29 maio 2023

Uma crônica de Ruy Castro

Os sons e os silêncios perdidos

João Gilberto e João Donato hipnotizaram plateias na Itália, mas nunca gravaram juntos
Ruy Castro/Folha de S. Paulo

 

Nova York, maio de 1963, há inacreditáveis 60 anos. João Gilberto acabara de gravar o LP "Getz/Gilberto" para o produtor Creed Taylor, ainda sem previsão de lançamento, e não estava com pressa para voltar ao Brasil. Com o mundo apaixonado pela bossa nova, convites para trabalhar não faltavam. E o primeiro que ele recebeu foi para uma temporada em Viareggio, na Itália, com seu velho amigo João Donato, então morando em Los Angeles. A eles se juntaram o contrabaixista Tião Neto e o baterista Milton Banana, ambos também em NY, e lá se foram para a bota.

A turnê constou de três meses no Bussoloto, uma boate no segundo andar da Bussola, esta uma casa de espetáculos capaz de comportar atrações como os Harlem Globetrotters, gênios do basquete de exibição, Chubby Checker, Ray Charles e outros de igual quilate. Mas os cartazes na fachada não faziam distinção entre os dois espaços e, logo abaixo dos Globetrotters, estava o nome de João Gilberto, acima das celebridades locais, os italianos Peppino di Capri e Bruno Martino.

João Gilberto, Donato, Tião e Banana talvez tenham formado o maior quarteto de violão, piano, baixo e bateria da história da bossa nova. Amigos desde os tempos do bar do Hotel Plaza, em Copacabana, nos anos 1950, eles hipnotizaram os clientes do Bussoloto, desfizeram o grupo e nunca mais tocaram juntos. Se pelo menos um daqueles shows chegou a ser gravado, as fitas estarão perdidas em alguma gaveta do La Bussola, hoje chamado de Bussola Vessila.

Por negligência das gravadoras, vaidade dos artistas ou sabe-se lá por que, a música brasileira já deixou de registrar maravilhas. João Gilberto e João Donato viveram nos mesmos países e cidades por quase 70 anos. Adoravam-se, admiravam-se, viam-se com frequência e tinham um assunto interminável, às vezes feito de longos silêncios cheios de significado.

Pois nem esses silêncios foram gravados.

Arthur Bispo, o artista brasileiro que viveu 50 anos em instituições psiquiátricas e é tema de exposição nos EUA https://tinyurl.com/244dpxbh

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