenebrosos até do ponto de vista moral e ético, explica Alan.

Entre os pontos debatidos, dois chamam a atenção. Um deles é o desejo da indústria farmacêutica de patentear microrganismos e fragmentos de seres vivos. Isso atenta frontalmente contra o que se entende internacionalmente como propriedade intelectual: é preciso que se trate de uma invenção e que tenha aplicação industrial. “Não é razoável a possibilidade de uma empresa se apropriar e ter exclusividade sobre seres vivos em nome do lucro”, defende Alan. Ele vê, além de problemas éticos, um projeto de “neocolonialismo exacerbado”: grandes empresas vêm ao Brasil, retiram seus recursos naturais – de enorme potencial, levando em conta a riqueza da Amazônia – e depois vendem a preços altíssimos para os brasileiros.

Outro ponto debatido nos Diálogos Técnicos de grande preocupação é a intenção de que seja possível patentear não apenas fármacos, mas também combinações, dosagens e

métodos terapêuticos. Alan aponta a gravidade da questão: “mesmo quando um medicamento já caiu em domínio público, o método de tratamento que utiliza esse medicamento pode ser patenteado, estendendo ainda mais o período de monopólio sobre um conhecimento que pode salvar vidas”. Continua: “Determinados agentes econômicos defendem medidas para maximizar seus lucros, completamente insensíveis ao sofrimento que isso pode trazer, com o agravamento do quadro de saúde pública que temos no país, no meio de uma das maiores crises da nossa história”.

Falando em crise… Alan reflete sobre o grande perigo que enfrentamos, com uma possível reeleição de Bolsonaro, inclusive em relação à questão de medicamentos e das patentes que beneficiam apenas as grandes empresas: “A continuidade desse governo representaria a continuidade de uma política de propriedade intelectual extremamente subserviente aos interesses dos países desenvolvidos e de empresas transnacionais do Norte Global. Ou seja, representaria a morte desnecessária de milhares de brasileiros”.

Leia também: Como a financeirização da saúde se apropria do SUS https://bit.ly/3SX98Vn

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