25 maio 2023

Uma crônica de Cícero Belmar

A foto da bruxa

Cícero Belmar*

 

Há uma espécie de bruxa que adora cantar. É o que posso dizer dessa foto que está no Facebook. A cantora usa túnica amarela, tem um daqueles chapéus infantis em cone, e segura o gato preto nos braços. Corvos, corujas e gatos pretos são típicos dessas mulheres sobrenaturais. Ela ri. A felicidade é o sinal inconteste: nunca vi foto de uma bruxa chorando.

Este é o retrato de uma feiticeira que é feliz porque canta. Apesar de eu estar vendo somente hoje, a foto não é recente, vejamos o ano, 1976. Agora, que percebo essa ligação, entre a magia e a música, é que entendo: o canto é uma estratégia de quem busca enfeitiçar corações e mentes.

As bruxas mandam recados através da música. Cada vez que nós, pobres mortais, entoamos as canções que já foram interpretadas por essas profetizas, pitonisas, ou como queiram chamar, nós as imortalizamos. Repetindo o canto delas, recuperamos suas histórias. Reforçamos os fundamentos espirituais que deram sentido à existência delas.

Cantar é o ritual oferecido à Deusa Soberana que transportam na alma. Está tudo ali, quando cantam. Sentimentos, histórias, medos e lutas. A poesia que apresentam no repertório, na harmonia, na entonação, no fraseado do canto, é uma maneira de transmissão oral de sua experiência, do seu aprendizado, de sua identidade, de sua magia.

A Bruxa Amarela canta assim: “Duas horas da manhã, eu abro a minha janela/ E vejo a bruxa cruzando a grande lua amarela”. Esses versos, para quem ainda não se ligou, são parte da letra de uma canção feita em parceria por Raul Seixas e Paulo Coelho. Esses dois aí, permitam-me apresentar, são dois velhos magos da Música Popular Brasileira.

Rita Lee é a bruxa. A bruxa da foto. É ela quem interpreta A Bruxa Amarela no álbum Entradas e Bandeiras. A música, de 1976, é pouco conhecida, mas ela gravou com o Tutti Frutti. Antes que eu me esqueça, a foto da bruxa vestida com a túnica, o chapéu e o gato, não está no álbum. Foi feita, talvez, porque Rita Lee incorporava personagens. Gostava de se fantasiar.

Todos sabemos, porém, que Santa Rita de Sampa não era a única feiticeira da MPB. Foi através do canto que outras como Elis Regina, Cássia Eller, Elza Soares, Gal Costa, e agora a Nossa Ovelha Negra, deixaram a herança dos seus símbolos na ferocidade e na generosidade de sua arte. Falo apenas das feiticeiras que partiram para outra dimensão visando homenageá-las. Iradas ou dóceis, agressivas ou meigas, corajosas ou medrosas, indiferentes ou ardentes, todas nos serviram poções mágicas.

Com o relato subjetivo de suas existências, nas músicas que interpretaram e nos legaram, cada uma, em particular, produziu um efeito em nossa vida e, hoje, somos seus devotos: Nara Leão, Silvinha Teles, Marília Mendonça, Clara Nunes, Vanusa. E ainda mais para trás: Dalva, Marlene, Emilinha Borba, Dircinha e Linda Batista, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Ângela Maria, Maysa.

Todas tinham talento e habilidade excepcionais. Todas ouviram o canto secreto de suas bruxas interiores e deram vozes a elas. Cantando, de alguma forma, fizeram o relato da alma feminina. Deram, cada uma com sua personalidade, poder e soberania à bruxa com quem conviveram intimamente.

Quando elas cantavam, não interpretavam, apenas eram. Elas conheciam o lado mágico de sua natureza de mulher e, cantando, se colocavam no papel de soberanas. Hoje, ouvimos a frequência do silêncio. Rita Lee nos deixou na semana passada. Empoderada, foi o melhor exemplo de cantora que soube respeitar a feiticeira interior e confiar nela.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

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