A ÓPERA VIVE
Montagens recentes de composições raras e obras em processo
renovam o vigor deste gênero artístico, apreciado desde o século XIX, no Recife
CARLOS
EDUARDO AMARAL, revista Continente
Carmen, Pagliacci, La serva padrona, As
bodas de Fígaro, Cavalleria rusticana...
O público recifense tem recebido, nos últimos anos, eventuais montagens de
óperas consagradas há mais de quatro séculos. Ao mesmo tempo, duas tendências
recentes emergiram em nível nacional, com reflexos na capital pernambucana e
resultados muito aplaudidos na cidade: o resgate de partituras esquecidas e o
fomento de composições originais, incluindo algumas adaptadas às novas mídias.
No primeiro caso, temos Leonor,
de Euclides Fonseca (1853-1929), a qual estreou como ópera propriamente dita,
isto é, com cenários e figurinos, em 28 de março de 2019, no Santa Isabel, no I
Festival de Ópera de Pernambuco (Fope). Isso porque alguns de seus
trechos (não ela toda, como faltou ser dito na matéria publicada na edição n°
181 da Continente, em
janeiro de 2016) haviam sido apresentados em um recital sinfônico no mesmo
teatro, no dia 7 de setembro de 1883. Por sua vez, a execução completa, ainda
em versão de concerto, ocorreu em abril de 2018, na Igreja da Madre de Deus, a
cargo da Orquestra Sinfônica e do Coro da Universidade Federal de Pernambuco,
sob regência do professor Sérgio Dias.
A montagem de 2019,
durante o I Fope, aconteceu
com interpretação da Sinfonieta UFPE e de coro e cantores da Academia de Ópera
do Recife, dois projetos de extensão coordenados pelo maestro Wendell Kettle,
que também promoveu a estreia de Il maledetto, do
mesmo Euclides Fonseca, em 2021 – com reencenação em agosto passado, na
terceira edição do festival.
“No caso de Il maledetto, sabemos que a obra foi apresentada quando
de sua composição (1902-03). O que não conseguimos determinar é se ela foi
encenada – o que pode ter ocorrido – e qual foi a formação do acompanhamento
instrumental. Do manuscrito constante na biblioteca do Instituto Ricardo
Brennand (IRB), a Introdução sinfônica era o
único número musical orquestrado, e para uma formação não peculiar à
atualidade. Para o restante da obra, que inclui toda a parte cantada, há apenas
o acompanhamento do órgão e partes instrumentais esparsas”, explica Kettle, que
supervisionou o trabalho de restauro, instrumentação e editoração da partitura.
Nesse processo de
restauro, conta o maestro, a orquestração da Introdução sinfônica foi
adaptada e complementada, e a orquestração das cenas cantadas foi construída
com base na escrita do órgão. “Pode-se inferir que houve uma reestreia da obra,
mas num novo formato – numa forma ou ‘roupagem’, de fato, operística”,
complementa o regente, que também planeja coordenar a revisão e a estreia das
outras duas óperas de Fonseca (cujo acervo completo de manuscritos se encontra
no IRB): A princesa do Catete e As donzelas d’Honor.
OUTRO RESGATE
O Fope resgatou outra ópera do ostracismo, no último
mês de agosto: A compadecida, de José Siqueira
(1907-1985), estreada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 11 de maio de
1961. Kettle tomou conhecimento da obra em 2007, durante o mestrado em
Regência, no Rio de Janeiro, e retomou o desejo de montá-la em 2016, ao
retornar do doutorado, em São Petersburgo, na Rússia. Após a aprovação do
projeto no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), o regente
obteve a autorização para a montagem e para o acesso à partitura, cuja revisão
dos originais, redução para piano e editoração ficaram a cargo de sete editores
coordenados por ele.
A recepção do público
durante as quatro récitas da reestreia de A compadecida foi
a melhor possível. Devemos pontuar, entre parênteses, que Ariano Suassuna
(1927-2014) não escreveu um libreto para Siqueira; este musicou o texto teatral
de Ariano. Seria algo equivalente, no cinema, a filmar uma montagem da peça em
vez de adaptá-la à linguagem cinematográfica. Assim, os cantores e o coro
interpretam um texto não adaptado para o canto, e ainda por cima emoldurado por
um acompanhamento musical que, de forma predominante, cumpre função de música
incidental, em vez de conduzir dramaticamente a narrativa. No entanto, a
revisitação de cada momento da trama escrita por Ariano garantiu o sucesso da
obra de José Siqueira junto à plateia.
Essa pontuação é
pertinente porque, vale frisar, ópera é um espetáculo que integra,
organicamente, canto lírico, música sinfônica (ou de câmara) e teatro, mesmo em
montagens modestas. Uma versão de concerto ou uma seleção de árias e coros em
forma de concerto não constitui uma ópera, senão um espetáculo belcantista,
ainda que existam gêneros de composição assim concebidos, como o oratório e a
cantata.
Se formos considerar
iniciativas daquele tipo, belcantistas, o público recifense teve acesso a
espetáculos como o Áreas sagradas –em
2010 e 2011 que levou intérpretes de árias de óperas a diversos templos
religiosos do Recife, de igrejas a centros espíritas e terreiros de religiões
de matriz africana, – e diversos recitais promovidos pelo festival Virtuosi e pelo Conservatório Pernambucano de
Música.
NOVAS COMPOSIÇÕES
O repertório operístico, escusado dizer, é muito mais do que um punhado
de obras adoradas por divólatras ou esquecidas no passado. Em julho de 2015,
por exemplo, o público recifense teve a oportunidade de ver O pescador e sua alma, do compositor carioca Marcos
Vieira Lucas e do libretista e dramaturgo Guilherme Miranda.
Coordenada pelo
barítono Luiz Kleber Queiroz e regida pela cravista Maria Aída Barroso, ambos
professores da UFPE, O pescador e sua alma havia
sido montada no Rio de Janeiro e em Brasília, em 2008. Ela se baseia em um
conto homônimo de Oscar Wilde (1854-1900). Enredos de origem literária, por
sinal, são uma constante na ópera brasileira, tal qual atestam a própria Leonor – adaptada da lenda As mangas de jasmim de Itamaracá, sobrevivente dos
anais literários pernambucanos de cerca de 400 anos atrás – e, claro, O Guarani, musicada por Carlos Gomes (1836-1896).
Outros compositores nacionais que seguem esta vertente são o carioca João Guilherme
Ripper, com Anjo negro, sobre a peça de mesmo
nome de Nelson Rodrigues (1912-1980); o paulistano Leonardo Martinelli, que
musicou adaptações de Navalha na carne, de
Plínio Marcos (1935-1999), O peru de Natal, de
Mário de Andrade, e O canto do cisne, de
Tchekhov (1860-1904); e o mineiro radicado em Curitiba Harry Crowl, com Sagarana, de Guimarães Rosa (1908-1967). Uma menção à
parte merece O quatrilho, adaptada pelo próprio
autor do romance original, José Clemente Pozenato, transformada em música por
Vagner Cunha e estreada em 2018, em Porto Alegre.
NOS ÚLTIMOS ANOS
Depois de Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri
Moura (música) e W. J. Solha (libreto), estreada em 2009, o Santa Isabel viu
outra ópera nascer em seu palco: Júlia, a tecelã, de
Wendell Kettle. O drama em um ato, encomendado pela Secretaria Municipal da
Mulher para as homenagens do centenário de Júlia Santiago (1917-1989), a
primeira mulher vereadora do Recife, foi executado uma única vez, em 2017, sob
regência do próprio compositor. No entanto, não houve gravação em vídeo, de
modo que Júlia, a tecelã permanece sem registro audiovisual
e consequente difusão, mesmo vindo a público em tempos mais recentes, dominados
pelas plataformas de vídeo, pagas ou gratuitas.
O cinema chegou a
investir em uma tentativa de mudança de paradigma da audiência operística:
inicialmente, no século passado, empreendendo produções exclusivas para as
telas, em vez dos palcos; depois, já neste século, com a exibição das montagens
teatrais, ao vivo ou gravada, em salas de multiplexes. O Metropolitan de Nova
York, que inaugurou o formato em 2006, ainda aposta nesse canal, embora menos
do que na plataforma de streaming que
criou posteriormente: a Met Opera on Demand. No Brasil, houve algum entusiasmo
dos fãs nos primórdios da veiculação nas telonas, logo minguado.
Por outro lado, a
pandemia de 2020 potencializou uma mídia muito mais democrática: o YouTube, que
passou a atrair não só os espectadores aficionados, como também os criadores
artísticos. Caiu o privilégio das produções cinematográficas aos títulos
consagrados (o que não podemos criticar, porque, além de a ópera ser um nicho
restrito na maior parte do planeta, qualquer modelo de venda, por definição,
precisa ser lucrativo) e floresceram as composições concebidas para serem
submetidas ao nosso like ou dislike.
Da parte de um
pernambucano, a primeira delas foi Penélope 19 – Uma ópera
doméstica, de Armando Lôbo, filmada em pleno lockdown, no Rio de Janeiro, e lançada em setembro de
2020 (leia entrevista com o compositor ao final desta matéria). Com 14 minutos
de duração, Penélope 19 retoma o mito
de Ulisses adequando-o às inquietações da
protagonista da trama acerca do confinamento social (“Quando essa Penélope
voltará a ver seu herói?”, poderíamos sintetizar).
MAIS COMPOSIÇÕES LOCAIS
Já residindo no Recife, Lôbo escreveu uma segunda ópera-filme: Último dia, que foi ao ar em junho de 2021 e condensa,
ao longo de 12 minutos, uma série de referências estéticas e literárias que ora
satirizam ora promovem reflexões sobre um comentado episódio de catalepsia (não
sabemos se real ou lendário) vivido por Levino Ferreira (1890-1970). Ambas as
produções estão disponíveis no canal Micro-operas, com roteiro, libreto,
música, mixagem, edição e direção capitaneados pelo compositor.
Em abril de 2022 foi
a vez de Emparedadas, com música de Sérgio Deslandes e libreto
de Milena Marques, ser lançada no canal Ópera no Recife e ter sua partitura
disponibilizada no site Grupo de
Pesquisa Mar de Corais. Tanto Emparedadas,
inspirada no célebre romance A emparedada da Rua Nova,
de Carneiro Vilela (1846-1913), quanto Último dia foram
contempladas no nível estadual pela Lei Aldir Blanc, aspecto que enaltece a
importância do incentivo cultural estatal a essa arte.
Por fim, Victor Luiz,
compositor residente em Camaragibe, concluiu a composição de Kairós: Minióperas do tempo oportuno, sobre libreto de
Luiz Kleber Queiroz e que consiste de quatro minióperas de câmara baseadas na
obra de Dino Buzzati (1906-1972): Equivalência, Delicadeza, Um caso assombroso e A almôndega. Segundo Victor Luiz, Kairós “trata do tempo não linear e da angústia do
ser humano perante a morte”, abordando temas tão atuais quanto o desemprego, a
corrupção, a morte e a injustiça social.
“Com esta tetralogia
nós buscamos contribuir, junto às demais obras nacionais, com a quebra do
paradigma da ópera como espetáculo grandioso e imponente, para colocá-la em uma
posição mais próxima ao público e em condições mais viáveis de realização
dentro da realidade brasileira”, explica Victor Luiz. As partituras da
tetralogia se encontram no site Minióperas
e a produção para a gravação está prevista para o primeiro semestre de 2023.
PROFISSIONAIS DO SETOR
Todos
aqueles que trabalham em algum metiê dos universos teatral e cinematográfico,
talvez com exceção de atores, estão aptos a aplicar seu conhecimento e prática
em uma produção operística, sob coordenação de um diretor artístico:
cenógrafos, diretores, figurinistas, maquiadores, operadores de câmera,
captadores de áudio, editores e montadores de vídeo etc. Na Itália, onde a
ópera nasceu e se desenvolveu, inclusive há um termo idiomático para essa
figura de coordenação: regista (a
pessoa que rege, comanda).
Instrumentistas
e regentes de formação conservatorial, naturalmente, constituem uma outra
parcela essencial para a produção do gênero, mas há uma classe profissional,
dentro do universo da música, cuja presença caracteriza a ópera como tal e cuja
formação requer anos de maturação: os cantores líricos, a quem é confiado o
protagonismo que pertence aos atores no teatro e no cinema. E que caminhos um
aspirante a cantor de ópera em Pernambuco pode seguir a partir da descoberta de
sua vocação?
O tenor Jadiel Gomes explica que o mais natural é estudar Teoria Musical e
Canto, ingressar em um coral e participar de montagens de ópera; a princípio,
como coralista. Dito trajeto agrega o futuro solista a um grupo e dá a gradual
visibilidade para ser escalado à medida que vai sendo bem-avaliado. No campo
dos estudos, há uma via acadêmica (o bacharelado em Música com habilitação em
Canto na UFPE), outras de nível técnico (como o Conservatório Pernambucano de
Música e a Escola Técnica Estadual de Criatividade Musical) e os professores
particulares.
Os alunos de outras habilitações do bacharelado também dispõem de cadeiras regulares de Canto Coral e de eletivas com foco no canto de câmara ou operístico. Já na licenciatura em Música, são oferecidas disciplinas de Técnica Vocal e Regência Coral. Em paralelo, os futuros cantores buscam aperfeiçoamento em master classes, aulas particulares e oficinas no Brasil e no exterior – mesmo destino dos instrumentistas que desejam se tornar virtuoses.
O inconveniente é que, sendo poucas as casas no Brasil que promovem tais
montagens (nenhuma no Nordeste), muitos talentos tendem a ficar restritos a
participações nos coros ou só encontrar chances de atuar como solistas em
iniciativas bissextas ou periódicas – dependentes de financiamento de editais
públicos – e concorrendo com quem já está no mercado.
“A
grande dificuldade enfrentada, realmente, é não ter a profissionalização do
nosso trabalho, do nosso objetivo”, resume Jadiel, bastante requisitado em
produções locais. “Há, na cidade, a Orquestra Sinfônica do Recife, que comporta
empregos, né? Não temos um coro estatal, em que a gente possa cantar e se
aperfeiçoar. É uma visão de futuro que a gente não tem. Então fazemos ópera com
muito prazer, porque é muito difícil sobreviver”, analisa o tenor. A fonte de
renda dele e de outros colegas cantores vem de casamentos e formaturas, quando
contratados por algumas empresas de eventos do ramo. “São os únicos momentos em
que a gente pode ganhar um pouco de dinheiro. Só nesses momentos”, completa.
PERFIL DE PÚBLICO
Afortunadamente,
a apresentação de óperas pré e pós-pandemia no Santa Isabel tem garantido boa
audiência e conquistado novos adeptos. Alexsandra Tenório, 16 anos, que cursa o
primeiro ano do Ensino Médio, viu uma ópera pela primeira vez em 2019 e guardou
diversas impressões daquele momento consigo. “Não me recordo a qual assisti,
mas foi o primeiro contato ao vivo. A experiência foi ótima! O mais
interessante foi ver uma orquestra debaixo do palco, fiquei bastante
impressionada!”, comenta.
Alexsandra
voltou àquele teatro em 2022 como clarinetista, para atuar em alguns concertos
com a Orquestra Criança Cidadã, projeto social onde ela estuda desde 2016. Como
espectadora, fez questão de prestigiar A Compadecida e,
agora mais madura, pôde finalmente tirar suas dúvidas: “Conheci como funcionava
a tal ‘lata de sardinha’ onde os músicos ficavam”, diz, referindo-se ao fosso
de músicos. “Foi legal, os músicos não ficam sufocados (como eu ficava
imaginando) por ser um espaço menor. Nesse dia, também soube que as óperas não
são divididas por movimentos, como peças sinfônicas, e, sim, por atos.”
Alexsandra enumera
que seus compositores favoritos são Schumann, Beethoven, Chopin e Carl Maria
von Weber. Os três primeiros deixaram um catálogo eminentemente sinfônico e
camerístico. Quanto a Weber, ela o admira pelas obras que ele escreveu para seu
instrumento, sem saber que o alemão ocupa um lugar de destaque na ópera de
tradição germânica da primeira metade dos anos 1800.
A jovem aluna de
clarinete, moradora da comunidade do Coque, representa uma nova geração de fãs
que dá continuidade a uma audiência que sempre abrangeu todos os estratos
sociais da cidade. Infelizmente, os dois livros obrigatórios para se entender a
formação desse público restavam apenas ao alcance de pesquisadores: Música e ópera no Santa Isabel, de José Amaro dos
Santos Silva, e Ópera no Recife – Vozes, bastidores,
espectadores, escrito por Karuna Sindhu de Paula, Felipe Azevedo de
Souza e Sérgio Deslandes.
Este segundo livro,
resenhado em maio de 2018, na edição 209 da Continente, e
relançado em novembro passado pela Cepe — reconstrói com bastante amplitude a
atividade operística recifense, dos teatros do século XIX (o pioneiro Capoeira,
o Apolo, o Philo-Dramático, o de Santa Isabel) até cinco anos atrás, passando
pelas companhias líricas estrangeiras, que sempre arribavam no Recife em turnês
sul-americanas; pelo papel de Euclides Fonseca; pela Companhia Israelita de
Dramas e Operetas; pela atuação de Valdemar de Oliveira (1900-1977) e Samuel
Campelo (1889-1939); e pela Sociedade Lírica de Pernambuco.
Nota-se, contudo, que já não encontramos mais críticas de ópera (e mesmo de
música clássica) na imprensa pernambucana, apenas notícias prévias e que não
transcendem as informações prestadas via releases. Nesse
contexto de enxugamento severo das redações jornalísticas e da escassez de profissionais
especializados para exercer a crítica, desenha-se um cenário em que as
produções operísticas prometem constância para os próximos anos, mas sem haver
quem fale de sua recepção, falhas e acertos e que deixe registrado, com relatos
abrangentes, que a ópera vive.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista,
pesquisador, crítico musical e compositor.
As múltiplas faces do que
acontece https://bit.ly/3Ye45TD
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