07 abril 2025

Crônica de carnaval: Lima Barreto

O meu carnaval
Lima Barreto  

Como você mesmo foi recrutado?

– Fui; e comi fogo que não foi graça.

– Como foi a história?

– Aproximava-se o carnaval. Como era minha fantasia, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do Largo do Rio Comprido.

– Ao chegar ao escritório, na Rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas d'água de um prédio novo.” Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu ​​por uma rua transversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do aspecto mais curioso. Eram de diversos núcleos, formando uma escolta, cujo comandante, um cabo, era um preto. E que preto engraçado! Desengonçado, pernas compridas e arqueadas, pés espalhados — era mesmo um macaco. A farda, blusa e calça, estava toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito… Enfim, era um verdadeiro jagodes, um “Judas”.

– O que é que eles te disseram?

– O cabo veio direito a mim e me perguntou com toda a empáfia: “Onde é que você vai?” Disse-lhe; mas a autoridade feroz parecia ter implicado comigo, tanto que me intimou: “Você vai à presença do senhor capitão Lulu.” “Mas não fiz nada”, objetei. Ele foi inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num dado momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse comigo, esse paisano ia já.” E fez menção de desembainhar um enorme sabre de cavalaria que tinha à cinta.

– Mas que soldados eram estes?

– Não está vendendo logo? Eram guardas nacionais.

– Percebo. Foste?

– Fui. Que remédio?

– O que te fez?

– Vou contar-te tintim por tintim. Levaram-me a presença do oficial. Era um mulato forte, simpático, e o sério intensamente se não fosse a sua presunção e pernosticidade. Era assim o capitão Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me num tom imperativo: “Você é um reles desertor. É um brasileiro ignóbil que recusa servir a sua pátria.” Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado, como posso ser desertor?” O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha interrogativa, mas me perguntou: “Como é que você se chama?” Disse-lhe. Indagou ainda: “Onde é que você mora.” Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina.” Isto pareceu-lhe contrário; mas nada disse. Pôs-se a escrever num livro e, por fim, falou-me: “Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo atualizado neste batalhão — 01.723.436. regimento de cavalaria da Guarda Nacional. Apesar das sugestões reiteradas, você não foi apresentado. Está preso disciplinarmente por oito dias.” Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”, fiz eu, um tremor. “Cabo”, especificamente o Lulu, “cumpra as ordens. Já sabe!

– Puseram-te na cadeia?

– Não. Revistaram-me, tiraram-me as ferramentas e o dinheiro que levava. Isto tudo, na presença do marcial Lulu. Quando este viu os cobres, esclareceu: “Dá cá! Esses cobres vão para a caixa do regimento.” Após o que, levou-me para um outro compartimento, onde me fez despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme. Das peças que lá havia, a única blusa que me chegava, tinha as divisas de cabo. Não quiseram arrancá-las e fui feito cabo de esquadra. Isso não impediu, porém, que me pusessem em serviço árduo.

– O que foi?

– Meteram-me uma enxada na mão e fizeram-me capinar a chácara durante quase oito dias, passando fome.

– Como?

– A comida era café ralo e pão duro, pela manhã; e, às duas horas, um ensopado de mamão verde, muito mal feito, não qual encontrar uma pastilha de carne seca era uma raridade de fazer alegria até chorar. Na sexta-feira que antecede o sábado, véspera do carnaval, descansei. Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, ou que fiz usar em cima do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa lavada a ferro; e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença do comandante. Apresentei-me, fiz a continência que me foi ensinado e esperei as ordens. O Lulu disse para o superior: “Está aí coronel, o desertor que capturei.” O comandante recostado na cadeira, acariciou o ventre proeminente com as duas mãos e disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?” A capitã Lulu respondeu: “Vai ser minha ordenança, no patrulhamento do carnaval.” O coronel ítalo-brasileiro só se limitou a dizer: “Bene!” À tarde, no sábado, Lulu, antes de sairmos, mandou-me chamar e me aconselhar: “Você me parece boa pessoa, disciplinada. Proceda muito bem. 'A submissão é a base do aperfeiçoamento', disse Victor Hugo. Se sou oficial, cheguei à posição em que estou, devo, não só ao meu esforço, como também a ser obediente aos meus superiores. Você veio, me acompanhou; porte-se bem que não terá de se arrepender.”

– O que era esse tipo, além da guarda nacional?

– Era servente do Senado.

– Que magnata!

– Não te rias. À hora marcada, saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco mil réis, para despesas; mas não posso gastar em uma feijoada, porque o aguerrido Lulu não me dava tempo. Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude beber e comer à vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganhado a intimidade de Lulu, a ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me licença de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui de farda, facão e tudo! Quando cheguei ao Largo do Rio Comprido, saltei para levar alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de espanto, me disse: “Valentim! O que é isso? Você pode ser 'pegado'!” “Porque?” “Ninguém se pode fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito isto, quando fui preso imediatamente por um policial que me levou à delegacia onde não me quis ouvir e me meteram no xadrez até quarta-feira de cinzas. Está em que deu a Guarda Nacional e como foi o meu carnaval, naquele ano.

[Ilustração: O multi-instrumentista Índio da Cuíca Foto: Alfredo Alves]

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