Xadrez do arcabouço e o nó da tática defensiva de
Lula
Tem-se uma correlação de forças desfavorável. Que
estratégia adotará? Nunca a habilidade política de Lula será colocada tanto à
prova.
Luís Nassif/Jornal GGN
Peça 1 – o cenário
político
O primeiro passo do estrategista é analisar o cenário
político.
Vulnerabilidades
1.
Congresso, dominado pelo Centrão e direita.
2.
Mercado, com ampla influência na mídia.
3.
Forças Armadas, ocasionalmente legalistas, mas nem tanto.
Trunfo
Popularidade –> Bem estar –> Economia
Ou seja, a única arma para enfrentar essa soma de
vulnerabilidades é reforçar a popularidade. Só que ela depende do bem
estar geral – consumidores e empresas – que depende da melhora da economia. E
tem-se um tempo político pela frente que, se não for bem administrado, tornará
a crise política irreversível.
Economia
Por sua vez, a economia depende do entrelaçamento de uma série de fatores: investimentos público, privado e externo, fortalecimento do mercado de consumo etc.
O fator juros
Em todos esses elementos, entra o fator Selic-taxa de juros.
Vamos remontar o quadro acima com os fatores diretamente
afetados pela Selic.
Por exemplo, o Estado disponibiliza investimentos para o setor
privado, como uma obra de engenharia. Só que a empresa precisará de capital de
giro para construir a obra e, depois, receber o pagamento. E a taxa de juros é
essencial para viabilizar o investimento.
No caso do
investimento privado, a taxa de juros inviabiliza a tomada de dinheiro e o
mercado de consumo. No caso do investimento externo, influencia diretamente a
relação dívida/PIB.
Ou seja, sem a redução da Selic, não se tem recuperação da economia, não aumenta o bem estar do país e não permite a Lula fortalecer a popularidade para enfrentar as vulnerabilidades e as próximas eleições.
Peça 2 – a estratégia Haddad
A estratégia montada pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
consiste nos seguintes pontos.
1.
Não mexer com nenhum dos dogmas do mercado, a começar pela
independência absoluta do Banco Central.
2.
Dentro das regras do mercado, apresentar uma alternativa à Lei
do Teto, o arcabouço fiscal.
3.
Com base no arcabouço, tirar o último álibi do Banco Central
para não reduzir a taxa Selic.
4.
Sem esse álibi, aumentariam as pressões do setor privado e
político sobre o BC, forçando-o a reduzir a Selic.
5.
Reduzindo a Selic, a economia começaria a respirar, permitindo a
Lula recuperar popularidade e incrementar as políticas de inclusão.
Para aprovar o arcabouço, no entanto, teve que se sujeitar a uma
série de restrições: limites rígidos de despesas, pouco espaço para o
investimento e, ainda, compromisso de equilíbrio fiscal a partir do próximo ano
e de superávit a partir de 2025. O arcabouço conseguiu até o feito de incluir o
Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação), que havia ficado de fora da Lei
do Teto.
Para conseguir aumentar os gastos, o governo terá que aumentar
as receitas. Mesmo assim, há um limite de crescimento de 2,5% nos gastos.
Se o governo errar
na projeção, a diferença será paga em 2025. Ou seja, se a Fazenda não conseguir
cumprir suas metas de equilíbrio fiscal, a diferença será cortada dos gastos no
ano seguinte.
Pelo modelo
proposto, as metas serão alcançadas pelo aumento das receitas – decorrente do
corte de subsídios injustificados e restrições à engenharia fiscal de grandes
empresas.
Ao apostar todas as
fichas no arcabouço, em um primeiro momento a Fazenda amplia ainda mais as
restrições à recuperação da economia, esperando recuperar no segundo momento.
É uma aposta temerária. Em preto, as restrições sob controle do BC; em vermelho, as restrições impostas pelo arcabouço fiscal.
Para essa estratégia dar certo, terá que ocorrer,
simultaneamente, uma redução da Selic e um aumento da receita. Se ambos os
desafios falharem, se terá o comprometimento total das peças necessárias para
um processo de recuperação da economia: os investimentos e gastos públicos.
Peça 3 – os 2 reis do tabuleiro
Para sua estratégia ser bem sucedida, Haddad terá que contar com
a boa vontade de dois personagens absolutamente não confiáveis:
1.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para reduzir
a Selic.
2.
O presidente da Câmara Arthur Lira, para endossar a retirada de
privilégios fiscais.
No primeiro movimento, ambos foram mais que parceiros, foram os
verdadeiros autores do arcabouço. Não houve, da parte do governo, nenhuma
disputa política em torno do arcabouço e nem da reforma administrativa.
Não
se trata de nenhuma crítica a Haddad, mas de um dado da realidade: Arthur Lira
é senhor da situação, assim como Campos Neto. Mas fica a dúvida: Haddad se
adapta à estratégia de não enfrentamento de Lula; ou, de fato, passou a
endossar todos os princípios de política econômica do mercado?
A esperança de
Haddad é que, entregue o que Campos Neto pediu, haja uma pressão de seus
aliados pela redução da Selic.
Aí, é importante
analisar o entorno de Campos Neto e Lira.
Roberto Campos Neto
Há duas explicações para sua insistência em uma Selic
desproporcionalmente elevada.
A primeira, o álibi da ignorância, o sujeito que segue o manual
sem a menor noção sobre o objeto afetado. Seu único universo de análise é
o mercado, não a economia real.
O segundo, a ideologia. A economia saiu de um período de
ultraliberalismo, de grandes negócios com empresas públicas, de esvaziamento de
políticas públicas, que vai do interinato de Temer ao período Bolsonaro-Paulo
Guedes. Campos Neto é um soldado de Guedes. Manter a Selic em 13,75%, ou
derrubá-la lentamente, significará o fracasso de qualquer política alternativa,
por mais tímida que seja, e a volta do padrão Paulo Guedes. Ou seja, a Selic
hoje é uma garantia da volta do ultraliberalismo em 2026.
A esperança seria um aumento expressivo da pressão dos setores
produtivos. Há um tsunami a caminho, uma quebradeira generalizada, sem
despertar a menor sensibilidade da mídia. Na reunião do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, o alerta de Benjamin
Steinbruch, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) sobre
o vendaval que vem pela frente passou quase em branco. E a indústria está órfã
de lideranças fortes.
Qual a probabilidade de que Campos Neto, por livre vontade,
proceda a uma redução significativa da Selic? Digamos que seja de 40%.
Arthur Lira
Lira é negócio. Aprovou o arcabouço fiscal porque interessava
diretamente seus patrocinadores. E não tem o menor interesse de aprovar
retirada de subsídios aos grandes grupos econômicos.
Agora, há duas possibilidades pela frente: ou a Fazenda consegue
reduzir benefícios fiscais de grandes grupos, ou terá que ampliar a
privatização para fazer caixa. Ora, benefícios fiscais tem grandes interessados
pela frente. Queda de gastos sociais, também. Qual a probabilidade de Lira
apoiar as medidas de restrição dos subsídios? Digamos, de 30%, com otimismo.
Juntando as duas probabilidades, se terá uma probabilidade total
de 12% de implementação das duas medidas centrais para a estratégia Haddad ser
bem sucedida.
Peça 4 – a estratégia da não confrontação
Até agora, o que se percebe é a incapacidade do governo de enfrentar
qualquer frente de pressão.
Congresso |
A mudança no projeto de reforma
administrativa mostra o amplo controle conservador sobre a Câmara. A bancada
ruralista conseguiu esvaziar o Ministério do Meio Ambiente e o dos Povos
Indígenas, abrindo a porteira para a demarcação de terras indígenas. Por mais
que o governo queira comemorar, a aprovação do arcabouço foi vitória de
Arthur Lira. |
Mercado |
Haddad encampou completamente o
discurso de mercado e de restrições fiscais. Dificilmente abrirá fogo contra
Campos Neto, o que atrasará substancialmente a redução de juros. |
Forças Armadas |
Lula entregou o GSI (Gabinete de
Segurança Institucional) a um militar, colocou sob suas asas a ABIN (Agência
Brasileira de Inteligência) e manteve sem nenhuma forma de controle civil a
inteligência militar. Os militares continuam com os mesmos espaços
conquistados nos últimos anos. Até hoje Lula nao assinou o decreto que
reinstitui a Comissão da Verdade e dos Desaparecidos, por receio das FFAAs. |
A crise econômica
Confira-se a pesquisa Focus, que levanta as expectativas do
mercado. É o melhor termômetro das intenções do Banco Central, devido à
interação permanente entre Campos Neto e o mercado.
Na última pesquisa,
a previsão é 2023 fechando com Selic a 12,5%; 2024 com Selic a 10%; e 2025 com
Selic a 9%.
Já em relação ao
PIB, a Focus prevê 1,20% em 2023, 1,30% em 2024 e 1,70% em 2025. As
expectativas em relação a 2024 e 2025 são mero chutômetro.
É evidente que, com
a projeção de Selic e de PIB, a dívida líquida do setor público só poderia
subir. E a Focus trabalha com estimativas de 60,80% do PIB em 2023, 64,45% e
2024 e 67% em 2025.
Se o mercado
estiver certo, a economia afunda.
A economista Leda
Paulane tem dois pontos anti-crise relevantes.
Eu
só colocaria duas peças adicionais no seu xadrez, que podem, penso, fazer
alguma diferença: o elevado poder multiplicador das transferências de renda e a
redução de preços dos combustíveis, sobretudo do gás de bujão. Acho que esses
dois elementos podem ajudar a dobradinha economia/popularidade a respirar no curto
prazo e, com sorte, ajudar a encaminhar o médio e longo prazos.
Peça 5 – a contagem regressiva
É evidente que o governo está fragilizado e batendo cabeça. Não
colou a tentativa de apresentar como vitória a aprovação do arcabouço fiscal.
Mas é evidente, também, que nenhum governo vai para o matadouro
sem reagir. Em algum momento será necessário uma freada de arrumação com Lula
interrompendo sua ofensiva internacional, voltando-se para o dia a dia político
e articulando as armas de que dispõem a Presidência.
Há um conjunto de instrumentos para enfrentar a crise, e que
passam ao largo do arcabouço fiscal, como o poder de fogo dos bancos públicos,
os projetos da Petrobras, os estímulos fiscais a novos investimentos.
A questão é o tempo político e a disposição política de Lula de
sair da cartilha liberal – algo que só ocorreu nos dois primeiros governos
devido à crise mundial de 2008.
Na sua volta ao
poder, em 1950, Getúlio Vargas não demonstrava mais o tirocínio político e a
energia do período anterior. Conspiravam contra o novo quadro político,
diferente do seu período de liderança, a própria idade e o clima anticorrupção
pesado, que precede os grandes golpes.
As constantes
viagens internacionais de Lula são relevantes para a recolocação do país na
geopolítica internacional e para a atração futura de investimentos. Mas a
grande batalha é aqui e agora. E tem-se uma correlação de forças fortemente
desfavorável.
Que estratégia
adotará? Nunca a habilidade política de Lula será colocada tanto à prova. Mesmo
sabendo-se que no fim do túnel tem um bolsonarismo aguardando a presa.
Vozes diferenciadas no arco-íris do governo Lula https://bit.ly/3pDwWDO
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