Abin de Bolsonaro usou programa secreto para monitorar localização de
pessoas por meio do celular
A ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial,
controlar os passos de até 10 mil proprietários de telefones a cada 12 meses
Dimitrius Dantas,
Patrik Camporez e Thiago Bronzatto/O Globo
Durante os três primeiros anos do governo
Bolsonaro, a Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) operou um sistema secreto de monitoramento da localização de
cidadãos em todo o território nacional, segundo documentos obtidos pelo GLOBO e
relatos de servidores. A ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial,
monitorar os passos de até 10 mil proprietários de celulares a cada 12 meses.
Para isso, bastava digitar o número de um contato telefônico no programa e
acompanhar num mapa a última localização conhecida do dono do aparelho.
A prática suscitou
questionamentos entre os próprios integrantes do órgão, pois a agência não
possui autorização legal para acessar dados privados. O caso motivou a abertura
de investigação interna e, para especialistas, a vigilância pode ainda violar o
direito à privacidade. Procurada, a Abin disse que o sigilo contratual a impede
de comentar.
A ferramenta, chamada
“FirstMile”, ofereceu à agência de inteligência a possibilidade de identificar
a “localização da área aproximada de aparelhos que utilizam as redes 2G, 3G e
4G”. Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), o programa
permitia rastrear o paradeiro de uma pessoa a partir de dados transferidos do
celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões. Com
base no fluxo dessas informações, o sistema oferecia a possibilidade de acessar
o histórico de deslocamentos e até criar “alertas em tempo real” de
movimentações de um alvo em diferentes endereços.
A agência
comprou o software por R$ 5,7 milhões, com dispensa de licitação, no fim de
2018, ainda na gestão de Michel Temer. A
ferramenta foi utilizada ao longo do governo Bolsonaro até meados de 2021.
Integrantes
da Abin relatam que o mecanismo era usado sem a necessidade de registros sobre
quais pesquisas eram realizadas. Na prática, qualquer celular poderia ser
monitorado pelo programa sem uma justificativa oficial. A utilização da
ferramenta gerou questionamentos internos no órgão, inclusive com relatos de
sua utilização contra os próprios agentes. A polêmica resultou em um
procedimento interno para apurar os critérios de utilização e a regularidade da
contratação dessa tecnologia de espionagem.
Um integrante do alto escalão da Abin afirmou ao GLOBO, sob a condição de anonimato, que o sistema era operado sob a justificativa de haver um “limbo legal”. Ou seja, como o acesso a metadados do celular não está expressamente proibido na lei brasileira, a agência operava a ferramenta alegando serem casos de “segurança de Estado” — e, portanto, não estava quebrando o sigilo telefônico. O problema, segundo esse oficial de inteligência, era que o programa podia ser manejado “sem controle” e não era possível saber se foram feitos acessos indevidos.
O uso da
ferramenta chegou a ser citado em uma decisão da Justiça fruto de uma operação
da Polícia Federal que investigava suspeitas de vazamentos de informações por
dois representantes comerciais do programa no Brasil. Uma mensagem de voz
enviada pelo WhatsApp por um desses funcionários, cujo conteúdo foi citado no
despacho, revelou que ele tinha acesso à localização de celulares.
Questionamento
legal
Especialistas e integrantes da Comissão Mista de Controle das
Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso ouvidos pelo GLOBO questionam a
utilização desse tipo de serviço pela Abin. A lei que regula a agência, de
1999, não prevê entre suas atividades o monitoramento de celulares nem a
vigilância da geolocalização de determinados alvos.
— Nesse
caso, há três direitos frontalmente violados: o direito à vida privada, à
intimidade e à liberdade de locomoção. E não só. A vida do cidadão está em risco
quando a geolocalização é feita de maneira indiscriminada — diz Denilson
Feitoza Pacheco, presidente da Associação Internacional para Estudos de
Segurança e Inteligência (Inasis).
Para o advogado Christian Perrone, diretor de
Direito e GovTech do Instituto de Tecnologia e Sociedade, a falta de parâmetro
legal para a Abin comprar e utilizar o programa dá margem a questionamentos
sobre a violação do direito à privacidade e intimidade:
—
A própria contratação sem ter um instrumento normativo sobre os padrões de
utilização já entraria na linha tênue de ser ilegal, mas a sua utilização gera
ainda mais preocupação: na lógica constitucional, se temos direito à
privacidade e intimidade, ela só pode ser impactada por uma justificativa de
interesse público que seja robusta.
'Geolocalização
remota'
Do ponto de vista legal, a fiscalização sobre as atividades da
Abin cabe ao Poder Legislativo por meio da CCAI. Segundo o senador Esperidião
Amin (PP-SC), ex-presidente da comissão, o tema revela a necessidade de
atualização do sistema de inteligência.
— Precisamos nos preocupar
com a defesa do cidadão. Esse é o aspecto que pode surgir com esses programas a
pretexto de defender segurança e infraestrutura — afirmou.
Procurado,
o ex-chefe da Abin Alexandre Ramagem, eleito deputado federal com o apoio de
Bolsonaro, não quis dar detalhes da utilização do serviço sob a sua gestão:
— Isso é com a Abin. Tem
contrato, tem tudo. A contratação está toda regular. Se tiver algum
questionamento, tem que fazer à Abin.
A Abin,
porém, não forneceu as informações sobre o caso. Procurada, a empresa
responsável pelo programa afirmou que não poderia comentar por questão de
sigilo contratual. Em um registro na Associação Brasileira das Indústrias de
Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), a companhia diz que presta uma série
de serviços de inteligência como, por exemplo, o de “geolocalização celular
remota” e de “inteligência na dark web”.
A fabricante da ferramenta
foi representada no Brasil por Caio Cruz, filho do general Santos Cruz,
ex-ministro de Bolsonaro. Caio Cruz não deu detalhes da contratação, alegando
sigilo.
ESTRUTURA
PARALELA
Escândalo
das rachadinhas
Durante a
maior parte do governo Bolsonaro, a Abin foi chefiada pelo delegado da Polícia
Federal Alexandre Ramagem, que coordenou o esquema de segurança do presidente
na campanha de 2018. À frente da agência, Ramagem mantinha contato direto com o
então mandatário e seus filhos. Em 2020, a revista Época revelou que a Abin
teria produzido ao menos dois relatórios de orientação para o senador Flávio
Bolsonaro e seus advogados no pedido de anulação da investigação do escândalo
das rachadinhas. A autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do
senador.
Negócios de Jair Renan
No ano
passado, O GLOBO mostrou que um agente disse à PF que recebeu missão
extraoficial para levantar informações de negócios envolvendo Jair Renan, o
filho mais novo do presidente. O objetivo, segundo ele, era prevenir “riscos à
imagem” de Bolsonaro.
Atuação na CPI da Covid
Durante a
CPI da Covid, a Abin teria atuado para levantar informações sobre
irregularidades nos estados e municípios relacionadas à pandemia, conforme
revelou a revista Crusoé. O objetivo era mudar o foco dos trabalhos da comissão
parlamentar.
Fora dos relatórios
Diante
dos episódios, que não foram registrados no banco de relatórios da Abin,
Alexandre Ramagem, passou a ser acusado de montar estrutura paralela de
apuração de casos de interesse de Bolsonaro. Em 2021, ele foi convocado para ir
à Câmara dos Deputados e negou irregularidades:
—
Primeiro, se tiver algo paralelo na Abin, tem que ter um servidor atuando de
forma ilícita ou a utilização do sistema de forma ilícita. Portanto,
condenável. E nós apuramos e, até o momento, pelo contrário, demonstramos que
não tem. Nós não fazemos monitoramento de pessoas.
Acossado e recluso, em decadência bit.ly/3YDZrgR
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