Os generais já abandonaram o barco bolsonarista?
O que diz o Alto Comando sobre as eleições – e o golpismo de
Bolsonaro. Como se deu o retorno dos militares ao Planalto, sob a ilusão de
controlar arroubos do ex-capitão. As críticas ao governo: mais à forma que ao
conteúdo antidemocrático
Monica Gugliano, na Pública
A poucos dias do primeiro
turno das eleições, o Alto Comando do Exército (ACE) se prepara para atravessar
um dos momentos mais críticos de sua história desde a redemocratização.
Agastados com as insinuações e comentários de que podem apoiar um golpe, os 16
generais de quatro estrelas têm recorrido ao silêncio como resposta e, à boca
pequena, afirmam que nunca sequer foi cogitada alguma medida de força contra as
instituições democráticas. Ao longo de três meses, a Agência Pública ouviu 15
oficiais da ativa e da reserva para entender o clima no topo da instituição.
Eles acompanham com apreensão o acirramento do clima político e as previsões de
que conflitos isolados criem tumultos pelo país, sabendo que existe a
probabilidade de que sejam chamados a intervir pontualmente.
Reclamam da polarização e dos “ataques” e “achincalhes” que
dizem receber e do desgaste da imagem da Força que atribuem a setores da
imprensa e de grupos políticos que pretenderiam “desestabilizar” a instituição.
E recusam o fato de que isso se deve, em grande parte, à associação nos últimos
quatro anos de uma força armada com o governo de Jair Bolsonaro, avaliado
negativamente por mais de 50% dos eleitores, segundo as últimas pesquisas.
“O Exército é um peão na mão dele [Bolsonaro] e é também um peão
na mão de parte imprensa que usa parte do Exército para atingir o presidente.
Não estão entendendo que o presidente é um lapso na história do país, qualquer
presidente é um lapso na história. O Exército está aí e continuará”, afirmou um
oficial general da reserva com grande influência na Força, ouvido pela Pública.
Com ações e conceitos como
o do “meu Exército”, analisam acadêmicos, o presidente conseguiu dar um fim no
ciclo tido como “virtuoso” até o ano de 2014, quando o Brasil caminhava para a
afirmação plena do controle civil sobre os militares. “Voltamos ao início da
transição democrática, quando houve um grande esforço para retirar os militares
da política. Houve um claro retrocesso e se um candidato de oposição for
eleito, ele terá muito trabalho para remover os militares dessa arena”, avalia
o professor Octávio Amorim Neto, cientista político e professor titular da
Escola de Administração Pública e de Empresas (EBAPE), da Fundação Getúlio
Vargas.
Leia também: Bolsonaro e o baile da Ilha Fiscal https://bit.ly/3eqD64I
Bolsonaro e os militares se retroalimentaram. E por mais que os
membros do Alto Comando, a maior instância da Força, além do Comandante, tentem
escapar dessa associação, o colegiado acabou por ser o elo mais visível dessa
conexão, justamente porque dos integrantes saíram muitos dos membros do
Governo. O que acontecerá se as urnas levarem Bolsonaro à derrota está nesta
reportagem.
Em novembro de 2020, o então comandante do Exército, general
Edson Pujol, declarou que “a instituição não pertence ao governo e não tem
partido político”. Foi um discurso durante um seminário de defesa nacional,
promovido pelas Forças Armadas em que Pujol reafirmava que “os militares não
querem fazer parte da política nem querem que a política entre nos quartéis”.
Pujol evidentemente não se referia, como explicaram à época
assessores dele, a instituição “Alto Comando do Exército”, regulamentada pelo
Decreto Nº 31.639, de 23 de outubro de 1952, cujas ações são institucionais e
que se reúne basicamente para tratar das questões administrativas e das
promoções. Mas, sim, aos integrantes que passaram por ela desde que o então
deputado Bolsonaro construiu sua candidatura, e em especial aqueles que
participaram da articulação eleitoral e se integraram ao primeiro escalão do
seu governo.
Logo de saída, os mais notórios com assento no Palácio do
Planalto eram os generais da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro
do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); Carlos Alberto dos Santos Cruz,
ministro chefe da Secretaria de Governo; Maynard Marques Santa Rosa, secretário
de Assuntos Estratégicos (SAE); Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa.
“É uma questão de inteligência escolher os militares para alguns postos do
governo. Eles estão acostumados a estudar e a decidir, com base em uma sólida
formação multidisciplinar”, justifica um desses generais e a investigar as
ameaças à democracia é nossa forma de protegê-la.
“Há ‘n’ vetores por onde isso foi sendo produzido, mas acho que
o mais importante deles foi a extensa imbricação entre a caserna e a política
que se tornou pública com o ritual de Bolsonaro sendo lançado candidato à
Presidente na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 2014”, explica o
professor da Universidade Federal de São Carlos, Piero Leiner. Em sua opinião,
quando a candidatura de Bolsonaro foi lançada na Academia Militar das Agulhas
Negras (Aman), toda a cadeia de comando, tendo em vista que ninguém se
manifestou contra, teria se comprometido. “Uma vez que o comando permitiu,
abriu-se a porteira”.
A porteira continuou aberta para sempre. Já na largada, entraram
pelo portão principal do Centro Cultural do Banco do Brasil, onde se instalou a
equipe de transição, os generais da reserva que puseram suas carreiras de prestígio
a serviço do projeto bolsonarista, muitos dos quais acabaram demitidos com
requintes de humilhação. Propagando a ideia de que poderiam controlar os
arroubos do ex-capitão, embora soubessem do temperamento indisciplinado e
incorrigível que ele nunca escondera.
“É uma dinâmica que voltou a ser o que era na época da ditadura,
quando eles estavam governando o país. Agora eles não estão governando o país,
mas as possibilidades de emprego que eles têm é similar à que eles tinham na
época da ditadura”, observa a professora, doutora em ciência política, Adriana
Marques. A dinâmica à qual Marques se refere é a que ocorreu após o golpe
militar de 1964. Naquele momento, assim como passou a acontecer no governo de
Bolsonaro, do Alto Comando saíram os presidentes da República, muitos dos seus
auxiliares, presidentes de estatais e outros cargos espalhados pelo país.
“Há oito anos, qual era o horizonte do general que chegava ao
Alto Comando?”, pergunta, respondendo ela mesma: “Era ficar ali até a
aposentadoria. O máximo que podiam almejar era chegar a Comandante do Exército
ou ser ministro do GSI, mas eram exceções. Hoje não”.
A diferença, explica a professora, está no papel que esses
militares desempenham e do consenso de que não deve haver esse envolvimento.
“Nos países com democracias madura, é impensável, um general sair do Alto
Comando para uma função política”, diz. Ela aponta as leis dos Estados Unidos
que, até a chegada de Donald Trump à Casa Branca, eram extremamente rigorosas a
respeito de nomeações de generais da reserva. Trump mudou as normas, como
descreve Peter Bergen, analista de segurança nacional da CNN, em seu livro
“Trump and His Generals: The coast of Chaos” (Penguin Press, 2019).
Uma análise dos pagamentos a generais que saíram da ACE para se
juntar ao governo mostra que eles passaram a receber salário de ministro de
cerca de R$ 33 mil, além das aposentadorias integrais, de valor de cerca de R$
31 mil. Uma portaria do governo Bolsonaro permitiu a acumulação dos dois
salários.
Por meio da Lei de Acesso a Informação (LAI), a Agência Pública
obteve a relação dos 41 generais que integraram o Alto Comando do Exército
desde 2017. Nessa relação estão outros nomes que foram para o governo. Além do
comandante Eduardo Villas Bôas, que na época já era portador de ELA (Esclerose
Lateral Amiotrófica), uma doença incapacitante, o futuro vice-presidente
Hamilton Mourão; o futuro ministro da Defesa Fernando Azevedo; o general Braga
Netto que passou pela Casa Civil, ministério da Defesa e agora é candidato a
vice-presidente na chapa de Bolsonaro; o general Oswaldo Ferreira, que foi um
dos coordenadores do programa de governo de Bolsonaro em 2018 e foi nomeado
diretor da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares; o general Gerson
Menandro Garcia de Freitas, embaixador do Brasil em Israel, e o general Carlos
Alberto Neiva Barcellos é o Conselheiro Militar junto a Representação do Brasil
na Conferência de Desarmamento da ONU, em Genebra.
Logo depois dessa primeira turma de generais que fincou bandeira
no Palácio do Planalto, começaram a chegar os generais ainda na ativa. Esses
últimos foram autorizados a assumirem os cargos pelo então Comandante do
Exército general Edson Leal Pujol, conforme determina o artigo 1° do decreto
8.798, de 04 de julho de 2016 – o decreto de Temer logo após o afastamento de
Dilma Rousseff, devolveu esse poder aos comandantes das forças.
O primeiro a chegar ao Palácio do Planalto, ainda no mês de
janeiro, foi o porta-voz, general de Divisão, Otávio Rêgo Barros. Credenciado
ao cargo pelo trabalho que fizera como chefe da Centro de Comunicação Social do
Exército (CCOMSEX) durante o comando do general Eduardo Villas Bôas, Rêgo
Barros pretendia profissionalizar a comunicação e as ações de Bolsonaro junto a
imprensa. Sucumbiu um ano e dez meses depois.
A antessala da carreira
política
No período que passou na função, Rêgo Barros, descendente da
nobreza pernambucana, de modos distintos, exibindo conhecimento e cultura,
penou no trabalho, servindo a um chefe com nenhuma das qualidades que ele
admirava e que, pelo contrário, se comportava como se estivesse numa
estrebaria. Com o tempo e a familiaridade, a convivência foi piorando. A
primeira ação dele na Secretaria de Imprensa do Palácio do Planalto foi
inaugurar uma série de cafés da manhã entre o chefe e jornalistas para
estreitar o relacionamento.
No início, os encontros até funcionaram, mas logo a coisa
desandou. Carlos Bolsonaro, no comando do gabinete do ódio, detonava os eventos
que considerava “improdutivos” e passou a se intrometer na relação de convidados.
Por fim, o filho 02 convenceu o pai a acabar com os cafés e com qualquer
iniciativa na área de comunicação que não fossem aquelas sugeridas pelo grupo
dele ou pelo próprio presidente que passou a atender apenas os jornalistas que
o ouviam sem nenhum tipo de objeção. E as relações com o general, que já eram
péssimas, explodiram de vez com a chegada do publicitário de confiança da
família, Fábio Wajngarten (atual coordenador de comunicação da campanha de
Bolsonaro). O presidente extinguiu a função de porta-voz, exonerando Rêgo
Barros sem sequer recebê-lo para lhe dar tchau.
Desde o período em que o chefe do CCOMSEX foi o general Augusto
Heleno (2002-2004), até os dias de hoje, Rêgo Barros foi o único general de
Divisão que chefiou o centro e não foi promovido a general de Exército. Saiu do
cargo calado. Porém, alguns meses depois o ex-porta-voz passou a escrever em
jornais e sites, lavando a roupa suja – mas sempre com mensagens cifradas, para
entendidos – em artigos distribuídos na imprensa nacional. Acabou de vez com
sua reputação entre os oficiais que consideram um “ato de traição” criticar
publicamente os companheiros.
Santa Rosa e Santos Cruz abandonaram o barco ainda no primeiro
ano de governo. O primeiro, um general de quatro estrelas na reserva que
assumiu a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), percebeu que não haveria
nada de estratégico a fazer na desordem do governo Bolsonaro. Para o lugar de
Santa Rosa, Bolsonaro nomeou o Almirante Flávio Augusto Viana Rocha, tratado no
Planalto como “chanceler paralelo”, pois se tornou um dos conselheiros de
Bolsonaro para a política externa, depois da queda do ministro Ernesto Araújo.
O segundo, Santos Cruz, saiu em junho de 2019, decepcionado com
um governo que não era nada do que ele imaginara. Hoje, ele é um dos mais duros
críticos de Bolsonaro, a quem acusa de ter passado quatro anos fazendo campanha
e recrimina por tentar carregar as Forças Armadas para seu projeto pessoal,
como quando diz que teria apoio militar para um golpe de Estado.
“Quem ganhar, tem que levar. Seja Lula, seja Bolsonaro. São duas
opções que não são boas. Mas a instituição onde eu estive tantos anos não vai
se meter numa idiotice dessas”, afirmou em entrevista à Pública. Mesmo
desapontado, ir para o governo ajudou-o a galgar um lugar na política. O
general chegou a ser mencionado como candidato a deputado federal pelo Podemos,
mas desistiu após ser cotado para integrar o comitê da ONU que vai investigar
crimes e a guerra na Ucrânia. Ele nega que haja relação entre as duas coisas.
Para o lugar de Santos Cruz, Bolsonaro nomeou o general de
Exército Luiz Eduardo Ramos que deu um salto mortal com duplo carpado:
conseguiu dar expediente no governo enquanto general do Alto Comando. Não era
inédito. Mas era raríssimo desde a redemocratização que um general de Exército,
na ativa, exercesse um cargo de Ministro. Colega da Aman, amigo cordato,
ferrenho admirador e um dos articuladores da candidatura de Bolsonaro, Ramos,
já era olhado com desconfiança pelos colegas de farda, antes mesmo de se mudar
para o Palácio do Planalto. À boca pequena, porque nunca, jamais, alguém
falaria isso abertamente, se dizia que ele fazia leva-e-traz, comentando as
conversas das reuniões do ACE com Bolsonaro.
Nomeado para a Secretaria de Governo – que ficou vaga com a
saída também tempestuosa do general Santos Cruz – Ramos ficou, como general da
ativa, um ano no cargo. Deixou de frequentar as reuniões do ACE e tirou a
farda. Mas só foi para a reserva um ano depois, em 15 de julho de 2020, dizendo
que se afastava para evitar especulações de que os militares se envolviam em
política. Um pouco tarde. Já na reserva foi Chefe da Casa Civil, mas não lidava
muito bem com as articulações políticas e, muito menos, com os temas
administrativos. Ficou quatro meses no cargo e foi substituído por Braga Netto
que, ainda na ativa, seguiu a escola: levou um mês para passar para a reserva.
Cargo em família
Houve integrante do Alto Comando que foi para o governo e levou
a família. É o caso do general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid. Bolsonaro e
Lorena Cid foram da turma Tiradentes, formada pela Academia Militar das Agulhas
Negras (Aman) em 1977. São artilheiros, paraquedistas e serviram no 8° Grupo de
Campanha de Artilharia Paraquedista. O general assumiu a coordenação do escritório
da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) em
Miami. Seu filho, o tenente-coronel, Mauro César Barbosa Cid, é chefe dos
ajudantes de ordens do presidente da República e “personal videomaker” de
Bolsonaro.
Barbosa Cid, o filho, era major quando chegou ao Palácio do
Planalto nos primeiros dias do governo. Desde então, acumula encrencas e
processos na Justiça. Mas é a terceira geração de uma família de militares
habituada a transitar no poder e na política, que chegou com seu pai ao Alto
Comando do Exército (ACE). A lealdade e dedicação dos Cid fizeram do filho um
dos mais próximos assessores de Bolsonaro. E, em pouco tempo ele havia rompido
as barreiras da função, passando a ser ouvido sobre os mais diferentes temas,
de política internacional a estratégias para a campanha eleitoral.
Leia também: Duas táticas na reta final e a ameaça de
golpe https://bit.ly/3LyctaB
Em alguns setores do Exército, o papel de cinegrafista
protagonizado por Cid não é tratado com muita simpatia. Sabe-se que a função
exige uma afinidade extrema com o presidente, mas há dúvidas se essa afinidade
incluiria algumas das ações que Cid pratica. É comum vê-lo pendurado das
janelas ou nos estribos de carros, sempre em busca do melhor ângulo, da melhor
imagem e das declarações do presidente, mesmo que elas nem sempre retratem a
realidade.
Um exemplo aconteceu no final de agosto quando, em campanha
eleitoral no Paraná, Bolsonaro parou o comboio em uma estrada e desceu do carro
para gravar um rápido vídeo. Informou que estava em Foz do Iguaçu, fazendo uma
visita técnica à obra de duplicação da ponte do Paraguai, que prevê inaugurar
até o fim deste ano. Passam alguns segundos e ele aponta para o esqueleto de um
prédio atrás dele. Bolsonaro identifica a construção inacabada, dizendo ser a
Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana) e novamente afirma:
“160 milhões de reais enterrados. Esse é o PT. Agora, muita gente ficou rica
com essa obra. E não é uma exceção. É a regra do PT, começa a obra, desvia os
recursos e não conclui. (…) Enquanto a gente termina a ponte do lado de lá,
trabalho nosso. (…) É isso aí Brasil.”
A reitoria da Unila reagiu com indignação aos comentários de
Bolsonaro. Em uma nota, sem citar o presidente, diz que o nome da instituição
foi associado de forma “imprudente e injustificada” à existência de supostos
desvios de recursos públicos. Descreve também todo o histórico da construção e
dos esforços feitos para regularizar a obra, muitos deles já no governo de
Bolsonaro quando a universidade propôs a inclusão do projeto para o Programa de
Parceria de Investimentos (PPI). “(…) Apesar das veementes e constantes
insistências da UNILA, jamais foi avaliado [o projeto]. Hoje, o processo
continua paralisado no Ministério da Educação”, diz a nota.
O vídeo com a fake news produzida pelo presidente da República
foi gravado por duas pessoas. Uma delas, era o tenente-coronel, Mauro César
Barbosa Cid. Vestindo a farda camuflada do Exército Brasileiro, com a insígnia
de sua arma, a Artilharia, na gola direita, Cid entra no quadro da imagem
principal e registra com o celular a desinformação, provavelmente destinada a
inundar as redes bolsonaristas nas mídias sociais.
“É preciso entender que militares funcionam hierarquicamente, e
se o topo do comando vai num sentido, a tropa tende a seguir. Do contrário é
motim. E não houve motim. Logo, a Instituição concorda”, afirma Leiner.
Também autorizado por Pujol, Bolsonaro levou para o ministério
da Saúde em plena pandemia da Covid-19, o general intendente, Eduardo Pazuello,
que também estava na ativa. Terceiro titular da pasta, logo de cara nomeou
outros nove militares para cargos estratégicos na Saúde e, em setembro de 2020,
anunciou que o governo “estava vencendo a guerra contra a Covid”. Quando o
intendente, hoje candidato a deputado federal no Rio pelo PL, assumiu a pasta,
o país registrava 233 mil casos e 15.633 mortes associadas à covid. Em março de
2021, quando foi anunciado seu substituto, o número de casos passava de 11,5
milhões e as mortes se aproximavam de 280 mil. Sua gestão deixou o país em
segundo lugar entre as nações com mais óbitos pelo vírus.
Os números, entretanto, nunca sensibilizaram Bolsonaro. Pelo
contrário, sentindo-se injustiçado e achando que “seus generais” não o estavam
defendendo, se voltou contra o comandante do Exército, o general Edson Pujol,
segundo apurou a reportagem. Queria que ele se pronunciasse contra os lockdowns
para combater a pandemia. Se continuasse recusando-se a fazer a manifestação, o
chefe dele, o general Fernando Azevedo e Silva deveria demiti-lo. Até hoje,
Azevedo e Silva, um homem calmo e de gestos tranquilos, recorda o “pesadelo” em
que se transformou o fim de semana véspera de sua demissão, seguida da saída
dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.
A amigos, ele costuma dizer que, naquele momento, Bolsonaro
chegara longe demais e cita lições da academia sobre a interferência dos
militares na política: “Isso já não deu certo e não dará. Não vai acabar bem
neste governo” e repete as últimas palavras que trocou com Bolsonaro: “O senhor
não arrastará o Exército nessa aventura política”.
A pressão de Bolsonaro sob Azevedo e a demissão do Ministro
resultou na renúncia dos três comandantes das Forças Armadas. Até então, nunca
houvera na história recente de crise militar semelhante à causada pela demissão
de Azevedo e dos três comandantes militares (Exército, Marinha e Aeronáutica)
por não aceitarem assumir a defesa política do governo durante a pandemia.
Bolsonaro e os militares, entretanto, seguiram ligados
umbilicalmente. Pazuello, por exemplo, resolveu subir em um carro de som,
acompanhando o chefe em um ato político. Se seus superiores tivessem seguido o
Regulamento Disciplinar do Exército e o Estatuto dos Militares, ele teria sido
punido. O então comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira,
arquivou o processo “alegando que não ficou caracterizada nenhuma transgressão
disciplinar”. O Estatuto das Forças Armadas proíbe a participação de militares
em atos políticos e a desobediência pode ser punida com advertência e até
prisão. Algum tempo depois, ao deixar o cargo, não ficou desamparado. Tornou-se
assessor especial no Palácio do Planalto, apesar de ninguém saber o que ou quem
assessorava.
Leia também: O pomo da concórdia https://bit.ly/3AMYz0w
De episódio em episódio, analisam alguns acadêmicos, o governo
Bolsonaro foi desmontando a construção feita pelo primeiro presidente da
ditadura militar, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967),
cujo governo é reconhecido pela profissionalização das Forças Armadas. O
Marechal reestruturou o sistema de promoções, estabelecendo limites de
permanência na ativa por idade, normas que até hoje vigoram nos critérios
utilizados pelo Alto Comando. Também criou um prazo máximo de dois anos para
que oficiais se mantivessem em cargos civis, sem se desligarem do quadro da
ativa. Dessa maneira, ele evitou que esses militares se perpetuassem nas Forças
transformando-se em “vacas sagradas”, como define o jornalista Elio Gaspari no
primeiro dos cinco volumes sobre a história do regime militar, “A Ditadura
Envergonhada”.
Afinidade ideológica,
mas nem um tanque na rua
Hoje, embora o ACE rejeite a opinião de que os militares
voltaram à política, é difícil ignorar que, seja pela hierarquia e obediência
ou simplesmente porque o governo Bolsonaro coincide com o pensamento da
caserna, ambos estão interligados nesse projeto nacional. Comungam de ideias
como o temor do comunismo, a defesa da família tradicional e do porte e posse
de armas pelos ditos “cidadãos de bem”, o combate à corrupção e a suposta
ingerência de organismos ou organizações internacionais no Brasil.
Nas conversas mantidas com oficiais pela Pública, percebe-se que
as críticas feitas por esses militares não são dirigidas ao conteúdo. São à
forma, quer dizer, aos modos, ao vocabulário, ao desrespeito a liturgia e a
algumas leis que Bolsonaro despreza, como a obrigação de usar capacete ao andar
de moto. “A gente pede para que ele use. Mas ele não quer. Diz que quer ser
visto”, explicou um general com assento no Palácio do Planalto. Quando ponderei
que era ilegal não usar capacete, candidamente, ele me respondeu: “É…mas ele é
o presidente da República”.
Também desconfiam das pesquisas eleitorais, permanentemente
comparadas ao “Datapovo” que são as manifestações em favor de Bolsonaro, como
as do 7 de Setembro em Brasília e no Rio de Janeiro e da censura a alguns
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que consideram “partidários” e, em
grau muito menor que o demonstrado pelo ex-capitão, acreditam que é importante
aperfeiçoar o sistema das urnas eletrônicas. Mas coube ao Ministério da Defesa
o embate com o Tribunal Superior Eleitoral sobre a segurança do sistema.
Escapando das acusações sem provas que Bolsonaro planta contra o
sistema de votação eletrônico, os comandantes evitam qualquer comentário e
apenas acompanham, como há muitas eleições, a operação de Garantia da Votação e
Apuração (GVA), que substituiu, desde 2018, a figura das GLOs na época de
eleição.
Segundo a assessoria de imprensa do Ministério da Defesa, os
militares recrutados pela pasta vão registrar o resultado do boletim de quase
400 urnas e não estarão fardados. Segundo o Ministério, o traje civil pode ser
usado porque o registro do resultado pode ser feito por qualquer cidadão.
Portanto, não haveria necessidade de esses militares usarem fardas para serem
identificados como tais.
Após passarem algumas semanas reclamando nos bastidores que o
presidente tumultuara a organização do evento que comemorava o Bicentenário da
Proclamação da República e extinguira o desfile cívico-militar na Avenida
Presidente Vargas, uma tradição no Rio, aceitaram o evento em Copacabana, como
ele determinara. Tiveram o cuidado de evitar o palanque montado para o ato
eleitoral de Bolsonaro e ficaram no palco das autoridades, a poucos metros um
do outro. Mas, quando perguntados se não fora uma lástima abrir mão do desfile
oficial, a explicação corrente entre os oficiais é: “Não… Até porque o
presidente não pediu nada ilegal. Se não foi ilegal, está tudo bem”.
Os generais da ativa não chegaram ao ponto do ministro da
Defesa, o general da reserva Paulo Sérgio, que abraçou de corpo e alma a
cruzada do chefe contra a lisura das urnas e contra o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) tido como um “antro comunista” e determinado, como comentou um
assessor da pasta, a fazer qualquer coisa para eleger “o ladrão de nove dedos”.
Mas não estão dispostos a mover um único blindado para contestar
o resultado da eleição, ganhe quem ganhar, em primeiro ou em segundo turno. E
preferem apostar que Bolsonaro continuará com as bravatas, mas que não haverá
clima no país para um repeteco do dia 6 de janeiro de 2020, quando uma turba
invadiu o Congresso americano, conclamados por Donald Trump ao perder a
reeleição.
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