Capital
Digital-Financeiro: como as Big Techs monetizam dados e exploram o trabalho
informacional
Análise remete a Karl Marx para explicar como
plataformas como Google e Instagram monetizam dados de forma semelhante ao
capital portador de juros e como os algoritmos exploram o trabalho
informacional de bilhões de usuários
Marcos
Dantas/Portal Grabois www.grabois.org.br
No dia da posse do novo presidente dos Estados Unidos, as fotografias do evento exibiam, ocupando lugares de destaque, reservados, por óbvio, aos personagens mais próximos ao poder, os rostos dos homens que comandam a X Holding Corp. (Elon Musk), Meta Platforms (Mark Zuckerberg), Alphabet Inc. (Sundar Pichai), Amazon Inc. (Jeff Bezos) e Apple Inc. (Tim Cook). Do grupo de corporações que formam o acrônimo GAFAM (Google-Amazon-Facebook-Apple-Microsoft), parece que só Satya Nadella, da Microsof Corp., não apareceu nas fotos.
Não
somente essas imagens, mas a ascensão de Elon Musk à condição de “homem forte”
do novo governo, função geralmente reservada, no mundo, ao ministro das
Finanças, ou ao comandante das Forças Armadas ou, quase sempre no caso dos
Estados Unidos, ao secretário chefe do Departamento de Estado, indica estar
havendo, no ainda centro do capitalismo mundial, um basculamento no poder
exercido pelos diferentes blocos de capital: ascende de vez o capital
digital-financeiro, descem alguns degraus outros blocos de capital.
Cioso
de seu poder no novo governo, Mark Zuckerberg, às vésperas da posse, anunciou,
com estardalhaço, que mudaria a política de “moderação de conteúdos” da Meta,
flexibilizando ou mesmo eliminando protocolos e práticas que buscavam controlar
a disseminação de discursos de ódio, discriminatórios, mentirosos. Como já bem
demonstrado em vasta literatura, esse tipo de mensagem contribui fortemente
para as receitas e lucros da Meta, da Alphabet, do X, e de outras corporações
que controlam similares “plataformas”1.
Porém, por pressão de diferentes estados liberais democráticos, sobretudo a
União Européia e o Brasil, elas vinham sendo obrigadas a impor algum filtro a
esses tipos de mensagens, obedecendo a recentes leis regulatórias ou decisões
judiciais desses países. Zuckerberg, desafiando o mundo mas confiando em Trump,
declarou que não vai mais se submeter a essas leis ou decisões, postura que
conta com o apoio de Musk e, certamente, mesmo que nada tenham dito, daqueles
outros chefões presentes na posse de Trump.
Esse
debate sobre a regulação da internet parece limitado quase apenas às “redes
sociais”, centrado em algumas poucas palavras-chaves: liberdade de expressão,
privacidade, “fake news”, discursos de ódio, outras tantas. Debate-se a superestrutura.
Imagina-se ser possível consertar as profundas distorções éticas e políticas
produzidas na sociedade pelas assim chamadas “redes sociais”, apenas submetendo
aquelas corporações a regras jurídicas próprias da democracia liberal. Não se
vai à raiz do problema: à própria natureza do negócio que engendra aquelas
distorções já consensualmente percebidas (consenso que exclui, claro!, os
segmentos fascistas que dessas distorções se beneficiam). Entendida a natureza
(capitalista) do negócio, compreendida a lógica de acumulação financeira que
promove os discursos de ódio e a desordem informacional2 nessas
redes, poder-se-ia avançar um projeto político radical que, no limite, visaria
tornar esse espaço de debate efetivamente público, por isto mesmo a
serviço da civilização, não da barbárie.
Este
artigo, embora buscando ater-se ao tamanho razoável para publicação em meios
jornalísticos de comunicação digital, tem por objetivo contribuir para levar o
debate até as raízes do problema. Sua hipótese central é que podemos explicar a
lógica financeira que preside os negócios dessas “redes sociais” e outras
“plataformas” a partir d’O Capital de Karl Marx.
Plataformas
sociodigitais
A
sociedade capitalista vive hoje uma fase já avançada da terceira
revolução industrial-tecnológica, processo iniciado como resposta do
capital à sua crise kondratieviana dos anos 1970-1980. Para a superação dessa
crise estrutural, o capital, repetindo o que já produzira em crises
kondratievianas anteriores, investiu na abertura de novas fronteiras de
acumulação, portanto, novas indústrias e tecnologias, sobretudo a digital; e
também, desta vez, numa ampla financeirização da dinâmica econômica para a qual
a tecnologia digital, pelo seu potencial de compressão do espaço-tempo3,
surgiu como solução ideal. Daí que ao longo dos últimos 30 anos, pelo menos
desde os anos 1990, se não antes, esferas crescentes das atividades de produção
e consumo, logo de trabalho, vieram sendo incluídas, ou engolidas, pelas
tecnologias digitais. O digital tornou-se a base técnica do
capitalismo nesta sua nova etapa.
Esse
processo conduziu, em anos mais recentes, a uma ampla plataformização
digital do capitalismo. Os diferentes grupamentos de capital, fossem
industriais, comerciais ou financeiros, visando otimizar seus negócios,
passaram a se articular através de extensas e internacionais redes de
computadores implantadas, total ou parcialmente, sobre as redes da internet,
esta também uma rede transfronteiras. Em geral, essas plataformas não são de
conhecimento do grande público. Um exemplo, embora quase nada conhecido mas com
inegável consequência social, é a plataforma do “Programa de Benefício de
Medicamentos” (PBM): em troca de supostos descontos nos preços de remédios, um
consumidor qualquer fornece o seu CPF às farmácias (redes varejistas).
Relacionando o CPF às compras, os laboratórios farmacêuticos podem ter um amplo
conhecimento do mercado a nível individual, local, social, daí traçar desde
suas estratégias de marketing até as de pesquisas científico-técnicas em novos
medicamentos. Esse tipo de dados é extraído gratuitamente do comum da
sociedade, não sendo necessariamente comercializado mas, uma vez processado
pelo trabalho cientifico-técnico empregado e comandado pelas corporações
farmacêuticas, adiciona enorme mais-valor aos seus produtos.
Denominamos plataformas
sociodigitais (PSDs) a um conjunto específico de plataformas de
negócios cujas receitas e lucros são extraídas diretamente da relação delas com
a sociedade em geral: Google, YouTube, Facebook, Amazon, Airbnb, Uber, dentre
outras. Essas receitas e lucros provém da mercadificação de dados que
extraem da população por elas reunida nos mercados onde operam. Aqui nos
defrontamos com uma primeira confusão conceitual pois será fácil encontrar na
literatura diferentes definições de “dados”, bem como diferentes
caracterizações dos “dados” como recurso econômico. Se você abre um catálogo do
IBGE, publicado em livro de papel, vê dezenas e dezenas de tabelas numéricas
arrumadas de acordo com alguns critérios de classificação: são dados. Numa
escola, cada aluno ou aluna, tem uma ficha com nome próprio, data de
nascimento, nome de pai e mãe, endereço, sexo etc.: são dados. A diferença
entre esses e muitos outros dados que sempre foram necessários às atividades
humanas, mesmo que a palavra “dados” não fosse usada nessa atual concepção, e o
que estamos aqui definindo, objeto das PSDs, é que estes estão registrados em
formato eletrônico, isto é, em arranjos de partículas nanométricas de óxido de
ferro conforme tenham recebido pulsos positivos ou negativos de energia
elétrica, na superfície de um disco de alumínio; ou em arranjos de conexões
entre transistores também nanométricos em chips de memória. Aquilo que na tela
de um computador vemos ou ouvimos como letras, números, imagens, sons, foram
reduzidos a sequências de zeros e uns, ou liga-desliga, nos arranjos dos
componentes de memória dos sistemas de computação digital. Essencialmente, a
única diferença desses arranjos eletrônicos de dados para aqueles de um
catálogo em papel do IBGE ou fichários de alunos numa gaveta da escola, é o
método de registro: estes são denominados analógicos, aquele é digital.
Apesar
de uma explicação como essa parecer primária, elementar, ela se torna
necessária para começar a desfazer confusões. A primeira: dado é um objeto
material, isto é, trata-se de algum registro feito por alguém nas formas de
números, letras, imagens, sons, seja em alguma superfície como o papel; seja em
arranjos eletro-eletrônicos binários em disco magnético ou chip de memória de
computador. A segunda: dado não nasce por geração espontânea ou não se encontra
na natureza, é sempre produto de alguma atividade humana, logo, produto
de trabalho. Não existe dado “bruto”, como advogam alguns. Resulta
de tempo de trabalho e resulta em alguma
transformação no objeto do trabalho: se numa folha de papel em branco, anoto
alguns números, esta folha já não é uma folha de papel em branco, mas matéria
transformada pela minha ação sobre ela.
As
PSDs construíram gigantescos sistemas de captura, organização, armazenamento de
dados produzidos pelas atividades sociais de bilhões de indivíduos e milhões de
empresas, em todo o mundo (ou quase, elas não estão presentes na China, por
exemplo). A finalidade desses sistemas é possibilitar a comercialização desses
dados. No entanto, dependendo do tipo de negócio, existem diferentes modelos de
comercialização. Grosso modo, considerando esses modelos, as PSDs podem ser
classificadas em quatro grandes segmentos:
i. intermediárias de negócios: Amazon, Airbnb, E-Bay etc. que põem
em relação direta vendedores e compradores de bens ou serviços;
ii. produtores de audiência: YouTube, Instagram, Facebook, TikTok
etc. que, impulsionando conteúdos produzidos pelos seus usuários, produzem
audiência para atrair veiculação publicitária paga;
iii. transportadores em curta
distância (ou urbanos): Uber, iFood etc., que transportam mercadorias
ou pessoas nas distâncias urbanas (“última milha”).
iv. distribuidores de conteúdos:
Spotfy, Netflix, outras plataformas conhecidas como streaming,
cujas receitas provêm basicamente de assinaturas.
Em
todos esses quatro modelos, os dados produzidos por milhões, até bilhões de
pessoas, são capturados por sistemas de máquinas dotadas de alto poder de
processamento e de poderosos softwares de tratamento, classificação,
organização e oferta desses dados. Esses sistemas são denominados algoritmos.
Atendem à finalidade de, no menor espaço de tempo possível, colocar um produtor
de bem ou serviço em contato com algum demandante, de preferência concluindo
algum negócio. A diferença taxionômica deve-se à forma de remuneração de cada
forma de negócio. Os intermediários de negócios extraem suas receitas das taxas
de intermediação. Os produtores de audiência, dos preços pagos pelos
anunciantes quando seus anúncios são visualizados nas telas de computadores
ou smartphones, além de taxas extras se o anúncio é “clicado”,
resultou em negócio etc. Os transportadores, de cota-parte do preço cobrado ao
consumidor ou usuário a cada viagem, deixando uma outra cota-parte para
remuneração do trabalhador. Os distribuidores de conteúdos, das assinaturas de
seu público.
A relação entre o detentor de dados (as PSDs) e alguém interessado, por qualquer motivo, em pagar por eles, também suscita confusões conceituais. Digamos que, no dia de aniversário da minha companheira, eu queira lhe presentear com flores. Faço uma busca, numa plataforma, pela palavra “flores”. A plataforma, imediatamente, vai exibir na minha tela, uma lista de lojas ou quiosques vendedores de flores. Para o algoritmo, “alguém” está querendo comprar “flores”. Esse “alguém” precisa fornecer alguns dados: nome, endereço, cartão de crédito, entre outros. Os vendedores, já previamente cadastrados na plataforma, também fornecem alguns dados: antes de mais nada, estão interessados na palavra “flores”, logo dispostos a pagar por esta palavra. Estranho, não? Palavra parecer mercadoria! Ao se cadastrarem como compradores de palavras na plataforma, outro dado importante é quanto estão dispostos a pagar por ela. O algoritmo, então, organiza as ofertas de preços previamente cadastradas, e oferece ao potencial comprador uma lista de opções de vendedores a escolher, naturalmente priorizando os que pagaram mais. Nessa lista constam outros dados dos potenciais vendedores, como prazo de entrega, avaliações etc. Como as telas são espaços limitados, a disputa competitiva visa ocupar lugar de destaque na tela.
Esta
é a descrição mais simples, com fins didáticos, de como as plataformas fazem
negócios com dados, sabendo-se que para cada tipo de empresa e mercado há
diferenças nas práticas. De um lado, textos, imagens, sons de algum potencial
consumidor são reduzidos a dados digitais sobre esta pessoa; de outro lado,
também textos, imagens, sons e uns tantos números precedidos de cifrão são
reduzidos a dados digitais sobre vendedores competindo entre si por um espaço
destacado numa tela. Como se viu, a disputa é semelhante a um leilão.
E, de fato, é isso: um leilão. O que nos coloca diante de várias questões
teóricas interessantes:
i. quem pagou por um “kit de dados”
a respeito do comprador (nome, endereço, cartão de crédito etc.) não se torna
proprietário desse objeto: a rigor, pagou por um direito de acesso a
um potencial consumidor. Ele não pode levar os dados para o estoque da sua
empresa, como podemos, por exemplo, levar para casa um tapete comprado num
leilão de artes. Os dados seguem propriedade da plataforma.
ii. o preço pago, por ser leilão,
não expressa algum valor medido pelo tempo de trabalho: que valor é
esse? Evidentemente, o dado tem valor de uso, ou não interessaria a
ninguém pagar por ele. O dado também tem valor de troca, tanto que
é oferecido ao mercado pela plataforma. Mas esse valor pode ser medido?
Dados
pois são mercadoria: um objeto externo que atende a necessidades de
alguém (seja quem oferece algum produto que pode ser flores ou caminhões; seja
uma pessoa precisando se locomover; etc.) mas cujo preço é fixado conforme as
circunstâncias da oferta e da demanda. Tem algo aqui que estaria ofendendo a
boa teoria? Não. Exatamente assim funciona o mercado de dinheiro, esta
mercadoria “sui generis”, conforme Marx nos ensina no Livro 3 d’O Capital.
Investigando
o capital portador de juros, ele observa:
“O
capitalista monetário aliena, de fato um valor de uso e, por isso, o que ele
entrega é entregue como mercadoria. E nessa medida é completa a analogia com a
mercadoria enquanto tal. Primeiro, é um valor que passa de uma mão para outra.
No caso da mercadoria simples, da mercadoria enquanto tal, o mesmo valor
permanece nas mãos do comprador e do vendedor, só que em forma diferente: ambos
possuem o mesmo valor depois como antes, que alienaram, um em forma-mercadoria,
o outro, em forma-dinheiro. A diferença consiste em que, no caso do empréstimo,
o capitalista monetário é o único que entrega valor nessa transação: mas ele o
preserva mediante a restituição futura. No caso do empréstimo, valor é recebido
apenas por uma parte, já que apenas uma das partes entrega valor. Segundo, o
valor de uso real é alienado por uma parte e recebido e consumido pela outra.
Mas diferentemente da mercadoria comum, esse mesmo valor de uso é valor, a saber
excedente de grandeza de valor que resulta do uso do dinheiro como capital
acima de sua grandeza de valor original. O lucro é esse valor de uso.
O
valor de uso do dinheiro emprestado consiste em poder funcionar como capital e
em produzir, como tal sob circunstâncias médias, o lucro médio.
[…]
O
que o comprador de uma mercadoria comum compra é seu valor de uso; o que paga é
o seu valor. O que o mutuário do dinheiro compra é também o seu valor de uso
como capital; mas o que paga? Certamente não é, como no caso das outras
mercadorias, o preço ou valor4.”
É
por isso que
o
capital portador de juros, embora categoria absolutamente diferente da
mercadoria, se torna uma mercadoria sui generis e, por isso, o juro torna-se
seu preço, o qual, como preço de mercado da mercadoria comum, é fixado em cada
momento pela procura e oferta5.
O
dinheiro tem preço, tem valor de uso, mas, ao contrário da mercadoria, possui a
estranha qualidade de, ao invés de ser destruído pelo consumo (em menos tempo
ou mais tempo), não apenas se conserva como pode milagrosamente se multiplicar
como se fossem os pães de Cristo!
Qual
é então o valor de uso que o capitalista monetário aliena durante o prazo do
empréstimo e cede ao capitalista produtivo, o mutuário? É o valor de uso que o
dinheiro adquire pelo fato de poder ser transformado em capital, de poder
funcionar como capital e assim produzir em seu movimento determinada
mais-valia, o lucro médio […] além de conservar sua grandeza original de valor.
No caso das demais mercadorias consome-se, em última instância, o valor de uso,
e com isso desaparece a substância da mercadoria, e com ela seu valor. A
mercadoria capital, ao contrário, tem a peculiaridade de que, pelo consumo de
seu valor de uso, seu valor e seu valor de uso não só são conservados, mas
multiplicados6.
É
a mesma qualidade dos dados. O registro eletrônico em forma binária
correspondente à palavra “flores” permanece nos servidores das PSDs para ser
“vendido” e “revendido” quantas vezes quaisquer homens enamorados queiram dar
flores para as suas companheiras. O acesso a esse dado proporciona a algum
empresário movimentar o seu negócio, industrial ou comercial, mas, assim como o
dinheiro, situar-se-ia à margem do processo real da circulação. O acesso ao
dado (ou ao dinheiro) adianta o processo, alimenta-o, mas nele não se incorpora
endogenamente.
Nessa
relação não há troca de equivalentes, não há transferência de propriedade:
O
capitalista prestamista entrega seu capital, transfere-o ao capitalista
industrial, sem receber um equivalente. Sua entrega não constitui ato algum do
processo real de circulação do capital, mas apenas encaminha esse ciclo, a ser
realizado pelo capitalista industrial. Essa primeira mudança de lugar do
dinheiro não expressa ato algum da metamorfose, nem compra nem venda. A
propriedade não é cedida, porque não ocorre intercâmbio, não se recebe
equivalente7.
De
tudo isso, Marx chega à seguinte conclusão:
Emprestar
e tomar emprestado, em vez de vender e comprar, é aqui uma diferença que
decorre da natureza específica da mercadoria-capital. Do mesmo modo que o que
se paga aqui é juro, em vez de preço da mercadoria. Se se quiser chamar o juro
de preço do capital monetário, então essa é uma forma irracional de preço,
completamente em contradição com o conceito de preço da mercadoria. O preço se
reduz aqui à sua forma puramente abstrata e sem conteúdo, ou seja, ele é
determinado pela soma de dinheiro paga por qualquer coisa que, de uma maneira
ou de outra, figura como valor de uso, enquanto, segundo seu conceito, o preço
é igual ao valor expresso em dinheiro desse valor de uso8.
Em
outras palavras, o preço do dinheiro é similar, na qualidade, embora não,
obviamente, em seus montantes quantitativos, ao de um quadro de Van Gogh
vendido num leilão da Sotheby’s… Igualmente é similar o preço alcançado por um
“kit de dados” nos leilões que as PSDs promovem a todo instante: é abstrato e
sem conteúdo. Porém, muito interessante também, será pensar que o rendimento
obtido pelo valor dos dados poderia ser entendido como juros!
Dados
e informação
Os
dados, vimos, não podem ser trocados como se trocam mercadorias. Os dados
funcionam como uma espécie de “porta” pela qual um ofertante de bens ou
serviços pode entrar em contato com algum demandante. Mas a “porta” permanece
sob total controle da PSD, é ela que a “abre” ou “fecha”, decidindo assim quem
por ela pode ou não “passar”. Igual ao capital portador de juros, os dados
impulsionam os negócios, nisto proporcionando extraordinário mais-valor para as
corporações que os capturam, organizam e leiloam, igual ao dinheiro para os
bancos. Adiante veremos que essas corporações não passam, por isso mesmo, de
corporações financeiras. Mas antes, ainda precisamos entender melhor o que são
os dados.
Dados
são uma forma de informação. Tanto quanto a energia se
apresenta diante de nossos sentidos nas formas de luz, calor, eletricidade,
som, choque etc., podendo tudo isso, na melhor das hipóteses, ser reduzido e
unificado na famosa fórmula de Einstein9; a
informação também se apresenta diante de nós, como que “montada”, digamos
assim, naquelas formas de energia, porém, dotada de uma qualidade essencial,
até mesmo existencial, para os seres vivos em geral e para o ser
humano, em particular: suas manifestações energéticas são organizadas pelos
sistemas perceptivos e neurológicos dos seres vivos para atender às suas finalidades de
sobrevivência. Por isto, a informação, a cavaleiro da energia, é percebida,
pelo ser humano, nas formas de fonemas, daí palavras e línguas; de cores
“azul”, “vermelho”, “verde” etc., daí as imagens; de notas musicais; etc. Todas
essas formas podem ser tratadas através de um único grande sistema cognitivo,
embora, como é natural da cultura humana, abordado através de muitos
subsistemas epistemológicos e teóricos: o signo. Daí, as teorias
semióticas.
Informação
é uma “forma de movimento da matéria”, sentenciou o filósofo brasileiro Álvaro
Vieira Pinto10.
Para Gregory Bateson, “informação é uma diferença que produz uma diferença”11.
Para Dantas, é a relação entre um agente e seu meio ambiente (natural, social),
graças aos recursos perceptivos desse agente (culturalmente determinados no
caso do agente humano) e às suas finalidades de ação12.
O quê, na essência, vai diferenciar uma manifestação energética qualquer da
energia percebida como informação é ser esta acionada por um
agente vivo em função de alguma finalidade. O ser informacional, isto é,
qualquer ser vivo, é teleonômico: um sistema cuja causa é
determinada pela consequência desejada, não a consequência pela causa, seja
esta produzida, seja aleatória.
No
que interessa ao nosso debate, todas essas definições, rigorosamente
dialéticas, explicam as enormes dificuldades, não só teóricas, mas também
políticas e mesmo práticas, que o capitalismo atual, ou capital-informação,
enfrenta para lidar com uma crise que parece insolúvel e interminável. Como
informação não é “coisa”, mas é movimento, é relação, uma vez tenha a evolução
do capital, conforme uma lógica muito bem destrinchada por Marx, levado-o a
esta atual etapa na qual faz da informação ela mesma, em algumas de suas
formas, a exemplo dos dados, objeto de mercadificação e apropriação privada,
desmoronou-se a sua “mesquinha base” como também escreveu Marx numa famosa
passagem dos Grundrisse13:
o valor medido pelo tempo social médio de trabalho.
Esclareça-se
que ainda não é a negação e superação da lei do valor, como pretenderiam
alguns. Mas assim como a lei da gravidade funciona de um modo na superfície da
Terra e de muitos outros modos, no espaço extra-terrestre, também a lei do
valor – que permanece válida por ser constitutiva do modo de produção
capitalista – pode funcionar de diferentes modos na medida em que o próprio
capital evolui por força das suas contradições mesmas. Vimos acima como Marx
nos apresenta o funcionamento da lei do valor no mercado de dinheiro. Não será
muito diferente no mercado de dados, nem em outros mercados informacionais ou comunicacionais que
estão, hoje, no centro do processo capitalista de acumulação.
O
valor da informação é valor produzido pelo trabalho. Mas esse valor, sendo
relação, movimento, não pode ser congelado e conservado na mercadoria. A
analogia entre a garagem e a biblioteca proposta pelo físico e ciberneticista
autro-estadunidense Heinz von Foerster (1911-2002) ajuda a entender14.
A garagem estoca automóveis. A biblioteca estoca livros, microfichas,
documentos. A garagem não estoca locomoção: para isso, alguém terá que
movimentar e dirigir algum carro. Do mesmo modo, a biblioteca não estoca
informação: alguém terá que ler um livro, consultar as microfichas. Ou seja, só
há informação, assim como locomoção, se houver alguma ação. Cessada a ação,
cessou a informação. Restou apenas um objeto potencialmente informativo,
informação objetivada ou registrada, aguardando alguma ação seguinte. Em
síntese, não há informação sem trabalho, nem trabalho sem informação.
São
propriedades da informação:
i. Aditividade. A comunicação de
informação, geralmente na forma de algum conhecimento, transfere para o agente
comunicado esse conhecimento sem que o agente comunicador se aliene dele. Um
professor transmite o seu conhecimento em sala de aula, os estudantes
acrescentaram-se novos dados, conceitos, imagens, idéias, sem que o professor
tenha se desfeito um mínimo que seja desses dados, conceitos etc. Informação é
um trabalho cujo produto, seja em forma verbal, escrita, matemática, qualquer
outra, é de rendimento crescente. Daí, como vimos, dados não são
escassos. Se os economistas costumam definir sua ciência como a “ciência da
escassez”, já se defrontam aí com um sério problema teórico, até
epistemológico.
ii. Indivisibilidade.
Informação, sendo relação, não é divisível em partes unitárias iguais. Um mesmo
suporte informacional pode ser, por isto, compartilhado por mais de uma pessoa.
O professor não precisa repetir a mesma aula individualmente para cada um dos
30, 50, 60 estudantes da sua sala de aula. Um filme pode ser assistido por
dezenas de pessoas na sala de cinema, por muitos e muitos dias. Um livro pode
ser lido em comum pelo pai e seu filho ou filha. Os economistas, percebendo a
aparência sem discernir a essência, costumam, por isso, definir o que entendem
por “bem informacional” ou por “peça de informação” como “bem não rival”.
iii. Aleatoriedade ou incerteza.
“Informação é medida da remoção de incerteza” definiu Claude Shannon15.
Sendo movimento, relação, causa determinada pela consequência, o resultado do
trabalho informacional, logo o seu valor, só pode ser conhecido ao concluir-se
o trabalho. O tempo necessário para a conclusão desse trabalho é também uma
dimensão da incerteza. Por isto, o valor da informação é função da dimensão de
incerteza removida no menor tempo possível. Você só sabe, realmente, se vai
gostar do filme depois de assistir ao filme. Já a camisa na vitrine da loja lhe
dá a certeza imediata se lhe agradou ou não. Evidentemente, existem muitas
“estratégias”, digamos assim, de redução da incerteza mas, nos limites e escopo
deste artigo, não podemos aprofundar este ponto.
Todos
esses aspectos, ainda que só nas suas aparências, suscitaram não poucos
problemas para a teoria econômica mainstream como bem o sabem
Kenneth Arrow16,
Joseph Stiglitz17,
entre outros. Já é tempo de os marxistas, com as ferramentas da lógica
dialética, se disporem a também examiná-los.
Para
onde vamos?
A análise
sobre o capital digital-financeiro foi dividida em duas partes. A Parte II, que será
publicada na segunda-feira (17), abordará os desafios da regulação dessas
plataformas, o impacto do trabalho não remunerado na produção de dados e as
alternativas para construir uma economia digital mais justa e soberana.
Continue acompanhando para entender como o domínio das Big Techs pode ser
questionado e quais caminhos podemos seguir rumo a um futuro mais equilibrado.
_____________________________
Notas:
1 Giuliano da Empoli, Os
engenheiros do caos, São Paulo, SP/Belo Horizonte, MG: Vestígio, 2019; Max
Fisher, A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram
nossa mente e nosso mundo, São Paulo, SP: Todavia, 2023..
2 Marcos Dantas, “A
matemática da desordem informacional”, A Terra é redonda,
5/05/2024, disponível em
https://aterraeredonda.com.br/a-matematica-da-desordem-informacional/, acessado
em 07/02/2025
3 David Harvey, Condição
pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1996, 6ª ed.
4 Karl Marx, O
Capital, Vol. III, Tomo 1, São Paulo: Abril, 1984,, pgs. 264-265
5 idem,, pg. 274.
6 idem, pg. 264.
7 idem, pg. 261.
8 idem, pg. 266.
9 Segundo Alberto Einstein
(1879.-1955), a energia (E) é igual ao produto da massa (m) pelo quadrado da
velocidade (V): E = mc2.
10 Álvaro Vieira
Pinto, O Conceito de Tecnologia, Rio de Janeiro: Contraponto, vol.
2, pg. 379
11 Gregory Bateson, BATESON, Gregory (1972). Steps to an Ecology
of Mind, Northvale, USA: Jason Aronson, pg 381.
12 Marcos Dantas, “Informação,
trabalho e capital”, In Marcos Dantas et alii, O
valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na
era da internet e do espetáculo, São Paulo: Boitempo, pg. 17.
13 No original “bornierten
Grundlage” ou “tacanha base”. Na tradução de Pedro Scarón para a Siglo XXI (Elementos
fundamentales para la crítica de la Economia Política – borrador – 1857-1858,
México, DF: Siglo XXI, 1973, 4ª ed., Vol. 2, pg. 229), “mezquina base”. Na
tradução de Mario Duayer e Nelio Schneider (Grundrisse, São Paulo:
Boitempo, 2011, pg. 589), “fundamento acanhado”. Aqui, optamos pela tradução de
Scarón.
14 Heinz von Foerster,
“Epistemology of Communication”, In Kathleen Woodward
(Org.), The Myths of Information: Technology and Post-Industrial
Culture, Londres, Routledge & Keegan-Paul, 1980, pg. 19.
15 Claude Shannon). “A Mathematical Theory of
Communication”. The Bell System Technical Journal, 1948, v. 27, n. 3: pgs. 379-423.
16 Kenneth Arrow, “Economic
Welfare and the Allocation of Resources for Invention”, The Rate and
Directionof Inventivity Economic and Social Factors, Princenton: Princenton
University Press, 1962.
17 Joseph Stiglitz, “The
Contributions of the Economics of Information to the Twentieth Century”, The
Quartely Journal of Economics, v. 115, n. 4, nov. 2000, p. 1.441.
_____________________________
Marcos Dantas é
professor titular (aposentado) da UFRJ, professor do PPG em Comunicação e
Cultura da ECO/UFRJ e do PPG em Ciência da Informação da ECO-IBICT/UFRJ. É
membro do Conselho de Administração do NIC.Br e foi, por três mandatos
consecutivos, um dos representantes da Academia no Conselho do Comitê Gestor da
Internet no Brasil (CGI.Br). É presidente da Fundação Maurício Grabóis – Seção
Rio de Janeiro. É autor de A lógica do capital-informação: a fragmentação dos
monopólios e a monopolização dos fragmentos em um mundo de comunicações globais
(Ed. Contraponto, 1996, 2ª Ed. 2002) e (em co-autoria) de O Valor da
Informação; de como o capital se apropria do trabalho social na era do
espetáculo e da internet (Boitempo, 2022).
Digitalização do ser humano: a
fusão entre identidade, dados e algoritmos na era do capital
digital-financeiro. Crédito: Gerd
Altmann/Pixabay
[Se comentar, assine]
Leia: IA, nem inteligente, nem artificial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/ia-o-que-e.html
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