Por que racismo nos campos
da Espanha é mais escancarado que em outras ligas europeias
Crescimento de casos nas arquibancadas crescem graças à
impunidade e ao crescimento político da extrema direita que tem ligação com os
ultras
Por Carol
Knoploch e Tatiana Furtado/O Globo
O
atacante do Real Madrid Vinicius Júnior tem sido o alvo preferencial de ofensas
racistas ao longo da temporada do Campeonato Espanhol. Infratores costumam
chamá-lo de “macaco”, imitar sons e gestos simiescos e desejar sua morte. Não é
à toa. O atacante brasileiro tem colocado o dedo na ferida e escancarado uma
questão cultural sempre jogada para debaixo do tapete.
Desta vez, parece não ser mais possível continuar negligente. Dois
dias depois do caso que repercutiu em todo o mundo, as autoridades espanholas
se mexeram diante da imagem arranhada. Ontem, a polícia deteve um total de sete
pessoas suspeitas de crimes de injúria racial e ódio contra o atacante
brasileiro. Contudo, os três torcedores do Valencia, entre 19 e 21 anos, foram
liberados após prestarem depoimento e terão de comparecer ao tribunal quando
solicitado. Já os quatro suspeitos ligados ao boneco que representava Vini Jr.
enforcado sob uma ponta de Madri, em janeiro deste ano, antes do jogo entre
Real e Atlético, foram mantidos presos.
—A cultura do esporte diz que os desportistas têm que
aceitar todos os insultos vindos das arquibancadas. O Vinicius Júnior diz não,
ele levanta a voz. Ele tem consciência do seu papel como atleta de elite negro.
Isso incomoda, gera mais rejeição a ele e aumenta exponencialmente os insultos
— diz o historiador português e autor de livros sobre o futebol europeu, Miguel
Lourenço.
Muitas manifestações
Ao forte discurso de Vini Jr. em suas redes sociais nos últimos
dias uniram-se inúmeras manifestações de entidades, atletas, governos e clubes.
Os jogos de ontem da rodada do Espanhol (Real Sociedad x Almería, Celta x
Girona e Valladolid x Barcelona) tiveram faixas com os dizeres “Racistas, fora do futebol”
estendidas pelos atletas das duas equipes, o que deve seguir em
todos os jogos da rodada. A CBF decidiu transformar o amistoso do Brasil contra
a Guiné, dia 17 de junho, em Barcelona, num marco antirracista com a presença
do atacante. Em São Paulo, membros de movimentos negros e aliados se reuniram
em frente ao Consulado da Espanha para um ato em solidariedade a Vini Jr. e de
cobrança ao país europeu.
Vinicius Júnior pode jogar
Mas, ao contrário do jogador, há um
cuidado em apontar a Espanha ou determinada torcida como racista. O técnico do
Real, Carlo Ancelotti, recuou após dizer que toda a torcida do Valencia
proferiu ofensas, mas foi enfático na entrevista coletiva antes do jogo desta
quarta-feira, contra o Rayo Vallecano, ao pedir “medidas drásticas”.
Embora tenha sido expulso na última rodada, o atacante brasileiro
está liberado para jogar este confronto. O Comitê de Competição da Federação
Espanhola de Futebol decidiu anular sua suspensão por entender que o VAR
forneceu imagens parciais da confusão entre ele e Hugo Duro, do Valencia (não
exibiu o momento em que o espanhol aplica um mata-leão no brasileiro). Em outra
decisão, o órgão determinou que o setor sul do Mestalla, de onde partiram as
ofensas para Vini no domingo, ficará fechado por cinco jogos. O Valencia ainda
foi multado em 45 mil euros. A decisão contém relato do árbitro que descreve os
xingamentos feitos ao camisa 20 do Real Madrid:
“Vinicius apontou um dos torcedores na arquibancada e disse: ‘me chamou de
macaco’, fazendo gestos com as mãos. Enquanto isso acontece, outros cânticos
são proferidos, entre eles “Madridistas filhos da puta”. Um torcedor grita
“P... negro, é um idiota”, “Me cago em seus mortos, filho da p...”, “Vinicius
idiota”, “P... negro filho da p...”, “Vinicius cachorro, filho da p...”,
“Macaco, você é um p... macaco”.
Para o jornalista da Reuters Fernando Kallás, que mora e
trabalha na Espanha há 13 anos, "a Espanha está anos atrás do debate
mundial que existe hoje sobre o racismo".
— São dez denúncias, dez crimes e esse é o mais recente.
O que aconteceu no domingo foi tão inacreditável e tão impactante que obrigou,
finalmente, a Espanha a começar olhar para o próprio umbigo e perceber que
existe um problema aqui. E nesta segunda-feira vi este debate crescer bastante
— conta o brasileiro, que lembra que existem ferramentas na Justiça do país
para combater o crime de ódio. — Existe o crime de ódio no Código Penal
espanhol, com pena de um a quatro anos de cadeia, e precisa ser aplicado. E
existe no Estatuto da Federação espanhola, em casos muito graves, a
prerrogativa de o clube perder mando de campo, jogar a temporada inteira com
portões fechados, perder pontos. E a pergunta que se faz é essa: por que não
foi usado nestes casos?
Casos de racismo e a Lei Bosman
Os episódios vividos por Vinicius
Júnior se somam a um sem número de casos de racismo nos estádios espanhóis nos
últimos 30 anos. Apesar de a presença de jogadores negros na Espanha datar do
início do século passado, o boom aconteceu, de fato, após a Lei Bosman, de
1995. A nova legislação foi responsável pela abertura do mercado europeu a
atletas de todos os continentes e contou com forte entrada de africanos e
sul-americanos.
Nos
anos 1990, o goleiro nigeriano Wilfred Agbonavbare, do Rayo Vallecano, foi alvo
constante de racismo. Após impedir a vitória do Real Madrid, no Santiago
Bernabéu, ao defender um pênalti, ouviu gritos de "Ku Klux Klan" da
torcida merengue. Em outros confrontos com o principal clube da capital, era
comum ouvir o coro de "negro c…, vai colher algodão”. Já nos anos 2000, o
camaronês Samuel Eto'o, do Barcelona, ameaçou sair de campo numa partida contra
o Zaragoza por causa dos insultos racistas. Os companheiros e o árbitro o
convenceram a ficar.
—Faz
parte da ideia de que meu negro não pode ser insultado, mas posso insultar o
negro dos outros — diz o historiador português, acrescentando que esse tipo de
ofensa é próprio do ambiente permissivo do futebol. — É o tribalismo do
futebol. Ali é um ambiente onde há uma verdadeira divisão tribal. Essas ofensas
(macaco, gestos, sons) dificilmente acontecem nas ruas, no dia a dia na Espanha
ou na Europa. Ali também existe racismo, claro, mas está nas pequenas coisas e
nos detalhes. Esse comportamento xenofóbico e racista se junta com o
comportamento tribal do futebol.
Crescimento da extrema-direita e ligação com os ultras
O historiador aponta, no entanto, um crescimento do racismo nos
jogos do Espanhol a reboque das mudanças sociais da última década. A crise
europeia aumentou a rejeição aos imigrantes e, como consequência, veio o
crescimento da extrema-direita na Espanha, no caso o partido VOX, a terceira
maior força política do país, que tem braços entre os ultras nas arquibancadas com discursos
xenofóbicos e racistas.
— O VOX é herdeiro político do franquismo e abriu-se a
caixa de pandora nos últimos anos. Até pouco tempo, o clima político não
permitia essas atitudes, pois podiam perder algo se mostrassem a verdadeira
face. E o auge do VOX (ganhou força nas eleições de 2019) coincidiu com o
aumento de ataques racistas nas arquibancadas — diz.
Guilherme Freitas, pesquisador e doutorando na
Universidade de São Paulo e autor do livro "As seleções de futebol da
União Europeia", sobre questões de identidade, migração e
multiculturalismo na Europa por meio das seleções de futebol, casos de racismo
nos estádios da Espanha são comuns principalmente por causa da conivência da La
Liga.
Alemanha e Inglaterra estão um passo à frente
Embora durante todo o jogo gritos
de "mono" (na tradução livre significa "macaco" em
espanhol) pudessem ser ouvidos — o árbitro não interrompeu a partida. O jogador
identificou um dos torcedores que o ofendeu e precisou ser segurado pelos
companheiros. Países como Alemanha, Inglaterra e Holanda, por exemplo, tiveram
um trabalho maior de conscientização e enfrentamento da questão e possuem
melhores protocolos de combate.
— Outras ligas como a da Alemanha ou a inglesa jogam duro com
casos assim e os próprios clubes colaboram com a identificação dos racistas e
os punem. Há de fato punição aos torcedores, que podem responder a processos,
pagar multas ou ficar impossibilitados de entrar nos estádios de futebol. Nos
estádios da Alemanha, inclusive, há avisos sobre punições em casos assim —
afirma Guilherme, que pontua que neste episódio, os clubes só foram se
manifestar após repercussão negativa. — Este era um caso em que o jogo deveria
ter sido interrompido. E a arbitragem, branda e conivente, prosseguiu. Vejo que
o racismo é tratado na Espanha como algo cultural e de difícil combate. E assim
não se dá o primeiro passo.
Para o Álvaro Pereira do Nascimento, historiador e
professor da UFRJ, mesmo no futebol, é preciso interesse político para se
aplicar as leis contra o racismo. O pesquisador afirma que hoje em dia, com o
auxílio da tecnologia está mais fácil identificar os torcedores racistas e
aplicar as leis existentes em cada país.
— O caso do Vinicius Júnior não é o primeiro nem o
último e vai continuar acontecendo durante muito tempo ainda. Isso porque
faltam leis ou se elas existem faltam policiamento ou interesse político para
fazer com que as leis funcionem. Hoje já existe tecnologia de identificação de
indivíduos, por exemplo, para auxiliar. Eu entendo que atos racistas como este
que ocorreu com o Vinicius Júnior acontecem todos os dias em todas as
federações. Algumas são mais sensíveis, como o caso da Alemanha — comparou. — O
diferencial agora é que os negros estão mais conscientes também e o Vinicius
Júnior, além de ser um jogador excelente, é um indivíduo muito feliz, alegre,
um cara que esbanja felicidade, realizações. O que faz com que muita gente que
se sente infeliz se revolte contra ele. Só que além disso, ele é um homem que
está consciente da sua posição racial e isso incomoda mais do que aqueles que
não tem uma consciência sobre o racismo. E ele tem isso muito claro e está
militando. Ninguém deve ser trato desta forma.
Por que as pessoas acreditam em informações falsas? https://bit.ly/3nBrBfL
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