29 maio 2023

Agronegócio sem limites

O desenvolvimento predatório do agronegócio

No Brasil das últimas décadas, erigimos um altar profano para o agro, no qual são imolados a natureza e os trabalhadores em nome de uma religião abstrata do dinheiro, insensível ao sofrimento e à destruição, mesmo diante da morte e devastação em escalas industriais
Bernardo Mançano Fernandes e Allan de Campos Silva/Le Monde Diplomatique



A ideia de agronegócio foi criada pelos professores John H. Davis e Ray A. Goldberg, da Universidade Harvard, em meados do século passado. Suas leituras se limitaram a compreender o funcionamento integrado do conjunto de sistemas: agrícola, pecuário, industrial, mercantil e financeiro. Essa opção reducionista em definir o agronegócio desde o paradigma do capitalismo agrário evitou incorporar os impactos predatórios, porque procurava atender aos interesses das grandes corporações em defender a ideia de que o agronegócio é bom para todo mundo. Foi assim que o conceito “harvardiano” de conjunto de sistemas contribuiu para a criação de um modelo de desenvolvimento hegemônico global. Esse modelo está baseado na produção monocultora convencional ou transgênica com uso intensivo de venenos, produzindo predominantemente alimentos ultraprocessados. Agrotóxicos e ultraprocessamento produzem poluição e doenças nos territórios corpo-terra-água. Esses impactos predatórios acontecem no fim do conjunto de sistemas; no início desse conjunto, porém, há a desterritorialização dos povos tradicionais: indígenas, quilombolas, campesinato e da natureza, com a territorialização do desmatamento, nas últimas décadas – principalmente – nos biomas do Cerrado e da Amazônia.
Além do conceito “harvardiano”, há o conceito crítico de agronegócio dos professores Patricia Flynn e Roger Burbach, que inclui impactos predatórios com base na lógica do paradigma da questão agrária. Esse conceito foi criado quando pesquisavam os impactos predatórios da atividade no continente americano nas décadas de 1960 e 1970. Eles estudaram os processos de desterritorialização das populações tradicionais por corporações norte-americanas como a Del Monte e a Cargill. A formação do conjunto de sistemas e dos impactos predatórios foi desigual nas Américas porque nos Estados Unidos os sistemas estavam mais desenvolvidos, enquanto a América Latina e o Caribe contavam apenas com os sistemas agropecuário e industrial, e em condições de dependência em relação ao imperialismo norte-americano. Por essa razão, na década de 1980, no Brasil, o agronegócio foi denominado “complexo agroindustrial” pela literatura brasileira; e mesmo na atualidade, na América Latina e no Caribe, o agronegócio é denominado agroindústria. A palavra “agronegócio” só passou a ser usada no Brasil com a fundação da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), em 1 993. O fato é que as corporações multinacionais, predominantemente, controlam os sistemas mercantil, industrial, financeiro, tecnológico e ideológico (esses dois últimos são recentes), tornando-se um complexo de sistemas. O poder desse complexo ampliou ainda mais os impactos predatórios (FERNANDES, 2019).
O complexo de sistemas do agronegócio é sustentado por um complexo de redes formado por governos, partidos políticos de direita e de esquerda, organizações multilaterais, universidades, supermercados, bancos e fundos de investimentos (FERNANDES, 2019). O sistema ideológico se preocupa em convencer a sociedade de que o agronegócio é tudo. Não satisfeitos com a hegemonia, tentam transformar o agronegóci o em totalidade e convencem grande parte das instituições de que é o único modelo de desenvolvimento possível. Nessa perspectiva, nas décadas de 1960 a 1990, as corporações inventaram a ideia de integração dos pequenos agricultores, campesinato, quilombolas e agricultura familiar ao agronegócio, como produtores e fornecedores de commodities. A palavra “integração” é uma maquiagem para as palavras “subordinação” e “expropriação”. A maior parte dos “integrados” ou mudaram de atividade, ou foram desterritorializados. A partir da década de 1990, com a formação da Via Campesina, os movimentos camponeses de vários países do mundo começaram a construir uma experiência de desenvolvimento sustentável, com base na soberania alimentar e na agroecologia. Ess e modelo está em construção em todo o mundo, mostrando para a sociedade outra via de desenvolvimento.
Na definição de agronegócio como totalidade, as corporações incluem os povos tradicionais no modelo de produção de commodities. Durante o governo Bolsonaro, povos indígenas Paresi, Nambikwara e Manoki de Mato Grosso e Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul usaram seus territórios para plantar soja convencional. A lógica de incluir todos os meios de vida no agronegócio é uma forma de desterritorializá-los, porque suas culturas e costumes, economias e políticas são destruídos, expropriados, e seus territórios são incorporados ao modelo do agronegócio. Os povos tradicionais romperam com a ideia de totalidade do agronegócio e estão criando seus próprios caminhos, que trazem para o mundo uma nova perspectiva de retomar o conceito de agricultura, da comida como parte da cultura, como alimentação saudável. Recuperam a agricultura como território de produção de vida, e não de poluição e doenças baseadas em negócios. Usam a tecnologia para o desenvolvimento sustentável, e não para o desenvolvimento predatório. As tecnologias como mecanismos de produzir vida, e não para moer gente.

Moinhos satânicos

Quando dizemos que o agro é uma máquina de moer gente, não o afirmamos só em sentido metafórico. A família de Rodrigo Alvares, 37 anos, trabalhador da JBS de Dourados, Mato Grosso do Sul, descobriu isso da pior forma. Rodrigo morreu ao cair dentro de uma máquina de moer carnes do frigorífico da empresa em 2021. O caso está longe de ser uma sinistra exceção, já que o Brasil é campe ão em acidentes de trabalho. De acordo com dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, nos últimos onze anos o país acumula 6,7 milhões de acidentes de trabalho e mais de 25 mil mortes – ou uma morte a cada quatro horas. Nos frigoríficos de processamento de carnes, lugar do acidente de trabalho por excelência no Brasil, tornam-se cada vez mais comuns fraturas, queimaduras, amputações, intoxicações por amônia, cortes, lacerações, contusões e infecções em massa por Covid-19. A isso se soma uma verdadeira epidemia de assédio moral, assédio sexual e trabalho escravo – frentes nas quais o agro também lidera.
Para uma parte de nossa sociedade, esses são os efeitos colaterais inevitáveis quando se trata de garantir a segurança alimentar não só do Brasil, mas também do mundo inteiro. No entanto, essa conta parece não fechar quando as safras recordes convivem com 33 milhões de pessoas passando fome, de acordo com dados da Rede Penssan. A fome no Brasil não existe por deficiências na logística ou falta d e eficiência nos sistemas alimentares corporativos. Antes, é a própria subsunção do alimento à condição de mercadoria que engendra sua ausência estrutural. Afinal, ainda está fresca na lembrança nacional a imagem de pessoas disputando ossos em um caminhão, em setembro de 2021. O Brasil enfrentava um embargo que durou três meses nas compras chinesas de carne bovina, devido a casos de vaca louca. Na ocasião, um produtor afirmou ser impensável reduzir os preços da carne, já que o mercado brasileiro se encontrava “saturado”. O agro pratica assim um dumping humano, rebaixando os custos de reprodução da classe trabalhadora abaixo do mínimo vital. Para o agro, a fome não passa de baliza macroeconômica para os “preços de mercado”.
E, quando compramos os alimentos produzidos pelo regime alimentar corporativo, não nos alimentamos propriamente. A pesquisa “Tem veneno nesse pacote”, realizada em 2022 pelo Idec, mostrou os resíduos de agrotóxicos em alimentos processados com ingredientes de origem animal. O frango empanado fabricado pela Seara, empresa controlada pela JBS, conquistou o topo da lista, como o alimento com mais veneno. Não custa lembrar que o consu mo de alimentos com agrotóxicos está associado ao autismo em bebês e diversos tipos de câncer, entre os quais se destaca o câncer de intestino, que enfrenta um aumento de 177% no país desde 2008. A agenda da economia política global do agronegócio-agrotóxico foi muito bem capturada pela geógrafa Larissa Bombardi no atlas Geografia da assimetria: o círculo vicioso dos agrotóxicos e o colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia, que disseca as dimensões sanitárias da submissão econômica do Sul global às corporações europeias que fabricam agrotóxicos. Entre 2018 e 2019 foram importados para o Mercosul cerca de 7 milhões de quilos de agrotóxicos cuja utilização é proibida na União Europeia. O alinhamento do governo Bolsonaro com essa agenda pode ser perc ebido, por exemplo, na aprovação de mais de 2 mil novos tipos de agrotóxico em seu governo.
Como se não bastasse, as cadeias de valor da expansão do agro se posicionam estrategicamente entre as fronteiras do desmatamento na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal e a intrusão violenta sobre os territórios de nossos povos originários e camponeses. Em apenas dois anos, a norte-americana Cargill comprou soja de produtores responsáveis por desmatar uma área de aproximadamente 66 mil hectares no Brasil, enquanto os c ircuitos de produção JBS já foram responsáveis por desmatar cerca de 75 mil hectares, projetando um risco de desmatamento ainda maior para os próximos anos. Relatório recém-lançado pelo site De Olho nos Ruralistas (19 abr. 2023) mostra a invasão da Amaggi, Bunge e Batavo em terras indígenas em todo o Brasil.
Como se tudo isso já não bastasse, estudiosos de saúde e ecologia nos alertam há anos sobre a relação entre a destruição da biodiversidade, a substituição de biomas inteiros por monocultivos de grãos-carnes, o incremento de doenças infectocontagiosas e a emergência de novas doenças tropicais. O desmatamento em escala na África e na Ásia já nos trouxeram epidemias de Ebola e Covid-19. Um amplo estudo envolvendo uma equipe de cientistas mostrou como a prevalência da pecuária e do monocultivo de grãos na Amazônia está associada a um incremento em dengue e hantaviroses, enquanto a agricultura camponesa e/ou indígena está associada a índices menores dessas doenças (CODEÇO et al., 2021). De forma semelhante, estudo realizado pela equipe do geógrafo Luke Bergman e o epidemiologista Rob Wallace mostrou que o uso do solo por práticas de agricultura regenerativa nos Estados Unidos está associado a índices menores de contágio por Covid-19 quando comparados com a agricultura convencional.
Por fim, essa “máquina infernal” do agro nos evoca os moinhos satânicos do poeta inglês William Blake, escritos com assombro quando da inauguração das primeiras fábricas da Revolução Industrial. No Brasil das últimas décadas, erigimos um altar profano para o agro, no qual são imolados a natureza e os trabalhadores em nome de uma religião abstrata do dinheiro, insensível ao sofrimento e à destruição, mesmo diante da morte e devastação em escalas industriais. Esse modelo de desenvolvimento acontece à custa de todas as outras tradições alimentares e formas de organização social ex istentes no Brasil, como as preconizadas por indígenas, quilombolas e camponeses, povos esses responsáveis, em última instância, pela sobrevivência da humanidade na Terra, ao amplificarem as tradições agrícolas em aliança com a multiplicação da sociobiodiversidade do planeta. Enquanto preservam a diversidade de sementes e protegem os ecossistemas contra a intrusão do desmatamento, do garimpo e dos monocultivos, tecem uma verdadeira rede de proteção que evita que o céu despenque sobre nossa cabeça, como disse muito apropriadamente Davi Kopenawa.

*Bernardo Mançano Fernandes é geógrafo, professor da Unesp, coordenador da Rede Dataluta e autor de “Territories of hope: A human geography of agrarian politics in Brazil” [Territórios de esperança: uma geografia humana da política agrária no Brasil] (Environment and Planning E: Nature and Space, 2022), entre outros; e Allan de Campos Silva é geógrafo, tradutor e pesquisador de pós-doutorado na Unesp.
Referências bibliográficas
BERGMANN, Luke et al. Mapping agricultural lands: From conventional to regenerative [Mapeamento de terras agrícolas: do convencional ao regenerativo]. Land, v.11, n.3, 2022.
BOMBARDI, Larissa. Geografia da assimetria: o círculo vicioso dos agrotóxicos e o colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia. São Paulo: FFLCH-USP, 2018. 
BURBACH, Roger; FLYNN, Patricia. Agribusiness in the Americas [Agronegócio nas Américas]. Nova York: Monthly Review Press, 1980.
CODEÇO, C. et al. Epidemiology, Biodiversity, and Technological Trajectories in the Brazilian Amazon: From Malaria to COVID-19 [Epidemiologia, biodiversidade e trajetórias tecnológicas na Amazônia brasileira: da malária à Covid-19]. Frontiers in Public Health, v.9, 2021.
DAVIS, John H.; GOLDBERG, Ray A. A concept of agribusiness [Um conceito de agronegócio]. Boston: Harvard University Press, 1957.
FERNANDES, Bernardo M. Land grabbing for agro-extractivism in the second neoliberal phase in Brazil [Grilagem de terras para o agroextrativismo na segunda fase neoliberal no Brasil]. Revista Nera, v.22, p.208-238, 2019.

Dossiê mostra face agrária do terror no Brasil https://tinyurl.com/2zktkv35

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