03 março 2023

Previdência na França em questão

Capitalização, outro nome para a reforma da Previdência

As maiores manifestações da história de Rodez, Laval e Clermont-Ferrand; 200 mil pessoas em Marselha. A mobilização contra a reforma da Previdência na França é poderosa. Sem dúvida porque o desafio excede a idade da aposentadoria e do texto analisado no Parlamento. Nas ruas, também rejeitamos uma sociedade do cada um por si, em que a acumulação especulativa importa mais que a solidariedade
Grégory Rzepski/Le Monde Diplomatique



Todo mundo – ou quase – adora o sistema previdenciário de repartição. Até Emmanuel Macron. Um sistema no qual “quem trabalha paga por quem se aposentou”, explicava o presidente da França em 2019 em Rodez, “é nossa força”. A primeira-ministra, Élisabeth Borne, declarou que luta para evitar seu desaparecimento “em proveito da aposentadoria por capitalização, que encarna o reino do ‘cada um por si’”.1 Apenas alguns teimosos ainda se arriscam a defender que cada trabalhador em atividade deve financiar o essencial de sua própria aposentadoria por meio da poupança e do investimento. Um desses é David Lisnard, prefeito do Les Républicains (LR, direita) de Cannes, uma das cidades mais caras do mundo, onde 34% dos habitantes estão aposentados, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (Insee). Ou Philippe Juvin, deputado (LR) dos Hauts-de-Seine, que em 2021 embolsou 209.455 euros em renda líquida provenientes do acúmulo de seus mandatos e de sua atividade de médico.2 Ou então alguns think tanks muito resolutos – Fondation pour la Recherche sur les Administrations et les Politiques Publiques (Ifrap), de Agnès Verdier-Molinié, Instituts Molinari e Sapiens –, bem como seus porta-vozes, o diário L’Opinion e Dominique Seux na France Inter ou em Les Échos.
Com exceção dessas vozes raras, a repartição quase não encontra inimigos. No entanto, como constatava recentemente o Le Monde, ela “vai aos poucos cedendo terreno”.3 Se, em 2011, 9,7 milhões de pessoas se cotizavam em um regime empresarial facultativo de capitalização ou em produtos de poupança-aposentadoria individuais, já havia 15,3 milhões dez anos depois. No curso da década, o montante total das contribuições coletadas por esses diferentes dispositivos quase dobrou, chegando agora a perto de 20 bilhões de euros por ano. Assim, as prestações feitas em 2021 correspondiam a apenas 2,3% de todas as coletadas a título de aposentadoria, mas essa proporção, em constante elevação, deverá subir muito a médio prazo. De resto, as companhias de seguros já antecipam: em dez anos, o montante de suas provisões a título de aposentadorias complementares – isto é, as reservas constituídas a fim de garantir o pagamento de prestações futuras – aumentou em mais de 70% e ultrapassou os 250 bilhões de euros. Excede assim, em muito, o das reservas impostas pela lei a título de regimes complementares obrigatórios (Agirc-Arrco, principalmente), pouco inferiores a 150 bilhões de euros.4

Com o que sonham os sociais-democratas?

Como explicar tamanho avanço em uma população que não havia pedido nada? Como esse projeto prosperou em uma década, quando nem a reforma da assistência à velhice de Nicolas Sarkozy, em 2010, nem a de François Hollande, em 2013, previam a extensão do domínio das finanças às aposentadorias?
Nos anos 1980, em meio ao medo de um desequilíbrio entre trabalhadores ativos e aposentados, um debate sobre o recurso à capitalização se travou “com o apoio das instituições financeiras, particularmente do setor de seguros, que via aí um novo mercado”,5 explicaria Michel Laroque, ex-alto funcionário no Ministério dos Assuntos Sociais. A queda da Bolsa em 1987 – em 19 de outubro, na Bolsa de Nova York, o índice Dow Jones perdeu 22,6% – arrefeceu provisoriamente os ímpetos reformadores. Porém, no curso dos anos seguintes, os relatórios do Banco Mundial e a legislação da União Europeia difundiram e impuseram como legítima uma visão de aposentadoria baseada em três pilares – repartição, capitalização e poupança individual. Essas organizações internacionais contribuíram, assim, para encorajar a financeirização das pensões nas quais prevalece o imposto ou a cotização social.6 Em 1991, em L’Heure des Choix [A hora das escolhas] (Odile Jacob, Paris), Hollande e seu camarada socialista Pierre Moscovici puderam apresentar os fundos de pensão como um “sonho ao mesmo tempo capitalista e social-democrata” que “faz empalidecer o modelo francês, em que nossas empresas combinam, o mais das vezes, um endividamento elevado, em razão de taxas de juros proibitivas, e fundos próprios insuficientes, sem vínculo claro dos assalariados com o rumo da empresa”.
Foi a era da pedagogia e também da despolitização, em que o império dos especialistas esmagava as escolhas democráticas. A era, enfim, do entusiasmo da mídia com os modelos estrangeiros, cuja suposta modernidade tornava o social arcaico. Foi o caso do modelo holandês ou do Reino Unido de Tony Blair, onde os fundos de pensão detêm centenas de bilhões de euros em ativos. As publicações se sucederam – acadêmicas, institucionais ou patronais, como a da France Pensions, uma associação presidida por aquele que viria a ser o consultor social de Sarkozy, Raymond Soubie, e que reunia dirigentes de empresas –, promovendo a capitalização sob suas diferentes formas. Enquanto, em 1980, um relatório do Commissariat Général du Plan a denunciava como “uma regressão social baseada em ilusões econômicas”,7 em 1999 o próprio comissário Jean-Michel Charpin a defendia em “L’avenir de nos retraites” [O futuro de nossas aposentadorias], reflexão feita por encomenda do primeiro-ministro Lionel Jospin e baseada em comparações com os modelos norte-americano, canadense e britânico: “A técnica de capitalização coletiva poderia trazer um apoio útil à gestão em repartição do sistema francês de aposentadoria”, resumia Charpin. No ano anterior, em nota ao Conselho de Análise Econômica (CAE), Olivier Davanne, ex-investidor financeiro no Goldman Sachs, havia tirado partido do aumento em curso dos valores em Bolsa para criticar o rendimento medíocre da repartição.8
Na prática, contudo, apesar da mobilização das elites, a causa da capitalização progrediu muito pouco. O movimento contra o plano Juppé de 1995 deixou claro o apego da população francesa à repartição e à Seguridade Social… bem como sua determinação em defendê-las. As companhias de seguros temem a concorrência dos fundos de pensão, que captariam parte significativa da poupança em detrimento, sobretudo, do seguro de vida. Na década de 1990, elas convenceram o Executivo francês a impedir a adoção de uma diretiva europeia referente ao quadro de exercício desses fundos, que só interviria em 2003. E se, em janeiro de 2008, o relatório da Comissão para a Liberação do Crescimento – presidida por Jacques Attali e incentivada por Macron – propôs a filiação automática aos fundos de pensão, a sorte destes últimos foi selada alguns meses depois por causa da quebra financeira que acabou de desacreditar seus defensores franceses e os modelos dados como exemplo. No último trimestre daquele ano, 925 mil norte-americanos idosos precisaram voltar ao trabalho após a ruína de seus sistemas de aposentadoria. Destes, 104 mil tinham mais de 75 anos.9
 

Cuidando do dinheiro

No entanto, a capitalização ergue a cabeça de novo, onde dominava e onde começou a aparecer. Hoje, os franceses recorrem a ela duas vezes mais que antes da crise de 2008. É que, na realidade, seu fortalecimento procede sobretudo da conjunção da duração do desequilíbrio das contas sociais, da deterioração do nível de vida dos aposentados e da instauração de dispositivos de aposentadorias suplementares. Em suma, de uma mecânica que consiste em degradar o que funciona para impor, como uma fatalidade, o que ninguém quer. Ocorreu, de início, a redução do “custo do trabalho”. As exonerações de cotizações sociais ou as políticas de congelamento de salários, sobretudo na área pública, reduzem as receitas dos regimes de aposentadoria. Os discursos de medo alimentam o “mito do rombo da Previdência”10 e justificam a regressão social. Além disso, há a degradação do nível das pensões desde a primeira reforma, em 1993, que passou a calculá-las em função dos 25 melhores salários, e não dos dez, tendência que se acentuou nitidamente nos últimos tempos. Enfim, há a ansiedade, que só aumenta. A inquietação pela perenidade do sistema de repartição, a inquietação por aquilo que se vai receber ao final da carreira. Além disso, há a tentação de voltar para os diferentes produtos por capitalização que o legislador criou antes de juntá-los num produto único em 2019, o plano-poupança-aposentadoria (PER).
Em 2022, o número de novos subscritores desse plano aumentou 30% em relação ao de 2021, que já era excelente. E “não é só o investimento que se aproveita da ansiedade dos poupadores em matéria de aposentadoria”, constatava o Le Figaro em 3 de fevereiro último. “As sociedades civis de investimento imobiliário (SCPI), que investem em imóveis (escritórios, lojas) e obtêm um rendimento regular, também se locupletaram.” Algumas instituições financeiras que comercializam esses produtos não hesitam em se aproveitar do medo. Em julho de 2019, a AXA produziu um comercial: “O equilíbrio financeiro do sistema de aposentadorias está hoje ameaçado”, lemos na computação gráfica, e “a queda programada das futuras pensões” deverá nos convencer do “atrativo da poupança-aposentadoria”. Em 5 de dezembro de 2022, enquanto o governo Borne finalizava seu projeto de reforma, foi a vez da Crédit Agricole Assurances anunciar, num comunicado à imprensa, o lançamento de seu fundo de aposentadorias profissional suplementar, “num momento em que a preparação para a aposentadoria surge como uma preocupação maior de numerosos franceses”. E, em 16 de janeiro de 2023, em inserção no site Boursorama, Philippe Trainar, chief risk officer da resseguradora Scor, dramatizou a situação do sistema de repartição (“maciçamente deficitário”) e o que estava em jogo: “Para os franceses que não são nem funcionários nem têm a idade mínima, é ainda mais imperativo hoje que ontem fazer uma poupança-aposentadoria que lhes permita melhorar, ainda que pouco, sua situação durante o ciclo de vida”.
Em suas propagandas, as seguradoras ressaltam também a significativa desoneração fiscal permitida pela subscrição de um PER. Elas reproduzem o discurso de Bruno Le Maire, ministro da Economia, que se gabava em 25 de outubro de 2019 de ter oferecido uma vantagem “considerável”. Doravante, é possível deduzir do imposto de renda 10% dos fundos assim aplicados, até o limite de 32.419 euros. Mas isso não basta para o lobby. Em suas “propostas para a eleição presidencial” no início de 2022, a France Assureurs sugeriu que se dobrasse esse incentivo.
No inverno de 2019-2020, numerosos franceses estavam, entretanto, mobilizados contra um projeto de reforma dito “sistemático”, que teria diminuído as perspectivas dos fundos de pensão. A população jamais defendeu esse avanço da capitalização, assim como não defendeu o desmantelamento dos correios, da universidade, das pequenas e médias linhas de trens. Em todos os casos, a degradação da qualidade do serviço ou das vantagens oferecidas obrigou os usuários a recorrer a serviços de substituição: o computador, a carona, o ensino superior privado. Ou a poupança-aposentadoria. São ofertas às quais nos habituamos ou, pelo menos, nos resignamos – ainda que, em outubro de 2023, o Banco da Inglaterra tenha de outra vez comprar bônus do Tesouro no valor de dezenas de bilhões de libras a fim de salvar da falência especulativa os fundos que geriam as aposentadorias de 30 milhões de britânicos. E mesmo que o sistema de repartição fique ainda mais fraco.
As famílias mais prósperas darão um jeito, sem dúvida; as outras, dificilmente. Segundo o Insee, a renda dos 20% mais ricos é quatro vezes superior à dos 20% mais pobres. As taxas de poupança, dez vezes. Essa capacidade de reservar dinheiro cresce, pois, bem mais rápido do que a capacidade de ganhar. E aos mais modestos não resta quase nada ao fim do mês. Nem todo mundo adorará a capitalização.
 
*Grégory Rzepski é jornalista do Le Monde Diplomatique.
 
1 Entrevista para o Journal du Dimanche, Paris, 5 fev. 2023.
2 Declaração de juros e atividades depositada na Haute Autorité à la Transparence de la Vie Publique (HATVP) em 28 jul. 2022.
3 Aurélie Blondel, “Retraites: la capitalisation s’instale à bas bruit chez les Français” [Aposentadorias: a capitalização vai se instalando sem fazer barulho entre os franceses] e “Le PER, um ‘bulldozer’ de la défiscalisation” [A PER, um bulldozer da desoneração], Le Monde, 16 fev. 2023.
4 Conjunto de dados posto na internet em 7 fev. 2023. Disponível em: drees.solidarites-sante-gouv.fr.
5 Michel Laroque, “L’adaptation de la politique d’assurance vieilesse au vieillissement” [A adaptação da política de seguro-velhice ao envelhecimento], Vie Sociale, Paris, v.15, n.3, 2016.
6 Cf. Gaël Coron, “Inscription des retraites dans la politique de l’Union Européene” [A inscrição das aposentadorias na política da União Europeia]. In: Nicolas Castel e Bernard Friot (orgs.), Retraites: généraliser le droit au salaire [Aposentadorias: generalização do direito ao salário], Éditions du Croquant, Vulaines-sur-Seine, 2022.
7 “Vieillir demain” [Envelhecer amanhã], relatório do grupo Prospective Personnes Âgées pour le VIIIe Plan, La Documentation Française, Paris, 1980.
8 Com Jean-Hervé Lorenzi e François Morin, “Retraites et épargne” [Aposentadorias e poupança], CAE, Paris, 8 jul. 1998.
9 Laurent Carroué, “La crise économique et financière états-unienne: enjeux géographiques et géopolitiques” [A crise econômica e financeira norte-americana: desafios geográficos e geopolíticos], Hérodote, v.132, n.1, 2009.
10 Julien Duval, Le Mythe du “trou de la Sécu” [O mito do “rombo da Previdência”], Raisons d’Agir, Paris, 2008.
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