Os grandes desafios da Enfermagem Intercultural
Encontro pioneiro em Pernambuco reflete sobre como o SUS pode
atender populações não-brancas e marginalizadas em meio a seus padrões
culturais. Olhar atento à diversidade é essencial para garantir equidade do
sistema de saúde, em especial na Atenção Primária
Gabriel Brito, OutraSaúde
De que maneira incluir, no SUS, populações com questões singulares, como
os indígenas, quilombolas, imigrantes e LGBTQIA+? A Enfermagem pode contribuir
para sua integração? Aconteceu na cidade de Caruaru, em Pernambuco, o primeiro
Encontro de Enfermagem Intercultural, em 28 de setembro, com discussões em
torno dessas perguntas. A iniciativa também incluiu setores mais invisíveis,
como população carcerária e mulheres que trabalham na própria área da
enfermagem e chefiam lares.
Um dos princípios SUS, da maneira como foi idealizado, é o de equidade:
ao compreender as desparidades do país, o sistema busca tratar desigualmente os
desiguais, investindo mais onde a carência é maior. Pensando nisso, o Conselho
Federal de Enfermagem (Cofen) criou a Comissão Nacional de Enfermagem em Saúde
Intercultural. Trata-se de “assessorar na elaboração de estudos e apresentação
de ações, propostas e pareceres relativos às questões relacionadas com
profissionais de saúde de comunidades tradicionais pelos grupos identificados
(indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos e extrativistas), LGBTQIA+ e
imigrantes”.
Trata-se de um aprimoramento do conceito dito transversal de saúde
pública, reconhecendo, ainda, a integração dos diferentes saberes e culturas,
que podem ser usados para fortalecer políticas públicas. “Precisamos subsidiar
práticas mais equânimes no serviço de saúde pública dentro da garantia do
princípio da equidade, de tratar o diferente de forma diferente dentro de suas
necessidades em saúde”, explicou Gabriel Gomes, do Conselho Regional de
Enfermagem de Pernambuco, ao Outra Saúde.
O conceito é relativamente novo e pouco chegou ao público, inclusive
aquele que é alvo da iniciativa que visa aprimorar a Atenção Primária, a mais
utilizada pelo brasileiro e porta de entrada do SUS. O nome do evento –
“Interculturalidade, diversidade, equidade e cuidado: ressignificando a práxis
da Enfermagem” – demonstra as ambições inovadoras.
Diante do contexto de pandemia que vive o Brasil, com toda sua devastação
social e sanitária, vem muito bem a calhar. “A pandemia, claro, evidencia
outras questões para além da saúde epidemiológica e percebemos que alguns
segmentos dessas populações acabaram se expondo mais, porque o acesso ao SUS é
mais generalista e não conseguimos trabalhar a particularidade e a
individualidade”, explicou Gomes.
Trata-se, como dito por Gomes, de reduzir as desigualdades e compreender
as necessidades de grupos minoritários, pois suas necessidades variam de acordo
com o contexto socioeconômico vivido. E isso influi até na possibilidade de
acesso ao posto de saúde, que parece trivial mas também varia entre grupos
sociais e mesmo regiões e cidades do país.
Leia também: Como a financeirização da saúde se apropria
do SUS https://bit.ly/3SX98Vn
O desafio de criar uma enfermagem que enriquece a relação do SUS com
seus usuários é imenso se considerarmos o atual momento. Pois a política de
desmonte e desfinanciamento da saúde pública bate mais forte exatamente nesses
grupos abordados pela enfermagem intercultural – desde Saúde Indígena aos
remédios usados pelas parcelas mais pobres da população, mais excluídas e
precarizadas em seu cotidiano.
“O orçamento impacta diretamente nos serviços prestados à população como
todo. No contexto da interculturalidade não seria diferente. Percebemos que no
âmbito do SUS precisamos de um olhar mais voltado a esta causa e às populações
que se enquadram no perfil, para efetivamente se implantar programas. E
precisamos de um orçamento adequado para dar uma assistência mais equânime”,
explicou Gomes.
Leia aqui a entrevista com Gabriel Gomes e conheça mais sobre Enfermagem
Intercultural.
O que você pode contar do 1° Encontro de Enfermagem Intercultural
realizado em Caruaru na semana passada? O que seria uma “enfermagem
intercultural”?
Foi iniciativa da Câmara Técnica de Enfermagem Intercultural e atenção a
populações em situação de vulnerabilidade do Coren-PE. A enfermagem cultural se
debruça sobre o diálogo em diversas culturas, trabalhando ao princípio da
equidade. Nosso tema central foi a interculturalidade, diversidade, equidade e
cuidado na práxis da enfermagem, para colocar em pauta como essas questões
estão situadas dentro do trabalho de enfermagem em seus diversos cenários de
atuação.
Queremos promover diálogo e trabalhar na perspectiva de atenção, para
diminuir as diferenças na atenção à saúde, de acordo com o perfil de cada
população. Trouxemos conferências e discussões que se alicerçaram no contexto
da saúde indígena, população LGBTQIA+, negros(as), com perspectiva de combate
ao racismo.
A pandemia e todas as sequelas sociais, econômicas e, claro, sanitárias,
foram um fator importante na construção do evento e do conceito em si?
Somos uma câmara técnica voltada a este setor, mas existe uma comissão
nacional do Conselho Federal de Enfermagem. Para além do que a pandemia
colocou, há um resgate da ancestralidade, ao próprio processo de formação
social. Temos a marca das diferenças sociais na construção dos conceitos de
saúde e acesso aos bens e serviços do SUS.
Pensar no conceito e no contexto do exercício profissional de
enfermagem, de forma holística e integral, requer olhar para a questão da
interculturalidade e sua interferência na atenção e assistência à saúde.
A pandemia, claro, evidencia outras questões para além da saúde
epidemiológica e percebemos que alguns segmentos dessas populações acabaram se
expondo mais, porque o acesso ao SUS é mais generalista e não conseguimos
trabalhar a particularidade e a individualidade. Refletimos o contexto do país,
mas pensamos no cenário pós-pandêmico também.
Quais fatores levaram à criação deste conceito? Ele já vinha sendo
levado em conta no SUS?
Sim. No SUS já vinha sendo tratado em algumas políticas, em especial na
Saúde Indígena. Mas precisamos ampliar a questão, para não acabarmos trazendo
uma proposta transversal, aplicando técnica para uma área sem reconhecer na
integração os diferentes saberes e culturas, que podem ser usados para
fortalecer políticas públicas.
O entendimento que se tem é o de que temos de avançar na efetivação
desses conceitos e chegar cada vez mais próximos da essência da interculturalidade.
A partir da ruptura de alguns paradigmas que vamos avançar com essas políticas
públicas de saúde, fortalecer o SUS e ressignificar a política de imunização,
dentro do contexto da saúde pública em seu todo. Precisamos subsidiar práticas
mais equânimes no serviço de saúde pública dentro da garantia do princípio da
equidade de tratar o diferente de forma diferente dentro de suas necessidades
em saúde.
Há uma relação com saúde mental?
Sim, a proposta da saúde intercultural passa pela saúde mental. Não tem como
trabalhar a saúde, como proposto pela OMS – completo bem estar físico, mental e
cultural, não só ausência de doença – sem reconhecer a saúde intercultural como
algo que passa pela saúde mental.
À medida que garantimos política de inclusão conseguimos chegar em
populações vulneráveis e trabalhamos efetivamente neste sentido, reconhecendo
todos os fatores determinantes do processo de saúde-adoecimento. Passa por
questões de gênero, sociais, econômicas e culturais. Não obstante, a saúde
mental considera que a vulnerabilidade social influencia nesse aspecto e
favorece o adoecimento.
Leia também: As raízes e os males do tal orçamento
secreto https://bit.ly/3S2fFwA
Como o orçamento de 2023 e o próprio grupo político atualmente no
comando do país afetam as pautas debatidas por vocês no encontro? Uma
enfermagem intercultural não precisaria de um programa de alocação de recursos
específico?
O orçamento impacta diretamente nos serviços prestados à população como
todo. No contexto da interculturalidade não seria diferente. Percebemos que no
âmbito do SUS precisamos de um olhar mais voltado a esta causa e as populações
que se enquadram no perfil, para efetivamente se implantar programas. E
precisamos de um orçamento adequado para dar uma assistência mais equânime.
Se o gestor de saúde não tem essa sensibilidade, teremos cada vez mais
distanciamento entre o que está posto, do ponto de vista do SUS enquanto
proposta de saúde, e aquilo que de fato chegará na ponta, ao usuário. Afeta-se
o entendimento que se tem de o tema seja de fato levado às mesas de discussão
com maior frequência. Senão, acaba-se trabalhando de maneira muito transversal,
salvaguardadas ou direcionadas a própria conduta de cada profissional dentro
das linhas gerais de sua categoria, sem incentivo a algo mais específico.
Em Pernambuco há uma ampliação de tais discussões, estimuladas nas
discussões de políticas de saúde, mas precisamos avançar mais para garantir o
acesso à saúde a toda a população, em especial as mais vulneráveis. É
importante sim um olhar específico bem definido.
Leia também: Superar a pobreza herdada do modelo
econômico primário-exportador e a desigualdade generalizada pela modernidade
conservadora https://bit.ly/3ywU2he
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