'Facções nunca dormem': a guerra
silenciosa por trás de ataques no Rio Grande do Norte
Leandro Machado/BBC
A onda de crimes em cidades do Rio Grande do Norte é mais um
capítulo da recorrente violência empreendida pelas facções criminosas que atuam
no Estado nordestino.
Há pelo menos dez anos, dois desses
grupos, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Sindicato do Crime, promovem um
conflito bélico e mortífero pelo controle de territórios e de atividades
criminosas, uma “guerra silenciosa” que já vitimou milhares de jovens
potiguares.
Nesta quinta-feira (16/3), a população
viveu mais um dia de violência nas ruas, o terceiro consecutivo. Atentados
foram registrados em 39 cidades nos últimos três dias.
Ônibus e caminhões foram incendiados.
Em Natal, a circulação de ônibus e trens foi suspensa. O atendimento da coleta
de lixo e de unidades de saúde foi interrompido e universidades, escolas e
comerciantes fecharam as portas com medo de ataques.
A recente onda de violência fez com que a governadora Fátima
Bezerra (PT) pedisse auxílio da Força Nacional, que enviou 180 profissionais ao
Estado. Segundo a Polícia Militar, 68 pessoas foram presas e um adolescente foi
apreendido até a noite dessa quinta-feira, todos sob suspeita de terem
participado dos atentados.
Segundo a imprensa local, os ataques teriam sido ordenados
por membros do Sindicato do Crime, quadrilha local presente em bairros
periféricos dos principais municípios do RN.
Os crimes teriam sido motivados pelas
más condições dos presídios do Estado. Em vistorias a cinco prisões do Estado,
o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao
Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas
físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e
superlotação, entre outras violações dos direitos, conforme noticiado pelo
portal g1.
Especula-se que as duas quadrilhas
rivais, Sindicato e PCC, teriam dado uma trégua no conflito para reivindicar
melhorias no sistema carcerário por meio de ataques violentos à sociedade civil
e serviços públicos.
Por sua vez, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa
Social (Sesed) negou que a motivação seja essa. A pasta afirma que os ataques
são uma retaliação a ações policiais de combate ao tráfico e ao crime
organizado.
“Acreditamos que ações policiais
anteriores, onde houve o enfrentamento da segurança pública a infratores e
apreensão de grande quantidade de drogas e armas, inquietaram a delinquência a
enfrentar o sistema de segurança pública”, disse o secretário da pasta,
Francisco Araújo, na terça-feira.
Por outro lado, quem estuda e trabalha
em áreas relacionadas à segurança pública no RN acredita que a onda recente
escancara para a sociedade civil um conflito violento e cotidiano travado
dentro dos presídios e em ruas de bairros de diversas cidades.
“As facções criminosas do Rio Grande do
Norte nunca dormem, nunca estiveram sob controle. O que vimos nesses últimos
dias é reflexo de uma guerra que acontece há anos, de maneira silenciosa. São
jovens que estão matando e morrendo por causa de briga de facção”, diz Ítalo
Moreira, promotor criminal que desde 2003 atua em casos de homicídios em Mossoró
, a segunda maior cidade do RN.
Mossoró
dividida pelo crime
Nos últimos anos, o conflito entre os grupos
está fomentando o aumento da violência no Rio Grande do Norte.
Em 2000, a taxa de homicídios no Estado
era de 9,57 assassinatos por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência,
publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública.
Em 2010, esse índice subiu para 25,5 e,
em 2019, chegou a 38,3 homicídios - o pico ocorreu dois anos antes, com 62,8
mortes violentas por 100 mil moradores.
Esse aumento coincide com a chegada do
PCC ao Estado e a outros pontos do Nordeste, no início da última década,
segundo especialistas. E ocorreu durante gestões de governadores de linhas
ideológicas e partidos distintos: Wilma Faria (PSB), Rosalba Ciarlini (à época
no DEM), Robinson Farias (PSD) e Fátima Bezerra (PT).
Para expandir seus negócios, a facção
paulista se aliou a grupos locais, estimulando o comércio de armas e drogas, e
motivando rivalidades e conflitos bélicos.
Essa história foi narrada pelos
pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias no livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do
crime no Brasil (Ed. Todavia).
O Sindicato do Crime surgiu como uma
dissidência do PCC por volta de 2013, porque alguns criminosos se recusaram a
seguir ordens de lideranças paulistas da facção.
Desde então, os dois grupos entraram em
conflito pelo controle de territórios e tráfico de drogas em todo o Rio Grande
do Norte, embora a quadrilha local seja apontada por especialistas e
jornalistas especializados em segurança pública como mais numerosa.
“Eu diria que a imensa maioria dos
homicídios está relacionada a esse conflito. Em Mossoró, às vezes uma pessoa é
morta porque se mudou de um bairro comandado pelo PCC para outro local dominado
pelo Sindicato do Crime. Isso não é aceito e a pessoa acaba sendo assassinada”,
diz o promotor Ítalo Moreira.
Em Mossoró, cidade com cerca de 300 mil
habitantes, o PCC comanda bairros da região sul, enquanto o Sindicato do Crime
controla a zona norte.
No ano passado, o município registrou
167 homicídios - 9 a mais do que em 2021 -, segundo levantamento do jornalista
Cezar Alves, especializado na cobertura de segurança pública na região do
semi-árido do RN.
Essa divisão geográfica entre as
facções tinha um terceiro elemento quatro anos atrás, quando a BBC News Brasil
visitou a cidade para realizar uma reportagem sobre a violência da guerra de
facções: os Guardiões do Norte, conhecidos como GDE, quadrilha
cearense que nos últimos anos perdeu força na região.
Crimes sem
solução
Segundo o Monitor da Violência, índice
compilado pelo g1, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
(NEV-USP) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o RN registrou 1,1 mil
assassinatos no ano passado - ligeira queda de 5% em comparação com 2021.
A maior parte dessas mortes, no
entanto, não é solucionada pela polícia potiguar. Ou seja, as investigações não
conseguem apontar quem foram os autores dos crimes.
Segundo o “Painel de Produtividade do
Departamento de Homicídios”, dos 810 inquéritos policiais de assassinatos sob
investigação desse setor da Polícia Civil, apenas 22,8% foram solucionados no
ano passado - ou seja, apenas um em cada cinco homicídios foi esclarecido pela
polícia do RN.
Em 2010, o índice era maior: 62% dos
casos foram solucionados naquele ano, mas esse número foi diminuindo desde
então.
“Eu não diria que a culpa é dos
delegados e policiais, e sim da piora da estrutura para realizar as
investigações. Faltam pessoal e ferramentas. Muitos casos são arquivados. Em
outros, peço absolvição do réu por falta de provas, mesmo tendo certeza de que
ele é culpado. Um júri não pode condenar uma pessoa se a investigação não
provou que ela é culpada”, diz o promotor Ítalo Moreira.
“Então, a impunidade acaba fomentando a
violência, porque a pessoa mata e não é punida”, diz.
Mas quem são as vítimas?
Um estudo de 2018 do Observatório da
Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) tentou responder essa pergunta.
Entre 2011 e 2018, cerca de 93% delas
eram homens, 85% eram pretas ou pardas, 49% tinham entre 18 e 29 anos. Além
disso, 31% não tinham sequer completado o ensino fundamental, 54% não exerciam
atividade remunerada e 39% ganhavam até dois salários mínimos.
Massacre em
Alcaçuz
Em 2017, o conflito entre Sindicato do Crime
e PCC causou um massacre no presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta,
região metropolitana de Natal. Em 14 de janeiro daquele ano, uma briga entre os
dois grupos acabou em 27 presos assassinados - todas as vítimas estavam na ala
do Sindicato.
Dias depois do massacre, o governador
da época, Robinson Faria, hoje deputado federal pelo PL, prometeu fechar a
unidade prisional. Mas isso nunca aconteceu.
No ano passado, a detenção foi alvo de
uma vistoria de membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
(MNPCT). O cenário era de precariedade e de violações de direitos humanos, como
torturas e isolamento forçado, segundo um relatório do órgão a ser publicado
nos próximos dias.
"No Rio Grande do Norte, o sistema
prisional funciona a partir da prática sistemática de torturas físicas e
psicológicas", afirmou Bárbara Coloniese, perita do MNPCT, em entrevista
ao g1. "Trata-se de uma engrenagem de falta de alimentação, desassistência
em saúde e superlotação".
Em entrevista nesta quinta-feira, a
governadora Fátima Bezerra afirmou que as denúncias serão apuradas “por meio de
uma investigação profunda”.
“Nosso governo jamais compactuará com nenhuma medida de
arbítrio. Temos feito um esforço grande no sentido de avançar com projetos de
ressocialização, na área de educação, na área de preparação para o trabalho,
que inclusive é referência a nível nacional”, disse.
Para o advogado criminalista Gabriel
Bulhões, professor de Direito Penal e ex-presidente da Comissão de Advocacia
Criminal da OAB-RN, a situação precária dos presídios do Estado pouco mudou
desde o massacre em Alcaçuz.
“O governo do Estado tomou medidas para
melhorar a ressocialização, a disciplina e o atendimento, mas foram medidas
paliativas que não resolveram o problema crônico de violações de direitos
humanos. Se em uma cela cabem quatro pessoas mas abriga 10, não adianta você
criar programas de leitura para diminuir a pena dos detentos”, diz.
Segundo Bulhões, a superlotação e a
precariedade dos presídios “fornecem mão de obra barata para as facções”.
“Digamos que João foi preso por um
crime não violento. Ele já entra na prisão devendo papel higiênico e escova de
dentes para a facção do pavilhão onde foi parar. As dívidas só crescem. Quando
ele sai, está preso à facção, e tem de cometer outros crimes para pagar o que
deve”, afirma o advogado criminalista.
Para o advogado Diego Tobias,
presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Mossoró, os crimes nas ruas
“explodem” quando a situação dos presídios fica insustentável.
“Nós repudiamos veementemente esses
ataques, porque não é a melhor forma de reivindicar melhorias. Para isso, há
corregedoria, ouvidoria e comissões de direitos humanos. Mas é inegável que o
sistema carcerário é um problema crônico do Rio Grande do Norte, e que precisa
de uma resposta enérgica do governo”, diz.
Velhos fatos se revivem com nova aparência https://bit.ly/3Ye45TD
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