03 fevereiro 2024

Tarifa zero

2024, o ano da Tarifa Zero

Experiências se multiplicam no Brasil de maneira acelerada; movimentos voltam às ruas para protestar por direitos; e tema será chave nas eleições municipais. Política pode ser decisiva para combater desigualdade social nas cidades
Daniel Santini/Le Monde Diplomatique



Em 2023, o número de municípios com Tarifa Zero universal identificados no Brasil passou de cem. Desde 1992, quando o pequeno município de Conchas (SP) adotou a política de maneira pioneira, em nenhum ano houve tantas adesões. Foram 36 experiências novas ao longo de 2023, em uma tendência que se acelerou no último trimestre e segue em ritmo crescente. Só em dezembro, nove cidades anunciaram a abolição das cobranças. Tudo indica que em 2024, ano de eleições municipais, tal fenômeno deva ganhar ainda mais força.

Não só a quantidade aumentou, mas também a relevância. Até 2022, a adoção parecia restrita a municípios de pequeno porte, com apenas cinco cidades com mais de 100 mil habitantes identificadas: Caucaia (CE), Maricá (RJ), Paranaguá (PR), Formosa (GO) e Assis (SP). Hoje são onze, incluindo cidades relevantes em termos de influência regional.

Em 2023, seis novas com mais de 100 mil habitantes entraram na lista, incluindo três em regiões metropolitanas importantes: Luziânia (GO), grudada em Brasília; Ibirité (MG), nas bordas de Belo Horizonte; e São Caetano do Sul (SP), conurbada com São Paulo. Completam a relação Itapetininga (SP), que se tornou a cidade mais populosa no interior de São Paulo com Tarifa Zero; Balneário Camboriú (SC), principal referência na região Sul; e Ituiutaba (MG), destaque no interior de Minas.

Isso para falar apenas de experiências de Tarifa Zero universal, ou seja, em que o Passe Livre vale para toda a população, em toda a rede e o tempo todo. Se for para considerar as parciais, basta mencionar que São Paulo, a cidade mais populosa do continente, adotou aos fins de semana. A redução ou mesmo suspensão das cobranças avança com velocidade, em um efeito contágio, com cidades se inspirando em experiências vizinhas.

CONFLUÊNCIA 

Compreender o que baseou o crescimento acelerado em 2023 é a chave para projetar o que deve acontecer no ano que acabou de começar. A Tarifa Zero se espalhou no Brasil em função de três fatores principais: a falência do modelo de financiamento baseado na receita da catraca [1], que levou ao apoio inclusive das empresas do setor; a aprovação entusiasmada da população onde a política é adotada, que resulta em votos e desperta o interesse político até mesmo de setores conservadores antes totalmente refratários à ideia; e a pressão social das ruas, que segue presente desde junho de 2013 e foi decisiva para o avanço da concepção de mobilidade como direito. 

O entendimento de que o transporte é um direito social encontra amparo na Constituição federal, cujo artigo 6º prevê que ele deve ser garantido pelo Estado, assim como saúde e educação, entre outros. Houve avanços significativos nas últimas décadas no estabelecimento de bases legais e teóricas que reforçam tal perspectiva. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, por exemplo, prevê que, no trânsito, o transporte coletivo e a mobilidade ativa devem ser priorizados, em detrimento do transporte motorizado individual.

Ainda assim, na vanguarda do atraso, há quem insista em tratar mobilidade como mercadoria. Tal lógica limitada é o que justifica aumentos de tarifa, privatizações e desmantelamento de órgãos públicos de planejamento e gestão. Abraçada por políticos como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman (PSD), a ideia de que transporte público deve dar lucro embasou aumentos recentes promovidos por ambos os gestores, que se destacam entre os que mais avançaram na contramão de políticas de mobilidade em um período recente.

O lucro por si só é uma simplificação característica de quem não compreende ou trabalha com planejamento urbano integrado. Há ganhos coletivos diretos e indiretos relacionados a redes bem estruturadas e bastante utilizadas, o que justifica a manutenção e o investimento em redes deficitárias e o custeio compartilhado. Em outras palavras, mesmo quem não usa o transporte público se beneficia e deve contribuir. Melhor viver em uma cidade entupida de carros e motos ou com a população se deslocando em trens, ônibus, bondes, barcas e bicicletas?

CUSTO POLÍTICO

Entretanto, voltando aos aumentos de passagem recentes, a reação aos aumentos foi imediata. Em São Paulo, nem a repressão brutal e as detenções recorrentes de manifestantes por parte da tropa do governador têm freado a sequência de protestos organizados pelo Movimento Passe Livre, por trabalhadores e trabalhadoras, e por estudantes, em um desgaste constante e crescente. Em Belo Horizonte, o prefeito viu surgir a formação da Frente Popular pelo Transporte Público, lançada em 25 de janeiro em manifestação em frente a um restaurante de luxo que tem sua esposa como sócia. O custo político de aumentar passagens é alto, e a sociedade civil tem cobrado avanços. 

Há muitos outros exemplos, mas, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, os dois casos são emblemáticos não apenas pelo radicalismo e pela retórica atrasada do governador e do prefeito, respectivamente, mas também por acontecerem justamente nos dois estados que concentram o maior número de cidades com Tarifa Zero universal. É como se, sem perceberem (ou entenderem) a onda avançando, ambos continuassem tentando seguir para trás. Serão arrastados e correm o risco de afundar nas próximas eleições. 

Ambos se posicionam de maneira diferente de muitos de seus pares conservadores, que, sensíveis à mudança dos ventos, passaram a defender a adoção da Tarifa Zero. Defendem a suspensão das cobranças, mas sem mudanças estruturais. Ou seja, propõem substituir a receita das catracas por subsídio integral, estruturando um novo modelo que garante repasses para a iniciativa privada sem necessariamente condicioná-los a critérios de qualidade, transparência ou controle social [2]. É um avanço, ainda que parcial.

SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA

Há mobilizações institucionais e articulações importantes em curso em todo o país, em diferentes esferas. No âmbito institucional, a Câmara dos Deputados lançou em 22 de novembro a Frente Parlamentar em Defesa da Tarifa Zero. Gestores e parlamentares de diferentes tendências têm debatido e estudado maneiras de adotar a Tarifa Zero; movimentos sociais têm organizado campanhas; e articulações políticas importantes se consolidam.

Em 2023 foi formada a Coalizão Triplo Zero, uma frente em defesa de zero tarifa, zero emissões de poluentes e zero mortes no trânsito, em uma aliança que contempla dimensão ambiental, social e humana. Foi o ano também em que a deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP), ex-prefeita de São Paulo, apresentou a PEC 25/2023, que prevê a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), pensado tal qual o Sistema Único de Saúde (SUS), com acesso universal e gratuito. Erundina teve o cuidado de basear-se em um documento com princípios organizados de maneira coletiva com a participação de mais de setenta organizações, em um processo capitaneado pelo Idec [3]. O Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte (MDT) também realizou estudo comparativo elencando princípios para o SUM, apresentando, contudo, a gratuidade como uma possibilidade, e não c omo uma premissa [4].

O amadurecimento do debate resultou também em propostas sobre como financiar redes livres de cobrança. A de Erundina, pela criação de um sistema nacional, prevê que quem se beneficia da mobilidade motorizada individual (carros e motos), poluindo e congestionando as cidades, deve contribuir com o custeio. O engenheiro Lucio Gregori, ex-secretário de Transportes de São Paulo durante sua gestão na capital paulista na década de 1990, propôs, como parte da PEC, a criação de uma cobrança pelo uso do viário urbano baseada em tamanho e potência do automóvel: SUVs e picapes pagariam mais que carros populares. Consolidar-se-ia, assim, um pedágio urbano com justiça social, um jeito de custear a Tarifa Zero e, ao mesmo tempo, desestimular o uso cotidiano e exagerado de automóveis. Também seria um jeito de frear a tendência insustentável de multi plicação de carros cada vez maiores, mais pesados e mais poluentes. 

Na academia, grupos de pesquisa têm se formado e se fortalecido. Há análises propondo a reforma do vale-transporte (ver artigo na pág. 7), pesquisas sobre impactos da Tarifa Zero na saúde [5] e estudos bastante relevantes no Brasil e no exterior. Nos últimos anos, formaram-se redes de pesquisa nacionais sobre passe livre reunindo gente de diferentes áreas de conhecimento, e os resultados começam a aparecer. Na USP, pesquisadoras da Escola Politécnica e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo traçaram projeções sobre a possível expansão da Tarifa Zero no Brasil com base em modelo estatístico considerando as características comuns dos municípios que já a adotaram [6] – uma das previsões é de mais casos no Nordeste, hoje restritos ao Ceará e a Mata de São João, na Bahia.

Além de chave para reduzir a desigualdade urbana [7], a Tarifa Zero pode trazer ganhos em diferentes áreas. A política pode contribuir para a redução de circulação de veículos motorizados privados e, por conseguinte, para a redução da poluição e de mortes no trânsito. Pode ainda ajudar a dinamizar a economia e melhorar o acesso a equipamentos públicos e a própria vida nas cidades. Já há projeções indicando que, ainda que adotada apenas aos domingos em São Paulo, a política contribuiu para frear a inflação no fim de 2023.

A Tarifa Zero no Brasil já é uma realidade. Figuras como Tarcísio e Fuad talvez não tenham percebido, mas a disputa não é mais entre ser ou não a favor, e sim em como colocá-la em prática. O que se discute é se os modelos serão de repasses generosos e sem controle público ou fundamentados em transparência, controle social e indicadores de qualidade claros e objetivos.

Com eleições municipais, mobilizações de rua e a multiplicação de experiências, 2024 tem tudo para ser o ano da Tarifa Zero no Brasil. 

Daniel Santini é jornalista e mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde hoje estuda políticas de Tarifa Zero em seu doutorado. Atua como coordenador de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo.

[1] Sobre o tema, ver Paíque Duques Santarém, “Ensaio sobre o incontornável: do ciclo vicioso da tarifa ao ciclo virtuoso da Tarifa Zero”Journal of Sustainable Urban Mobility, v.3, n.1, p.21-32.

[2] Mais sobre modelos possíveis de gestão, administração e organização das redes de transporte público operando sem cobrança direta de passagem no texto “Só a Tarifa Zero não basta”Revista Rosa, jul. 2023.

[3] Um documento completo sistematizando princípios e diretrizes está disponível em: https://idec.org.br/sum/proposta.

[4] Os estudos do MDT estão disponíveis em: https://institutomdt.org.br/sum-sistema-unico-de-mobilidade-urbana/

[5] O grupo Laboratório de Vida Ativa (LaVA), da Uerj, tem procurado levantar indicadores para mensurar o impacto da Tarifa Zero na saúde, em trabalho significante capitaneado por Ricardo Brandão de Oliveira e Heloant Abreu. 

[6] A análise estatística foi desenvolvida por Maria Gennari, Flávia Lorenzon e Giulia Ramos, em pesquisa orientada pelo professor Mateus Humberto (Poli-USP). Os resultados foram apresentados em dezembro de 2023 no trabalho de conclusão de curso intitulado Tarifa zero no Brasil: uma análise multifatorial da implantação da política de isenção tarifária em sistemas de transporte coletivo, considerando os efeitos da pandemia

[7] O autor realizou um estudo científico sobre o impacto da Tarifa Zero na redução da desigualdade social com base no caso da experiência de Mariana (MG). Os resultados estão disponíveis em: Tarifa zero e desigualdade social: um estudo de caso sobre a experiência de Mariana (MG) na implementação do passe livre no transporte público coletivo, dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP.

[Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil]

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