Seria o futebol o nosso popular?
Uma certa casta intelectual precisa se dar conta de que a
seleção não se resume ao rapaz enrolado com o fisco. Ela saberia da existência
de Richarlison, se não ostentasse diferença de classe com quem supostamente
pretende emancipar
Fran Alavina, Outras palavras
Antes da estreia da
seleção na Copa, era difuso – principalmente no campo da esquerda – um falso
dilema: devo, ou não torcer pelo Brasil? Como ultimamente a
excitação política está sempre acompanhada de um moralismo espalhafatoso, as
boas almas, de fato, nem se propunham com sinceridade o falso dilema, pois a
resposta já estava dada por antecipação: “não devo torcer!”, “não vou
torcer!”.
Era um imperativo
moral, tanto que passível de um proselitismo quase religioso: “Como assim!?
Você vai torcer para o Brasil? ”; e, às vezes, até um espanto
explicitamente condenatório: “Você acompanha futebol, você gosta!?”. Nas
estrelinhas, chega-se a ouvir o que não é dito explicitamente: “Futebol é
alienação das massas, é mais um ópio do povo”. Uma vez que já se teria
alcançado a luz da plena desalienação, torcer pela seleção seria se afogar no
poço do engano.
Atente nosso leitor
que esse falso dilema tem uma variação estética: “devo, ou não usar a camisa
verde-amarela?”. Como, na atualidade, tudo que é falso e superficial, mas
se apresenta como sincero dilema ético se multiplica ao infinito, há até manual
de como se vestir de verde-amarelo sem ser confundido com um fascista. Reparem
que esse medo revela uma penúria política: se apenas a vestimenta pode me
confundir com um fascista não seria porque minha fala, postura e toda
gestualidade já não se diferencia mais? Ao invés de inventarmos “manuais de
como usar camisa da seleção e não ser confundido com um fascista”, deveríamos
nos perguntar o que se passa para que as coisas ocorram dessa maneira: no plano
da confusão dos gestos e da adesão ingênua aos falsos dilemas morais.
No geral, essas
frases senso comum de esquerda – pois como nos lembra Gramsci,
há diversos tipos de senso comum, até mesmo entre aqueles que se
acham completamente intelectualizados, portanto acima de qualquer senso comum –
ocorrem na medida em que se faz rapidamente uma indução vulgar: se toma o grupo
de jogadores por aquilo que faz e diz um só deles, ou mesmo alguns deles. Se
por um lado, isto é um sintoma da nossa miopia pós-moderna de centrar os
objetos de nossas análises em um indivíduo como sempre representando
perfeitamente os grupos dos quais faz parte; por outro lado, mostra um
distanciamento da realidade mais cotidiana.
Trata-se de um
diletantismo moral de fundo intelectual. Esta postura moralista diletante,
típica de quem se considera único senhor das soluções das mazelas do mundo, faz
de tudo que é da cultura popular algo menor, simplório e
ingênuo. Até mesmo quando reconhece legitimidade, tende a compreender de modo a
tutelar, colocando o universo popular dos afetos e compreensões de mundo no registro
da relação subalterna de maioridade e minoridade intelectual. Estes
esbanjadores de certo capital intelectual agem como
participantes de uma casta, se enclausuram nos limites dos seus umbigos.
Consulte, leitor,
sua memória recente e facilmente se recordará das bocas que pronunciam as
expressões que citei no primeiro parágrafo. Na verdade, enquanto me lê, pode
até estar ouvindo uma delas em simultâneo. Ocorre que logo na estreia da
seleção, esta casta se deu conta que a nossa seleção não se resume apenas ao
rapaz que tem problemas com o fisco de mais de um país. Esta casta saberia da
existência de Richarlison, se não ficasse presa aos limites do seu umbigo, se
não se esforçasse tanto em ostentar uma diferença de classe com quem
pretensamente pretende emancipar. Não cairia em falsos dilemas se estivesse
organicamente no mundo da vida e não apenas naquele das ideias.
Um outro exemplo
desse espanto em descobrir um mundo que sempre esteve aí – por isso, este
espanto chega a ser risível – ocorreu recentemente, quando as torcidas
organizadas desobstruíram rodovias. Enxergaram, então, que as torcidas
organizadas não se reduzem àquilo que a grande impressa diz delas: um bando de
marginais arruaceiros. Se deram conta que sobre as organizadas pesam os piores
preconceitos de classe que esse país engendra diuturnamente.
Isso que agora se
observa na Copa não é novo. Ocorre desde sempre, pois parece que se fundou no
Brasil uma tradição intelectual de esquerda que possui uma aversão – às vezes
camuflada, outras vezes não – a tudo que é legítimo nacional-popular.
Estes diletantes morais falam o tempo todo em contar a nossa história não mais
no registro dos vencedores. Contudo, não reconhecem no futebol um elemento
possível de driblar a história dos vencedores, posto não enxergarem que no
futebol se funda uma rede de afinidades diferentes, pois sendo esporte, há uma
determinação lúdica. Uma determinação que não se perdeu mesmo com a gourmetização dos
estádios e a prevalência do modelo de torcedor-consumidor expresso na concepção
de sócio-torcedor.
Essa determinação
lúdica é capaz de constituir um certo sentimento de orgulho, ainda que não
elaborado conscientemente. Um sentimento talvez nostálgico: da admiração e
respeito que sempre esperamos ter, mas que se choca com nossas antigas e novas
mazelas político-sociais. Contudo, por ser lúdico, não estamos mais na
artificialidade do discurso oficial que tenta dar à realidade nacional aquilo
que ela não possui. Sendo lúdico, temos consciência que é jogo: mas se é assim
no jogo, porque não na completude da vida?
Por estarmos na
esfera do lúdico esportivo, não se opera diretamente com a noção de estado-nação.
Ora, se operássemos com essa noção, teríamos justamente uma reafirmação da
história dos vencedores: branca, elitista e de apagamento do elemento popular.
Contudo, os elementos de um mundo nacional-popular insistem em
ser protagonistas. Se impõem, sem pedir licença aos conceitos que tentam se
antecipar ao coletivo.
Em qual país as
pessoas protestam politicamente com a camisa da sua seleção de futebol? Se as
nossas elites reacionárias o fazem hoje, é porque se deram conta da capacidade
agregadora do símbolo; e, desde 2013 tentam roubá-lo na mão grande. Esses que
hoje erroneamente são tidos por loucos, têm plena consciência que é um roubo
cínico de algo que não foi construído pela classe de que fazem parte. Por isso,
agora tentam dissociar o uniforme da seleção daquilo que ele é desde sua
origem: um símbolo esportivo.
Há, contudo, no
futebol e nas diversas práticas que lhe são solidárias (a gestualidade do
torcer, por exemplo) um modo de contar nossa própria história que não é
passível de captura completa pelas elites, mas que uma certa classe intelectual
à esquerda prefere não enxergar, pois se quer a si mesma como única
protagonista.
É preciso que esta
classe não faça do torcer e das atividades lúdicas populares um interesse
passageiro, assentado apenas nos gols de Richarlison, mas que seja capaz de
repensar a si mesma e enxergar as crateras que cava entre si e o nacional-popular.
Um passe na medida, como o que se faz a um bom centroavante, seria não apenas
prestar atenção no mundo do futebol em tempos de Copa, mas estar nele sempre. É
preciso torcer, e torcendo mudar o país.
O
instigante mundo atual https://bit.ly/3Ye45TD
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